Fotografia: Helen Salomão

 

Um lugar para reverberar a voz que sempre tentam calar e a palavra como ferramenta de transformação social. É assim que a escritora, slammer e produtora cultural paulista Mel Duarte descreve a relação entre mulheres e a chamada slam poetry, nome de origem inglesa que classifica a poesia declamada em slams, competições nas quais poetas recitam trabalhos originais e têm performance julgada.

Atuante em saraus desde 2006, Mel não só desbravou cenários – foi a primeira mulher a vencer o Rio Slam Poetry (campeonato internacional de poesia). Ela assiste pessoalmente a um crescimento de locais e competições de poesia falada voltados exclusivamente para a atuação de autoras e declamadoras mulheres. Um exemplo é o Slam das Minas – SP, do qual a própria Mel é uma das integrantes e organizadoras. Porém, há uma proliferação de variações em diferentes estados brasileiros nas quais “minas” e “gurias” se fazem ouvidas pela poesia.

“Nós mulheres não crescemos sendo incentivadas a ocupar espaços, expor nossas idéias e o slam acaba sendo uma válvula de escape”, afirma a poeta. Neste ano, Mel lançou dois projetos que tem como efeito a ampliação da propagação da poesia feminina como uma voz ativa. O mais recente é o álbum de spoken“Mormaço”, no qual versos sobre amor buscam oferecer ao ouvinte uma pausa no meio do caos, ao mesmo tempo em que falar sobre erotismo e afetividade como mulher – e mulher negra – no Brasil não deixa de ser um ato político.

Mel também organizou a antologia de poemas “Querem nos calar – Poemas para serem lidos em voz alta”, reunindo a poesia de 15 slammers mulheres de diferentes regiões do país, e com o prefácio da escritora Conceição Evaristo. A poeta falou sobre os dois trabalhos e a atuação feminina na cena do slam em entrevista à Não me Kahlo. Leia:

Sua primeira poesia a viralizar, intitulada “Verdade seja dita”, veio como resposta a uma fala sobre estupro do então deputado, Jair Bolsonaro, em 2014. Desde então, o conservadorismo, o racismo e o machismo parecem ter se amplificado (ou ganhado uma entonação ainda mais escancarada e celebrada) em setores do Brasil e de deputado, Bolsonaro foi para um presidente que diz coisas misóginas como “o Brasil é a virgem que todo tarado quer” e que convida turistas a vir fazer sexo com nossas mulheres. Esse cenário tem refletido em seu trabalho como artista?

Mel: Esse cenário, além de me deixar possessa e por vezes desanimada, só me faz perceber que mais do que nunca meu trabalho é necessário, que minha pequena parte pode fazer a diferença. Eu acredito muito na palavra como ferramenta de transformação social e é ela quem me dá forças pra levantar todo dia e trabalhar. Eles querem nos exaurir a todo custo. E sem arte, sem cultura, sem quem conte a verdadeira história é mais fácil de se manobrar a massa. Eu converso muito com jovens de vários estados do país, adolescentes mesmo, e vejo como é importante a gente provocar essa galera pra sair da zona de conforto e começar a questionar, se posicionar, porque precisamos estar atentos!

Você lançou “Mormaço”, um álbum de poesia falada sobre amor, com um tom mais leve que seu trabalho mais político que a projetou na mídia. O que atraiu você para um trabalho que trate exclusivamente dessa temática?

M: Estou numa fase de amadurecimento da minha escrita e postura. Estava com a necessidade de parar de atender a demanda das pessoas com coisas que elas querem e esperam de mim. Precisei me olhar e entender aos 30 anos de idade e mais de 10 na cena, o que eu queria oferecer, sobre o que eu queria falar. Fazer esse disco que é algo muito novo pro público tanto da poesia como da música aqui no Brasil é pra mostrar uma outra vertente do meu trabalho e trazer novas pautas também.

Para uma mulher e poeta, falar sobre afetividade e erotismo é um ato político e de resistência?

M: Sim, principalmente se tratando de uma mulher negra, porque eu também cresci lendo mulheres brancas falando sobre afeto e muitas vezes não me enxergava ali. “Mormaço” veio justamente pela minha necessidade de falar sobre amor. Sinto que a gente vai se desapegando das coisas simples e sutis que fazem a diferença. Minha intenção é propor uma pausa no meio do caos para as pessoas se deixarem levar, lembrarem que o afeto é importante e que precisamos muito levantar essa bandeira para enfrentar a realidade dos dias que estamos vivendo. Eu acredito tanto que o amor é um ato político que fiz um disco pra lembrar as pessoas e a mim mesma disso.

Na apresentação de “Querem nos calar – Poemas para serem lidos em voz alta”, você diz que “se não há espaços que nos valorizam, nós devemos criá-los”. Você acredita que a participação de mulheres nos slams tem proporcionado esse processo?

M: Com certeza! Temos que criar os espaços e sustenta-los. Esse é o maior desafio. Hoje vejo muitas redes de mulheres em várias áreas se erguendo e fico feliz de fazer parte desse movimento.

Já testemunhou um efeito de transformação e empoderamento visível em participantes do Slam das Minas e nas ações que vocês fazem em escolas?

M: Sim, muitas. O Slam já existe há três anos e nesse tempo vimos a evolução de várias poetas. É incrível como um espaço pode te transformar no melhor dos sentidos. Conviver com pessoas que te incentivam faz toda a diferença e percebo como quebramos estereótipos quando vamos nas escolas e apresentamos uma outra figura da escritora que vive no subconsciente de todos, assim como a linguagem que aproxima mais.

A sua própria vivência nos slams e com a poesia falada fortalece você como mulher e ser político?

M: Sem dúvidas. Sou cria dos saraus e nesse espaço formei uma consciência política e discernimento perante ao que me rodeia. Sou muito grata por ter encontrado todo esse movimento que me formou como a pessoa atuante que sou.

Em oito dos 18 estados já alcançados pela slam poetry, há recortes onde só mulheres batalham, segundo a introdução da antologia. O que leva a ocupação feminina como uma exclusividade desses espaços no Brasil?

M: Hoje o slam já possui pelo menos uma comunidade em cada estado, já dominamos o Brasil (risos) e o crescimento dos slams com esse recorte acontece pela necessidade dos espaços de nos fortalecer como falamos acima. Nós mulheres não crescemos sendo incentivadas a ocupar espaços, expor nossas idéias e o slam acaba sendo uma válvula de escape, um lugar pra reverberar essa voz que sempre tentam calar e ainda assim, em algumas batalhas mistas muitas não se sentem confortáveis, principalmente quando estão começando, então é uma forma de se preparar e criar redes para um mesmo interesse.

A antologia reúne 15 mulheres de estilos e regiões distintas no país. Como você chegou até esses trabalhos e quais foram os critérios de seleção?

M: Como estou na cena há muito tempo vi vários slams nascerem pelo Brasil. Viajo bastante e mantenho uma comunicação com uma galera de muitos lugares, principalmente as mulheres. Também estou sempre de olho em tudo que tá rolando, me informando dentro do possível, porque fica cada vez mais difícil pelo crescimento rápido do movimento. Para a antologia, levantei vários critérios, como o tempo de atuação na cena. Temos muitas poetas de dois anos pra cá que são incríveis e poderiam compor uma edição inteira, mas não entraram, porque priorizei quem está no slam há mais tempo, quem ainda batalha ou organiza. Procurei inserir mulheres que já estão no corre da palavra dentro dos seus estados e que são referencias para a nova geração. Espero que possamos fazer mais edições para contemplar mais mulheres pois temos muitas poetas talentosas espalhadas pelo Brasil.

O livro tem sua organização, a poesia falada de 15 autoras, o prefácio da Conceição Evaristo, as ilustrações da Lela Brandão. A revisão, preparação e projeto gráfico também são de mulheres. Como foi para você organizar e ver publicado esse livro que só passou por mãos femininas na sua concepção e produção?

M: Quando eu conheci a equipe da Planeta fiquei mais tranquila em saber que tinham tantas mulheres no projeto. A Luiza Lewkowicz, editora chefe, sempre foi bem aberta às minhas sugestões e conseguimos encontrar um equilíbrio dentro do que buscávamos para esse livro ser coerente com a proposta. Contamos com profissionais incríveis. A escolha da Conceição foi muito feliz pois, além dela ser grande referencia pra todas que estão no livro, ela acompanha o slam, já conhecia o trabalho de muitas das poetas, já me viu batalhando. Ela está próxima e isso é de uma força e importância imensuráveis.

Quem vocês esperam que o livro alcance e como?

M: Percebo dois públicos bem distintos que estão procurando muito o livro. Quem não conhece o slam mas ouve falar e quer entender melhor sobre e quem estuda a cena, a poesia contemporânea, muitos estudantes de letras, comunicação, sociologia. Tenho visto cada vez mais o slam ser assunto na academia e o livro é uma ótima fonte de pesquisa. E sinto que ele tem atingido pessoas de classes sociais, raça e gênero diferentes. Não importa sua condição, em algum verso ali você se reconhece porque são muitas vozes ecoando, recebo muitas mensagens lindas de pessoas encantadas pelo livro, fazendo clube de leitura. Acho demais!

As autoras do livro têm falas diferentes, reflexo de suas vivências. Apesar disso, com a organização do livro, a presença em eventos nacionais e internacionais, você percebe se a slam poetry produzida por mulheres brasileiras têm particularidades que a distingue daquela de outros países?

M: Tem sim, na verdade de forma geral, mesmo outras poetas vindo de países ainda menos desenvolvidos que o nosso com problemas parecidos e, por vezes piores, a forma de falar sobre é diferente e eu acho isso incrível, até porque a língua também influencia muito e isso é o mais bacana de um Slam. Quando você conhece poetas de outros países, uma nova gama de possibilidade se abre. Nós aqui somos mais enfáticas, o termo “pocas idéias” [gíria paulistana para descrever alguém bravo] resume bem (risos). Acho isso peculiar nosso.

Além de “Querem nos calar” e “Mormaço”. Mel publicou os dois primeiros livros de poesia entre 2013 e 2016 – “Fragmentos Dispersos” e “Negra Nua Crua”. Foi destaque no sarau de abertura da Flip em 2016, e já foi convidada a representar a literatura brasileira no Festival de Literatura Luso-Afro-Brasileira, em Luanda, Angola.

 

Rafaela Tavares Kawasaki. Jornalista de 31 anos, autora do livro de contos “Enterrando Gatos”.

 

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