Quando nasceu a décima filha, em 1967, sua vida mudou. Passaram poucos dias após o parto, Nega Mariana segurou a criança nos braços, juntou algumas peças de roupas e um vidro de leite e pôs-se em marcha rumo ao nada.

Saiu estrada afora em busca de algo ou de si. Percorreu com a criança nos braços estradas de poeira vermelha, campos verdes entre rebanhos de gados e pontes que a dividiam, entre aqueles que ficaram e aqueles que iria, ou queria encontrar, o passado e o presente, e um tanto distante e confusa com o futuro. Somente ela e a criança recém-saída de seu ventre, como a terra seca em sol escaldante, seu leite do peito também secou e já não podia mais amamentar.

Ela e a criança faminta e em pratos que lágrimas banhavam mãe e filha, foram tantas que formava barro da terra vermelha. Nega Mariana caminhou sem rumo, com a criança nos braços. Ambas estiveram a companhia da morte, esta se assustou ao ver tanta coragem e loucuras juntas. A morte, o desespero se aproximou também daqueles que ficaram à espera de notícias, de um sinal, e do retorno de Nega Mariana com o bebê em algum momento.

Ela continuava caminhando, mundo afora, cantava, sorria, chorava, caminhava.

Foram quilômetros baixo de sol, as vezes chuva. Dormia baixo de arvores, ou nas praças da cidade. Alguns acharam que era louca, outros que era mendiga, mas, ninguém lhe perguntou o que ela tinha, ou o que fazia por ali com uma criança recém-nascida nos braços, pois ela também não sabia o que fazer e nem o que fazia. Pelos caminhos encontrou algumas como ela, andarilhas, maltrapilhas, descaças, despenteadas…

As “boas de cabeça” lhe ofereciam água, pão, carinho cuidando de Nega Mariana e da criança que carregava.

Um certo dia, com os pés sangrando e também o coração, sentiu falta de casa, olhou para um lado, e para outro e tomou o caminho de volta. Quando chegou, os que estavam mergulhados no desespero não entendiam o ocorrido. E já no aconchego do lar, deitou-se com a crianças, após um banho nas águas do rio no fundo do quintal. Ambas dormiram profundamente por muitas horas naquele dia.

Ao despertar sentada na cama, e o marido segurando suas mãos, sua cabeça virou, e não podia entender tudo que acontecia. No impulso Nega Mariana apertou a mão do marido, que a segurava firma, com medo de que se fora novamente. Ela com meio sorriso no rosto disse: – “Tive um sonho estranho. Andava pela estrada sem rumo com minha criança no colo. Tive medo”. Olhou ao lado, a filha dormia um sono de anjo, limpa e alimentada. Ficou minutos em silêncio, recobrou a realidade. – “Ainda bem que foi só um sonho”.

Naquele tempo era difícil compreender o que era depressão pós-parto e loucura.

Marli de Fátima Aguiar mora na Cidade de São Paulo mais de 25 anos, mas será sempre de mineira. É oficineira e fomenta a escrita para mulheres negras Coletivo Carolinas e Firminas, militante feminista e educadora social.

 

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