Eram grandes, sedutores e atraentes. Um, porque o levava onde queria, outra, porque era bonito mesmo. Não eram os pés perfeitos, mas me apaixonei por eles, foi “amor à primeira vista”. 

Tinha os dedos longos, e ficavam juntinhos, a pele fina de quem sempre usara sapatos desde muito cedo, e muito pouco pisara na terra, diferentes dos meus, que, quando usei sapato pela primeira vez já passava meus seis anos de idade. Aqueles pés tinham curvas perfeitas, fundas, como já marcando as distâncias a serem percorridas. Unhas finas e pequenas, bem definidas. Havia alguns calos que mostravam o peso do corpo, da idade, de sua história de vida, e a história de seu povo. E que história!

Ríamos às gargalhadas ao lhe dizer:

– Quando você morrer, haverá de providenciar dois caixões, um para o corpo e outro para os seus pés. Ele respondia: – Quatsch!

Seguíamos rindo por um bom tempo. Eu gostava de olhar, observar, tocar, tirar fotos daqueles pés. O mais engraçado era que raramente cabia na grade da cama, “nossa cama”, ou ficava nas aberturas da grade dela, ou a cama era sem grade para cabê-lo por inteiro, o corpo e os pés. Dizia ele que respirava melhor pelos pés, e o curioso é que tenho uma amiga com o mesmo toque, daí a necessidade de dormir com os pés descobertos sendo, inverno ou verão.

Tempos atrás, limpando telas de meu computador, caixas e gavetas, me deparo com várias fotos de nossos pés, na água, na areia, na terra, no banco, no barco, na cama… E no sofá, entre uma e outra leitura agradável e divertida das crônicas de João Ubaldo Ribeiro, ou, de notícias do jornal Der Tag, ou ainda, assistindo um filme de Pina Bausch e/ou Wim Wenders… esses pés na foto, os guardarei na memória.

Fico pensando que nunca um pé me atrairá tanto como aqueles, assim como sua historia, seu cheiro, seu amor, seu coração…sei que na medida que ele usava aqueles pés para suas corridas longas, quase que diárias, também pensava, refletia sobre a vida e tomava decisões. Descobri que  eu, na medida que corro pela vida, pelos parques e avenidas, também penso, reflito, tomo decisões, crio, escrevo estas e outras memórias.

Aqueles pés percorriam distâncias na labuta do dia a dia, nas manhãs frias para o trabalho, nas maratonas entre florestas, vales verdes e asfaltos, entre continentes e oceanos, chegadas e partidas, encontros e despedidas. Os pés podem nos levar onde quisermos, menos nossos jovens negros das periferias do mundo, que muitas vezes vão e não voltam deixando mães aflitas e famílias destruídas, ou, às vezes retornam sem seus pés pequenos, sem seus sonhos de um futuro, muitas ainda de criança em formação. Nossos pés poderiam ou deveriam levar-nos onde quiséssemos, assim como nossas mentes e nossos corações. Mas, não tem sido assim para eles e para elas pela simples cor da pele, as vezes tem sido um caminho sem volta, sem rastros…

Eu amava tudo o que ele tinha, mas os pés eram poéticos e sensuais. Ali via algo que ninguém mais podia ver, sentia algo que ninguém mais podia sentir, nem ele. Acho que antes de me apaixonar por ele, me apaixonei pelos seus pés grandes, que revelavam algo da alma. Eu mexia em seus pés, os acariciava, assim como ele mexia em meus cabelos crespos fio a fio, acariciando meu couro cabeludo e colocava uma flor. Era manifestação de carinho, de ternura, de confiança, de entrega, era expressão de amor vindo  da delicadeza do alto da minha cabeça às plantas de seus pés. Aqueles pés levaram meus pés a outros lugares desconhecidos, de Pirenópolis aos pés dos quadros de Hambrandt e Van Gogh.

Quando nossos pés  cansaram de caminharem juntos, ambos nos sentimos exaustos e sem energias. Mas isso não significou nosso fim, apenas outros caminhos e outras jornadas. Nossos pés caminharam juntos muitas luas, invernos e primaveras.

Será que eu amava aqueles pés porque não tinha uma boa relação com meus próprios pés? Não sei! Mas agora sei que é diferente, sei também que ele também amava meus pés, e deles os cuidava, curava quando feridos, massageava e os beijavam quando cansados.

Ao final, ele tinha os pés livres, mas nem tanto seu coração. Talvez nossos pés tenham ido até onde puderam ir  seguir juntos. O tempo passou e muitas coisas foram mudando e nossos pés, se distanciando.

Meus pés não se adaptaram às novas mudanças, velho mundo, novas formas de vida, e seus pés se estagnaram. Ambos tivemos o limite a dar o passo à frente, e nossos pés retrocederam…

E agora aqueles pés percorrem outros caminhos, escalam outras montanhas, descansam em outras gramas, percorrem outros vales verdes e florestas…E o meus, também.

– Nossos pés.

 

Marli de Fátima Aguiar, mora na Cidade de São Paulo mais de 25 anos, mas será sempre de Minas Gerais. É oficineira e fomenta a escrita para mulheres negras, militante feminista e também educadora social.