Recentemente o senador Flávio Bolsonaro faltou uma acareação marcada pelo Ministério Público para cantar em um programa de TV que “todo maconheiro dá a toga” e “fuma cu”. O cu é também uma fixação comum em diversas “brincadeiras” e “piadas” de Jair Bolsonaro. Enquanto ainda era deputado, por exemplo, ele escreveu “queimar rosca todo dia” em um papel e o mostrou para ativistas que protestavam contra a tomada de Marco Feliciano da Comissão de Direitos Humanos da Câmara. E, principalmente, é uma obsessão do guru da extrema-direita, Olavo de Carvalho, que está sempre com o cu na boca. O colunista da Época, Eduardo Salgado, fez até mesmo uma extensa lista das muitas vezes que Olavo citou a palavra cu em suas publicações. Foram 24 vezes no período de três meses analisados pelo jornalista. Em três meses, Olavo passou praticamente um mês só falando de cu.

Os exemplos são muitos. De cair o cu da bunda.

Mas… o que tem a ver o cu com as calças? Ou melhor, o cu tem a ver com política? Bem, por óbvio muitas vezes trata-se de uma manifestação explícita de homofobia, mas não é apenas isso. Eu comecei a escrever esse texto porque eu queria entender fixação da direita com o cu.  Então, a partir dessas indagações iniciais acabei lendo a obra “Pelo Cu: Políticas Anais”, de Javier Sáez e Sejo Carrascosa [1] e entendi que essa não é uma questão da extrema-direita, é uma questão política.

Esta é uma obra que, como dizem Rafael Leopoldo e Leandro Colling na Introdução, “retira a analidade do campo privado e a coloca no campo social e político”. Eu quero, então, colocar o cu para jogo e falar bem mais sobre esse tema a partir desse livro.

 

O deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ), mostra cartaz para manifestantes “ Queimar rosca todo dia” durante sessão presidida pelo deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP), na sessão da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, no Congresso Nacional, em Brasília. Grupos contrários a sua presidência realizam protesto.

Brasília, DF, 13.03.2013. Foto: Pedro Ladeira/Frame/Folhapress.

 

Vai tomar no cu

 

O cu é antes de tudo um xingamento, um insulto. Ocupa, portanto, dentro da linguagem um lugar negativo. Nós reproduzimos essas expressões inconscientemente e, assim, transmitimos a ideia pejorativa do cu:

Quando falamos de um regime de poder ou de um regime cultural heterocentrado (por exemplo, o machismo), não se trata de um poder vertical e hierárquico que planeja o ódio às mulheres, ou o ódio aos gays, ou o ódio ao fato de ser penetrado. É um regime de discurso e práticas que simplesmente funciona, exerce-se, repete-se continuamente em expressões cotidianas de múltiplos lugares e momentos, criando realidade (e ferindo) a partir dessa meta repetição. Aprende-se esse valor negativo que cria o objeto – e não o contrário. [2] (grifos no original)

O aspecto negativo também recai sobre uma hierarquização do sexo anal. Porque a injúria é sempre “vai tomar no cu” e não “vai comer um cu”? Quem está no papel passivo do ato, a pessoa penetrada, é a quem se direciona o ódio. Isso tem uma relação com a dicotomia entre dominador-dominado, forte-fraco, poderoso-submisso, fato que ressoa quando pensamos também em gênero: homem-mulher, masculino-feminino. [3] Não por menos, “dentro dessa mesma lógica, o homem penetrado é equiparado a esse estatuto inferior “de mulher”. Como o único corpo penetrável nesse imaginário coletivo é o da mulher, um homem ser penetrado é a maior agressão possível à sua virilidade, ficando rebaixado ao feminino, perdendo sua honra, seu status superior”. [4]

O cu representa para o homem-macho um bem precioso a ser protegido contra a penetração, que representaria a perda da masculinidade. A masculinidade frágil pode chegar até mesmo ao ponto dos homens não se higienizarem corretamente, como nessa matéria do Buzzfeed que fala sobre como os homens não limpam a bunda sob o argumento de que “quem limpa o quintal espera visita”.

 

 

Se a ideia do homem-de-cu-fechado[5] pode parecer tosca e risível para os milhares de tuiteros incrédulos, na verdade não se trata de piada. A ideia do cu impenetrável leva a população masculina literalmente à morte, uma vez que, por exemplo, exames de prevenção de câncer de próstata viram tabus e ridicularização.

A penetração, vista como manifestação da virilidade e demonstração de poder, ganha forma também a partir dos mecanismos de controle repressivos do Estado. Um exemplo citado no livro é o da denúncia feita pelo Human Rights Watch ao assassinato de ao menos 500 homossexuais no Iraque e também a adoção de uma forma brutal de tortura com a utilização de cola no ânus. Esta matéria da BBC afirma o seguinte:

 

O relatório cita depoimentos de pessoas que tiveram suas casas invadidas por grupos armados, usando máscaras. Dias depois, relataram as testemunhas, corpos de homossexuais são encontrados em lixões, mutilados e apresentando sinais de tortura.

Às vezes, palavras ofensivas são inscritas nos corpos.

“Ouvimos histórias, confirmadas por médicos, de homens que tiveram cola aplicada em seu ânus e depois foram obrigados a tomar laxantes, o que leva a uma morte muito dolorosa”, disse Rasha Mumneh, um dos autores do relatório.

 

Mas não precisamos ir tão longe para perceber atrocidades cometidas pelo Estado contra a população LGBT. No Brasil, a repressão da Ditadura Militar foi igualmente terrível. “A ideologia dominante continha claramente uma perspectiva homofóbica, que relacionava a homossexualidade às esquerdas e à subversão”, relata a Comissão Verdade do Estado de São Paulo.

A Ditadura foi especialmente cruel com métodos de tortura que envolviam o ânus. A “cadeira do dragão” foi um método de tortura muito utilizado que consistia numa cadeira recoberta com uma chapa metálica e braços de madeira no qual a pessoa era amarrada com fios elétricos desencapados pelo tronco, pelos tornozelos e pelos braços e, depois, eram eletrocutadas com fios postos no ânus e na vagina. A Comissão Nacional da Verdade também trouxe depoimentos sobre o sadismo dos repressores, que enfiavam cabos de vassoura e até ratos pelo ânus de suas vítimas.

 

Aparelho excretor não reproduz

 

Foto do então candidato à presidência Levy Fidelix em debate na TV.

 

Sáez e Carracosa contam um caso ocorrido em junho de 2005 em Madri. Havia uma manifestação do grupo ultradireitista Foro de la Familia contra o direito ao matrimônio para homossexuais que contou com o apoio da Igreja Católica e o comparecimento de diversos líderes religiosos. O que chamou atenção nesse protesto foi uma entrevista transmitida ao vivo pela COPE que depois viralizou na internet:

 

REPÓRTER: Uma mãe de família se aproximou com alguns de seus filhos. Aqui temos suas duas crianças ao lado. Margarita, boa tarde.

MARGARITA: Boa tarde.

REPÓRTER: Feliz de estar aqui apoiando a manifestação…

MARGARITA: Igualmente, olha, sim estou feliz porque sou mãe e esposa, e tenho oito filhos. E penso que essa lei me agride pessoalmente como mãe, porque se uma mulher não se sente protegida pelas leis civis e pelo seu marido, dificilmente vai querer ter filhos. E quero falar outra coisa. Estudei neurociência quando fazia psicologia, então ali nos falavam de que quando os animais têm lesionada uma glândula que se chama amídalas, começam a apresentar comportamentos tais como os dos homossexuais: copular pelo ânus, onde o ânus ao receber esses… esses espermas não podem nunca gerar, porque estão com cocô. Eu não creio que isso seja interessante para sociedade em nenhum aspecto…[6]

 

Pausa para risos.

Uma situação igualmente tosca ocorreu no Brasil durante um debate presidencial em 2014 quando o então candidato do PRTB-SP, Levy Fidelix, respondeu uma pergunta formulada pela Luciana Genro (PSOL): “Porque as pessoas que defendem tanto a família se recusam a reconhecer como família um casal do mesmo sexo?”, ela indagou. Ele respondeu: “Tenho 62 anos, pelo que vi na vida dois iguais não fazem filho. E digo mais, desculpe mas aparelho excretor não reproduz”.

Desconsiderando, apenas neste momento, os inúmeros problemas dessa fala para ressaltar apenas a consideração de que o ânus faz parte do aparelho digestivo e não tem função reprodutora. Logo, por esta lógica, a utilização erótica do cu é considerada uma perversão. Essa é uma visão particularmente ligada à questão religiosa cristã. “O termo sodomia vem do nome da antiga cidade Sodoma (SeDoM em hebraico, derivado da raiz SOD = secreto), a qual, segundo a Bíblia, foi destruída por Deus por seus muitos pecados. Na fala atual se identifica com a prática do sexo anal apesar de que Sodoma, na Bíblia, não foi castigada por esses atos” [7], explica Saez e Carrascosa a partir do trabalho de John Boswell em “Cristianismo, Tolerância Social e Homossexualidade e “Os Gays na Europa Ocidental desde o começo da Era Cristão até o Século XIV”. Eles ressaltam como a interpretação da Bíblia em que se fez a associação entre sodomia e sexo anal é documentada pela primeira vez com Santo Agostinho. É a partir dessa interpretação que ocorrem as primeiras perseguições aos homossexuais na metade do século VI “quando o imperador bizantino Justiniano e sua esposa Teodora proíbem, por motivos políticos, os ‘atos contra a natureza’, amparando-se em razões religiosas” [8].

A proibição do “ato antinatural” não é uma coisa do passado, esse tipo de legislação perseguiu homossexuais durante todas as épocas. E maior prova de que um gay era de fato gay era a constatação de que realizava sexo anal. Pode-se perceber, então, como o cu era vigiado e condenado e também como a heterossexualidade joga suas práticas para debaixo do tapete e condena sempre “o outro”. Vale lembrar que a perseguição aos homossexuais ocorre até hoje em inúmeros países, inclusive com pena de morte.

O Brasil, por sua vez, foi uma das primeiras nações do mundo a descriminalizar a homossexualidade, feito realizado em 1830. No entanto, ainda em relação à legislação penal, até dois mil e nove considerava que o crime de estupro envolvia apenas a violação à vagina. O ânus não poderia ser estuprado, ele estava inserido em outra tipificação jurídico-penal, a do “atentado violento ao pudor”, com uma pena menor do que a do estupro, inclusive, rebaixando o cu em uma hierarquização de orifícios passíveis de violação.

Ainda se tem um longo caminho pela frente no que diz respeito a conquistas de direitos por parte da população LGBT+, mas não é apenas no campo jurídico-institucional que travamos batalhas. O combustível da doutrina religiosa cristã ainda queima, como demonstrado na fala do presidenciável Levy Fidelix em rede nacional e os reiterados discursos de pastores evangélicos, como Silas Malafaia, que teimam em se referir à homossexualidade como “prática homossexual”. E que prática seria essa? Dar o cu.

Mas se é verdade que o cu não faz parte da reprodução, também é que o sexo nem sempre – ou quase nunca, aliás – tem como objetivo a reprodução. No outro extremo do sistema digestivo está a boca. Sua função primordial também não é a reprodução, mas não por menos a usamos eroticamente, em beijos calorosos e no sexo oral. Ainda que seja um “aparelho excretor” o fato é que “o cu sempre foi usado como órgão sexual para o sexo e é aí que o sistema dominante de sexo e gênero começa a estremecer”.[9]

Apesar de ser sempre associado à população homossexual masculina, o sexo anal é praticado também por casais heterossexuais, lésbicas e bissexuais. Não é necessário nem mesmo um pênis para tanto. O cu não tem gênero (apesar de ser constantemente generificado), todas as pessoas são agraciadas com um.  O sexo anal dá um bug nas normatizações sexuais:

A lógica tradicional heterocentrada, com seu binarismo pênis (homem) – vagina (mulher), como modelo “natural”, o normal, o harmonioso, o que deve ser, vem abaixo quando entra em jogo um órgão que é comum a todos os sexos e que não está, portanto, marcado pelo gênero masculino ou feminino.

É um lugar estranhamente vazio das marcas de gênero. O binarismo sexual e o mito da cópula heterossexual-reprodutiva não podem operar nesse lugar do anal, que desafia sua lógica e os coloca em dúvida. Inclusive questiona outro binarismo, o que divide os seres humanos em heterossexuais e homossexuais. E ainda que, como vimos, uma tradição milenar identifique continuamente a sodomia com a penetração entre homens, a realidade é que também homens e mulheres se penetram analmente em todas as combinações possíveis, com o que, na prática, se desmorona essa divisão. E se o que define um homossexual já não é mais a penetração anal, o que o define? Deixamos essa pergunta absurda à curiosidade médica-sexológica. Para nós, o que importa é precisamente a incoerência dessas definições.”[10]

 

Paul Beatriz Preciado, no Manifesto Contrassexual, enumera as razões pelas quais o cu é tão… contrassexual:

 

Um: o ânus é o centro erógeno universal situado além dos limites anatômicos impostos pela diferença sexual, onde os papéis e os registros aparecem como universalmente reversíveis (quem não tem um ânus?). Dois: o ânus é uma zona primordial da passividade, um centro produtor de excitação e de prazer que não figura na lista de pontos prescritos como orgásticos. Três: o ânus constitui um espaço de trabalho tecnológico; é uma fábrica de reelaboração do corpo contrassexual pós-humano. O trabalho do ânus não é destinado à reprodução nem está baseado numa relação romântica. Ele gera benefícios que não podem ser medidos dentro de uma economia heterocentrada. Pelo ânus, o sistema tradicional da representação sexo/gênero vai à merda. [11]

 

Prazer anal contra o capital

 

“Urge a mão invisível do mercado ser enfiada no cu do Paulo Guedes”, dizia um tuíte que vi recentemente já em meio a leitura deste livro e me fez lembrar também da página do Facebook que diz no nome “quando o assunto é sexo, até quem é de esquerda, é de direita”. Isso vai ao encontro de uma crítica (breve) feita em “Pelo Cu: políticas anais” que ressalta também que “a direita não é o único que tem problemas com o anal”[12].

“A grande tarefa do marxismo é o sexo”, diz a socióloga Marília Moschkovich em artigo para o blog da Boitempo. Ela ressalta:

Um dos maiores desafios teóricos da esquerda e, em especial, dos marxistas, em nosso tempo, é pensar o sexo, as práticas sexuais, a sexualidade, de maneira revolucionária e por meio do materialismo dialético. Mais ainda: reestruturar as próprias relações táticas e políticas no campo da esquerda, de fato, a partir dessa compreensão. Esse trabalho precisa ser coletivo, minucioso. Cumpre quase uma função analítica, fosse possível colocar o acúmulo, as pessoas, as práticas, movimentos, partidos, instituições – quer dizer, colocar a própria história – num divã.

E “Pelo Cu: políticas anais” nos oferece uma contribuição incrível para pensar sobre sociedade, vigilância, estigmatização, discurso, religião, enfim, política:

“O que estamos afirmando neste livro é precisamente isso, que o gênero também se produz por meio da regulação do cu e que, de fato, o acesso ao “humano” também tem relação com essa questão, na medida em que o sexo anal pode acarretar nada mais nada menos que a morte em oito países do mundo, e a prisão em mais de oitenta.”[13]

Além disso, é uma obra que nos coloca no nosso próprio divã e nos força a compreender a complexidade do “regime heterocentrado”[14], “um regime cuja elaboração participamos todos em maior ou menor medida”[15] com nossas piadas com passivos, nosso controle sobre crianças afeminadas, a perseguição a transexuais, e todo o aparato violento da heterossexualidade compulsória e da misoginia.

No artigo mencionado, Marília nos chama atenção de como o homem cisgênero branco heterossexual é o sujeito universal mesmo entre a esquerda e como mulheres, LGBTs, negros, somos considerados um “recorte” da classe trabalhadora quando na verdade somos a classe trabalhadora. E é curioso que o primeiro comentário no blog da Boitempo ao seu texto – em referência à frase final do texto – tenha sido de um sujeito que disse: “’A tarefa revolucionária precisa ser, hoje, antes de mais nada, sexual.’ Ou seja, deixa o proletariado tomando no cu que isso é revolucionário.”

Mais uma vez, o cu.

Como diz Sáez e Carrascosa, “o ânus é uma grande metáfora de controle dos sistemas sociais”. Talvez possamos fazer diferente do comentarista, e pensemos (com) o cu politicamente, ativamente, radicalmente. De uma forma mais parecida com a “política do buraco negro” de Paco Vidarte em Ética Bicha: “absorver tudo, apoderar-se de tudo, chupar tudo sem dar nada em troca. (…) Não dar nada ao sistema e lhes roubar tudo o que cair nas proximidades do nosso orifício negro”[16].  Tirando o cu do campo privado e coletivizando o cu. Um cumunismo sexual.

Arrepiei até os pelos do cu aqui.

 

 

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Referências

[1] Pg. 10.

[2] Pg. 28.

[3] Pg. 30.

[4] Pg. 31.

[5] Pg 33.

[6] Pg. 70

[7] Pg. 56.

[8] Pg. 58.

[9] Pg. 65.

[10] Pg. 65-66.

[11] Preciado apud LEOPOLDO, Rafael; COLLING, Leandro.

[12] Pg. 71.

[13] Pg. 73.

[14] Pg. 75.

[15] Pg. 75.

[16] VIDARTE apud SEAZ; CARRASCOSA.

 

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