Talvez não dê tempo (e não deu)

Os dias agora se esmagam em fatias. Pela manhã, uma fatia de esperança, pois a vida tem essa mania de tentar fazer a gente levantar e seguir alimentando o corpo e a energia do mundo. É uma boa hora para trabalhar, para descansar, para fazer exercício, para lavar a alface, para cuidar da casa. É uma boa hora, mas, como toda fatia, é achatada, fina e breve. A fatia da esperança, pela manhã, não comporta a fome toda de um pouco de ar fresco.

Devorada a breve fatia de esperança, é a vez da farta fatia do cansaço. É o correr do dia trazendo, como marteladas, as batidas do relógio, as estatísticas e uma sirene de ambulância que insiste agora em passar mais do que o carro dos ovos. Onde está o carro dos ovos? Da pamonha? Dos bolos? Existem alguns relógios que batem com ternura, são sinos da cidade. São sinos que tocam para que a vida siga trazendo sons de quando era possível não ter medo do gosto das coisas, do gosto do ar. Não tenho mais escutado o som dos carros que vendem esses sabores. A sirene de ambulância não tem som de carinho. Tem o som de querer longe. De querer longe da gente e de quem se ama. Tem o som de afastar-se, deixar passar, deixar passar e olhar, deixar passar e olhar e orar. Esses movimentos que ficam nos lembrando do desespero, são cansativos. Como se a sustentação do corpo fosse já uma força outra. Assim, essa farta fatia do cansaço ocupa um dia longo e nela, o desejo é todo não: não fazer, não tentar, não se importar, não começar, não terminar. Essa fatia farta do cansaço a gente não consegue devorar. Tem, ela própria, bocas e dentes. Sou eu a mastigada. Chego quase triturada ao fim do dia.

Encontro-me com a fatia da dor.

A fatia da dor não é uma fatia, mas a própria máquina de fatiar. É um mecanismo rudimentar, incansável e terrivelmente eficiente de moldar os pedaços suculentos em fatias frágeis. A fatia da dor é uma manchete com mais de três mil mortes ou a imagem do genocídio escancarado. A fatia da dor, espalha-me pela casa. Como eu posso trabalhar se estou fatiada? Se aquela película de esperança que eu tinha como uma cápsula emergência já se esgotou na fervura da água para o café? Me contem vocês as palavras, por favor. Eu não tive tempo.

Nada é possível de ser resolvido sem que passe, sem que a gente possa olhar, como a um cubo mágico. Durante, só existe o que nos faz sobreviver. Escrever é uma forma de estar viva, mas minha parte bicho (que é a que tem me movido nesses dias em direção ao alimento e à cria) nem escrever sabe.

Juntei alguns pedacinhos e vim aqui contar que não deu tempo. Não tenho meu dia completo. Tenho uma fatia onde a ideia vem como um raio. tenho que fazer escolhas e escolho agora deitar um pouco.

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