Notei que uma parte de meus conhecidos e grande parte da internet desencavou uma carteirinha do FBI. Eles cruzam histórico passado de conhecidos e desconhecidos que publicam fotos sendo vacinados e começam a investigação para desmascarar o impostor. Baseado na crença enraizada de que o brasileiro só espera uma oportunidade para dar o famoso “jeitinho”, estão confiantes que as investigações apontam um complô coletivo: as pessoas estão fingindo comorbidades para serem agraciadas com uma dose da vacina. Ato contínuo, ao furarem fila estão sendo desonestas e roubando o lugar de quem realmente deveria estar vacinando. Cabe aos investigadores, então, o papel crucial de impedir isso. Na internet, esse cargo de importância relevante para o país foi denominado como “fiscal de comorbidade”. 

 T.B (abreviatura para não expor a colunista da Folha de São Paulo Tati Bernardi) recentemente publicou um artigo no qual detalha o jornalismo investigativo por trás da caça aos fraudadores. O artigo é bem fundamentado em anedotas particulares e (des)informações que retratam o lado mais assombroso dos furadores de fila. Segundo T.B., todo mundo tem alguma comorbidade como “prolapso da válvula mitral” (inclusive sua tia, então seria melhor deixar sua vaga na fila pra ela), estão “facilitando” a vacina para pessoas com hipotiroidismo e que as pessoas estão em uma busca incessante de uma comorbidade para chamar de sua. Uma “comorbidade nutella”. 

Segundo o UOL, no Rio de Janeiro – a residência oficial do tal “jeitinho brasileiro” – apenas 65% das pessoas com comorbidades foram vacinadas, número bem abaixo da meta estimada pelo poder público. Estamos então diante de um caso inédito: supostamente as pessoas estão inventando comorbidades para se vacinarem mas ainda assim as vacinações não tem extrapolado o esperado. Ou será que essa história das pessoas em geral estarem correndo atrás de comorbidades para serem vacinadas não encontra lastro em dados? 

Afinal, de onde tem saído essa história de que as pessoas tem inventado comorbidades? Ou pior, que suas comorbidades não são tão “raiz” assim que justifique elas terem acesso à vacina? Será que esse discurso de “comorbidade nutella” tem influído para o baixo comparecimento das pessoas? 

São muitas dúvidas. Mas os fiscais… ah, eles tem muitas certezas.  

Na última semana, publiquei um post na Não Me Kahlo que dizia “Ninguém que tá vacinando deve a você explicações sobre qual comorbidade tem”. A frase foi inspirada em duas amigas também da Não Me Kahlo que foram vacinadas mas que estavam cansadas dos questionamentos sobre qual comorbidade teriam sido agraciadas para terem direito à vacina.  

O post gerou reações diversas. Uma das pessoas que comentaram, no entanto, chamou a minha atenção pois tinha uma história diferente para contar. Ela realmente estava certa de que a amiga não tinha comorbidade alguma. Por isso, perguntei: será que ela não tinha comorbidade ou você que não sabia? Não obtive resposta. 

Eu acredito que todo esse imbróglio dos fiscais de comorbidade envolve uma visão distorcida da realidade em três aspectos: de que não é possível que tantas pessoas conhecidas tenham alguma comorbidade, que pessoas aparentemente saudáveis não tem comorbidade e que de alguma forma essas pessoas lhe devem explicações sobre seu estado de saúde. 

Sobre o primeiro caso, é bastante chocante perceber que, sim, muitas pessoas vivem com algum tipo de comorbidade. Mais de 30 milhões de pessoas no Brasil tem hipertensão. Isso significa um em cada cinco pessoas, segundo a Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo. O Brasil é o quarto país com o maior número de diabéticos no mundo e 46% nos brasileiros entre 20 e 79 anos não sabem que tem a doença. Nos últimos 20 anos, o número de pessoas obesas mais que dobrou no Brasil, sendo que uma em cada quatro pessoas de 18 anos ou mais em 2019 estavam obesas, o equivalente a 41 milhões de pessoas. Isso apenas para citar algumas entre as muitas outras comorbidades listadas como prioritárias na vacinação. 

Os números explicam porque temos tantos conhecidos se vacinando, mas ainda assim não convence os fiscais que estão à espreita de possíveis fraudadores. Eu acredito que essa desconfiança perpassa o próprio estereótipo do que a pessoa considera uma doença. Para eles, a pessoa com comorbidade deveria ser uma pessoa fisicamente doente, definhando, daquelas que você bate o olho e percebe. Ocorre que esse nem sempre é o caso e quando a imagem que a pessoa criou na sua própria cabeça do que é uma pessoa com comorbidade não representa aquela da foto no Instagram, ela imediatamente não pensa que o problema é com a ideia criada mas sim que aquela pessoa é uma fraudadora. 

Em uma sociedade onde a doença é estigmatizada, não é de se surpreender que não sejam anunciadas nos posts filtrados do Instagram. É algo que normalmente se esconde. Ainda é muito difícil as pessoas entenderem que outras pessoas passam por coisas que são mantidas em privado, como uma diabetes, o fato de conviverem com HIV ou qualquer outra comorbidade listada na prioridade de vacinação. 

O que me causa mais revolta, no entanto, é que as pessoas se veem no direito de cobrar explicações sobre a saúde de outro. Esses dados são protegidos por sigilo médico, diga-se de passagem, e quem tem alguma comorbidade já deu explicações a quem era cabível, ou seja, ao seu médico e aos profissionais dos postos de saúde. Além do mais, existem canais de denúncia para quem comete fraude de qualquer tipo, ainda que pessoas diversas na internet tenham tomado esse trabalho para si. 

Não quero aqui dizer que fraudadores não existam. Existem, é claro. Mas é um erro tratar todos de forma suspeita, principalmente no nosso contexto atual onde precisamos que o maior número de pessoas de fato se vacinem. Não apenas por elas, mas por todos. 

Quanto mais pessoas vacinadas, mais todos nós estamos seguros. Por isso, não faz sentido algum falar em deixar sua vez para uma tia mais velha se você tem uma comorbidade que te dá direito à prioridade na vacinação. É bom enfatizar: isso não é favor, é direito. Não existe “comorbidade nutella” e isso não é falta de interpretação de texto. Existe apenas comorbidade e quem a tem seguindo os critérios estabelecidos pelo poder público não está errado em se vacinar.  

Essa culpabilização e cobrança individual sobre as pessoas que estão se vacinando e as que estão procurando saber se as suas condições de saúde se encaixam na lista é que é totalmente descabida. Os fiscais de comorbidade que saiam desse cercadinho VIP de detentores da moral e bons costumes que criaram para si e deixem as pessoas se vacinarem em paz. Eu não ia julgar, mas saiu esse texto. 

 

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