O STF reconheceu a homotransfobia enquanto espécie de racismo no julgamento da ADO 26, mas o Advogado Geral da União envergonhou a instituição em embargos de declaração.

 

Não há lei federal no Brasil que defenda ou conceda quaisquer direitos à população LGBTI+, a discriminação da sociedade chega até as casas legislativas e reflete em uma discriminação por omissão proposital dos legisladores daqueles lugares.

Essa omissão proposital tem por objetivo garantir votos das camadas mais conservadoras da população sob argumento de “defesa da família” ou “defesa dos costumes” criando inimigos imaginários na tentativa de defender uma ideia de bem contra o mal, e, consequentemente, a perpetuação no poder daqueles que ali estão.

Outra faceta dessa omissão é continuar com o projeto de eugenia e higienização social tão presente na sociedade brasileira do século XX e que hoje luta com todas as forças contra o avanço inevitável do reconhecimento da diversidade como riqueza que deve ser cultivada.

Historicamente a homossexualidade e transexualidade passaram por transformações no modo em que a sociedade as enxerga, em sociedades mais antigas muitas vezes as práticas eram comuns e aceitas, com o avanço do cristianismo no mundo ocidental passaram a ser consideradas pecado, posteriormente muitos reinos ou países criminalizaram a prática sob nomes como “sodomia” ou “pederastia”, este presente até hoje no artigo 235 do Código Penal Militar, embora o termo não tenha sido recepcionado pela Constituição Federal.

Posteriormente a sociedade passou a enxergar tais práticas como doença e daí surgiram os sufixos ismo, homossexualismo, transexualismo, etc. Talvez tenha sido um avanço para época, afinal de contas, não se pode punir criminalmente uma doença, mas outras implicações sérias poderiam ser causadas, como, por exemplo, as famosas terapias de conversão que envolvem até mesmo o chamado estupro corretivo, prática em que a pessoa é estuprada para que “aprenda a gostar” do sexo heterossexual e, assim, se “conserte”.

Em 1990 a Organização Mundial da Saúde deixou de considerar a homossexualidade uma doença, daí deixamos de usar o sufixo “ismo” e passamos a usar o sufixo “dade” que representa um adjetivo, uma qualidade, sendo assim, a homossexualidade passou a ser reconhecida não como uma doença, mas como uma qualidade inerente ao ser humano que sente atração sexual ou afetiva por alguém do mesmo sexo.

Da mesma forma a transexualidade foi removida da lista de doenças da OMS em 2018 no CID-11, e, desta maneira, não há mais que se falar no sufixo ismo, que já era muito criticado mesmo antes da remoção.

Hoje, mesmo sendo entendidas como condições, como adjetivos inerentes ao ser humano, muitas pessoas ainda usam os sufixos “ismo”, essas pessoas podem ser divididas basicamente em dois grupos, pessoas que repetem aquilo por falta de conhecimento e pessoas que, mesmo sabendo, usam tal discurso para propagar aquela ideia mencionada anteriormente, do inimigo invisível, do bem contra o mal tentando exercer uma forma de controle sobre aqueles que os seguem.

Essas pessoas provavelmente sonham com a possibilidade de criação de novos lugares como o Hospital Colônia de Barbacena, um depósito de “indesejáveis” que chegou a ser chamado de holocausto brasileiro.

Há ainda aqueles mais contraditórios que além de usarem o sufixo “ismo” dizem que é uma “opção”, ou seja, usam um termo que denota doença e falam que a pessoa escolheu ser assim, isso também tem sérias implicações, é como se falassem que a homossexualidade e a transexualidade fossem falhas de caráter, como se fossem “falta de vergonha” ou coisas do tipo, como se a existência da pessoa se resumisse a sua  orientação sexual ou identidade de gênero, mais uma vez criando o inimigo imaginário, o bem contra o mal.

Esses discursos refletem na violência, não é à toa que o Brasil é um dos países mais violentos com a população LGBTI+ no mundo, não é à toa que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo, isso tudo, ao mesmo tempo em que é o país que mais consome pornografia com pessoas trans no mundo, o discurso que mata é o também o discurso que marginaliza, que faz as pessoas esconderem seus desejos ao ponto de matarem para que seu afeto não seja descoberto e sua reputação arruinada.

 

O STF e o Julgamento da ADO 26

 

A violência contra a população LGBTI+ perdura e o Estado não adota medidas para coibi-las. Essa omissão legislativa proposital é uma política de Estado adotada pelo Brasil que é um genocídio extremamente cruel, nem mesmo os governos ditos progressistas se esforçaram para combate-la.

Como resultado da omissão a Justiça teve que ser questionada, confrontada por diversas vezes, seria aquela omissão justa? O Estado pode criar cidadãos de segunda categoria? O Brasil adota a teoria do Direito Penal do Inimigo?

Assim, diversas ações chegaram a nossa Suprema Corte, ações que questionavam os mais básicos direitos, direito de casar, direito a ter sua identidade de gênero reconhecida, direito de doar sangue, direito de não sofrer violência ou discriminação, sim, tivemos que ir à mais alta corte do país para questionar se somos sujeitos de direito.

O STF tem se mostrado coerente em sua função de defender a Constituição Federal e entendeu em todos esses casos que não há cidadãos de segunda categoria, que a equidade é o norte da CF, e esse é o ponto específico em que queria chegar, a criminalização da homotransfobia pelo STF na ADO 26.

No dia 13 de junho de 2019 o STF reconheceu a homotransfobia enquanto espécie de racismo e muitos conservadores questionaram a decisão da Suprema Corte alegando que estariam legislando, o que é uma falácia, mais uma tentativa de criar o discurso do bem contra o mal.

O STF não “equiparou” a homotransfobia ao crime de racismo como muitos falaram, inclusive como a própria mídia noticiou, o STF reconheceu e há uma grande diferença entre reconhecer e equiparar.

Equiparar implicaria na ideia de criar um novo tipo penal, mas o que o STF fez foi dar entendimento aos termos raça e racismo como termos de cunho político-social, e, não, biológico, sendo assim, a população LGBTI+ também abarcada por aquela lei.

Mais de um ano depois, a decisão ainda não teve muita aplicabilidade, os órgãos públicos estaduais e federais não se adaptaram à nova realidade e a aplicação da decisão, infelizmente, depende desta estrutura, sem a boa vontade dos agentes públicos a decisão é somente um peso de papel de 566 páginas.

Como se não bastasse a falta de aplicabilidade prática até o momento, há ainda avanços dos movimentos reacionários que tentam não somente derrubar a decisão rediscutindo o mérito em peças processuais inadequadas para tal, mas querem ampliar o objeto da ação pedindo abertamente, sem vergonha alguma, que o STF regulamente a possibilidade de segregação de pessoas LGBTI+.

É como se o Brasil estivesse em uma anomalia temporal, estamos em 2020, o sentimento é de 1964, o espírito é de 1984 do universo orwelliano e o desejo de alguns é que estivéssemos nas inquisições de 1530.

 

A posição vergonhosa do Advogado Geral da União

 

O Senhor Advogado Geral da União, José Levi Mello do Amaral Júnior, usando o dispositivo do artigo 103, §3º da Constituição Federal gravou nas páginas dos futuros livros de história um triste e vergonhoso capítulo que manchou o nome da instituição a qual pertence.

A Advocacia Geral da União é um órgão de Estado, um órgão tão importante que está especificamente inserto na Constituição Federal em seu artigo 131, tal artigo se encontra no capítulo “Das funções essenciais à Justiça” tamanha a importância da instituição, não está no capítulo “Do Poder Executivo”, isso reflete muito a intenção do legislador originário de que a AGU seria um órgão de Estado e não de Governo, por mais que assessore a União.

A petição de embargos de declaração, tipo de petição usada para sanar omissões, obscuridades, contradições ou erros materiais em decisões, do Advogado Geral da União é quase criminosa por si só, ela quase alcança a etapa de consumação do iter criminis do crime de racismo quando pede ao STF que considere a hipótese de segregar pessoas LGBTI+, como impossibilitar o uso de banheiros, vestiários, vagões e estabelecimentos de cumprimento de pena. Como, por exemplo, trecho da própria petição petição:

Não obstante, há espaços de convivência que, embora abertos ao público em geral, possuem acesso controlado a partir do critério fisio-biológico de gênero, com o objetivo de resguardar a intimidade de frequentadores considerados vulneráveis. É o caso, por exemplo, da restrição de ingresso em banheiros, vestiários, vagões de transporte público e até estabelecimentos de cumprimento de pena.

Tais argumentos são quase criminosos, banheiros femininos são separados por cabines e banheiros masculinos também possuem cabines além dos mictórios. As necessidades fisiológicas podem ser atendidas longe dos olhares de terceiros em ambos os casos.

Quando o AGU diz que banheiros e instituições penais devem seguir caráter fisio-biológico não somente segrega pessoas trans e as deixa à mercê de violências e toda a sorte de constrangimento, como também segrega e exclui pessoas intersexo, afinal de contas, usando caráter fisio-biológico onde as pessoas intersexo deveriam ter suas necessidades fisiológicas atendidas? A respeito das instituições penais há inclusive resolução do CNJ publicada esse mês sob o número 348/2020.

Em outro trecho ele se mostra favorável à possibilidade de recusa de serviços a pessoas LGBTI+ por sua sexualidade e identidade de gênero, assim vejamos:

Nesse contexto, não é de todo improvável que, tal como sucedeu no caso (Masterpiece Cakeshop v. Colorado Civil Rights Comission, 584 U.S., 2018), algum artista objete que a realização de um serviço com caracterização LGBTI+ possa ser conflitivo com sua filosofia de vida, o que lhe conduziria a recursar o serviço especializado. Objeções por motivo de crença religiosa ou convicção filosófica ou política (artigo 5º, inciso VIII, da Constituição) configuram o âmbito de proteção das liberdades de consciência e crença, e também podem fundamentar, ao menos em tese, hipóteses de exclusão de ilicitude de atos que poderiam ser enquadrados nas hipóteses típicas da Lei nº 7.716/1989.

A visão distorcida do Advogado Geral da União não enxerga o conceito de identidade de gênero amplamente reconhecido nas doutrinas e jurisprudências nacionais e internacionais, também não reconhece que a pluralidade humana vai além do obsoleto conceito de binariedade do sexo biológico já que existem pessoas que não se enquadram nesses padrões, como, por exemplo, as pessoas intersexo.

Negar a identidade de gênero é negar a Constituição Federal que em seu artigo 3º I e IV estabelece como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

É negar tratados como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948); o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966); o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966); o Protocolo de São Salvador (1988); o Declaração da Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata (Durban, 2001), etc.

É negar a opinião consultiva 24/2017 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos; o Decreto 8.727/16; o provimento 73/2018 do CNJ; a resolução 348/2020 do CNJ, etc.

É legitimar ações de violência contra pessoas trans ao passo que o Brasil é o país que mais nos mata no mundo, é legitimar violência sexual como foi o caso de um processo do TRT18 em que uma empresa foi condenada por forçar mulheres trans a usarem o vestiário masculino, local onde levavam “tapas na bunda” e eram assediadas pelos funcionários homens como uma testemunha narra no processo.

Será que valemos tão pouco senhor Advogado Geral da União? Será que nossa existência é tão repugnante assim aos seus olhos?

Será que a próxima petição assinada por Vossa Senhoria irá requisitar a criação de guetos? De campos de concentração?

Ao assinar a petição dos embargos, que sinceramente tenho minhas dúvidas se foi realmente redigida por Vossa Senhoria, assinou um dos capítulos mais vergonhosos da história da Advocacia Geral da União, uma instituição nobre, honrada e essencial à democracia.

Encerro aqui minhas considerações sobre os embargos.

Amanda Souto Baliza. Advogada e ativista pelos direitos das pessoas LGBTI+. Goiana, mulher trans e lésbica, 29 anos. Especialista em Direito da Saúde. Atuação em Direito Criminal, Direito da Saúde e Direito LGBTI+. Colaboradora jurídica da Aliança Nacional LGBTI+ Colaboradora jurídica da Central Nacional de Denúncias da Aliança LGBTI+ Coordenadora do projeto de manual de segurança pública e LGBTI+ da Aliança Nacional LGBTI+ Coordenadora da área de segurança pública do projeto Cumpra-se na Aliança Nacional LGBTI+ Membro da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB/GO Membro da Comissão da Mulher Advogada da OAB/GO Membro da Comissão de Direito Médico, sanitário e defesa da saúde da OAB/GO