Tradução do artigo “Dave Chappelle’s Brittle Ego”, publicado no New York Times.

Temos geralmente os mesmos debates sobre comédia, repetidamente. Vamos dirigir-nos aos primeiros: A arte deve ser feita sem restrições. A liberdade de expressão reina suprema. Por vezes, a boa arte deve ser desconfortável, e por vezes pessoas más podem fazer boa arte. Os comediantes, em particular, vão bater para cima e para baixo e de um lado para o outro.

Também é verdade: A comédia não está acima de críticas, mesmo que os comediantes mais famosos e mais ricos continuem a insultar aqueles que os questionam. É só uma piada, certo? Relaxa. Toda a crítica é evitada com este esquema, no qual quando se opõe a qualquer coisa que um comediante diga, o problema é seu. É você quem tem a mente estreita ou “frágil” ou sem humor.

“Cala a boca”, Dave Chappelle se recorda dizer a uma mulher que teve a ousadia de desafiar a sua comédia, usando uma calúnia sexista e rindo de como ele é espirituoso, como se fosse o primeiro homem a entregar uma frase tão original e engraçada. “Antes que eu mate e de coloque no porta-malas. Não tem ninguém por aqui”. O público aplaude, antes do Sr. Chappelle explicar que ele não ameaçou, de fato, a mulher: “Me senti assim, mas não foi isso que eu disse. Fui mais esperto do que isso”.

O Sr. Chappelle gasta muito tempo de “The Closer”, o seu último especial de comédia para a Netflix, espertamente se desviando de críticas. O show é uma exibição de 72 minutos da própria fragilidade do comediante. O auto-proclamado “GOAT” (acrônimo para “o maior de todos os tempos”) de stand-up proporciona cinco ou seis momentos lúcidos de brilho, rodeado por uma tirada triste de fúria incoerente e fervorosa, misoginia, homofobia e transfobia.

Se há brilhantismo em “The Closer”, é que o Sr. Chappelle faz movimentos retóricos óbvios mas elegantes que enquadram quaisquer objeções ao seu trabalho como irrazoáveis. Ele está apenas sendo “brutalmente honesto”. Ele está apenas dizendo a parte silenciosa em voz alta. Ele está apenas afirmando “fatos”. Ele está apenas nos fazendo pensar. Mas quando todo show de comédia é concebido como uma série de movimentos estratégicos para dizer o que se quer e isolar-se de críticas válidas, não tenho certeza que você está realmente fazendo comédia.

Ao longo do especial, o Sr. Chappelle está singularmente fixado na comunidade L.G.B.T.Q., como tem estado nos últimos anos. Ele colhe cada pedaço de fruta que está ao seu alcance e mastiga gratuitamente. Muitos dos discursos retóricos do Sr. Chappelle são extraordinariamente datados, o tipo de comédia que se pode esperar de um boomer conservador, agitado com a ideia de homossexualidade. Por vezes, a sua voz baixa a um sussurro rouco, preparando-nos para um grande golpe de sabedoria – mas ela nunca chega. De vez em quando, ele observa que, oh, rapaz, está agora em apuros, como um rapazinho travesso que simplesmente não se consegue conter.

Em algum lugar, enterrado em meios aos absurdos, está uma observação interessante e precisa sobre a comunidade gay branca que convenientemente é capaz de reivindicar a branquitude ao seu bel prazer. Há uma observação convincente sobre o progresso relativamente significativo que a comunidade L.G.B.T.Q. tem feito, enquanto o progresso no sentido da equidade racial tem sido muito mais lento. Mas, nestas formulações, não há negros homossexuais. O Sr. Chappelle coloca pessoas de diferentes grupos marginalizados uns contra os outros, sugerindo insensivelmente que as pessoas trans estão fazendo o equivalente de gênero do blackface.

No momento seguinte, o Sr. Chappelle diz algo sobre como uma pessoa negra homossexual nunca exibiria os comportamentos a que se opõe, uma afirmação que muitos contestariam. O poeta Saeed Jones, por exemplo, escreveu na GQ que ver “The Closer” parecia uma traição: “Me senti como se tivesse sido esfaqueado por alguém admirava e agora ele exigia que eu parasse de sangrar”.

Mais tarde no show, o Sr. Chappelle oferece pensamentos divagantes sobre feminismo usando uma definição do Dicionário Webster, exemplificando ainda mais como a sua leitura é limitada. Ele faz uma piada fatigada sobre como ele pensava que “feminista” significava “sapatão desalinhada” – e ei, eu entendo. Se eu estivesse no seu radar, ele considerar-me-ia uma sapatão desalinhada, ou pior. (Alguns podem considerar essa estimativa correta. Felizmente a minha esposa não o faz.) Depois, em outro desses raros momentos de lucidez, o Sr. Chappelle fala sobre o racismo histórico do feminismo dominante. Logo quando se pensa que ele vai endireitar o navio, ele começa a gritar incoerentemente sobre #MeToo. Não consigo te dizer qual era o seu ponto ali.

Este é um simulacro desbotado do outrora grande comediante, que agora usa a sua plataforma significativa para transmitir queixas contra as muitas pessoas que despreza, evitando habilmente qualquer responsabilidade. Se não gostamos de suas piadas, esta é a mensagem, nós somos o problema, não ele.

Esta performance tóxica aumenta quando o Sr. Chappelle compartilha uma história desoladora sobre a sua amiga trans Daphne Dorman, uma comediante, que morreu por suicídio – sugerindo que se ela estava de acordo com a sua comédia, como se atreve alguém a ter um problema? A história é agridoce e por vezes engraçada, e depois é trágica, e a pior parte é que o Sr. Chappelle está claramente muito satisfeito consigo mesmo quando chega ao cerne da piada. Ele pensa ter ganho uma discussão quando, na realidade, está explorando a morte de uma amiga. Para a comédia. Claro, não conhecemos a Sra. Dorman; resistir a esse retrato nos deixa em um nó impossível. Mais uma vez, o Sr. Chappelle evita qualquer resistência.

Um dos momentos mais estranhos mas mais reveladores de “The Closer” é quando o Sr. Chappelle defende DaBaby, um rapper que ocupou os noticiários por ter feito comentários homofóbicos bastante graves, e o seu companheiro comediante Kevin Hart, que uma vez perdeu a oportunidade de apresentar o Óscar por … fazer comentários homofóbicos. Ambos os homens enfrentaram consequências profissionais para os seus erros, mas nenhum deles foi cancelado: O Sr. Hart continua a ser um dos comediantes mais bem pagos do mundo. DaBaby tem mais de 43 milhões de ouvintes mensais em Spotify.

No final do seu especial, o Sr. Chappelle admoesta a comunidade L.G.B.T.Q. uma última vez, implorando-nos que deixemos o seu “povo” em paz. Se não ficou claro pelas suas palavras, as fotos dele com os seus famosos amigos nos créditos finais de “The Closer” deixam bem claro que o povo de Dave Chappelle não é homem nem mulher nem negro. O seu povo são celebridades ricas, e ele ressente-se até da possibilidade de eles enfrentarem consequências para os seus atos.

 

Roxane Gay é uma escritora de opinião contribuinte do The New York Times. Ela é autora dos livros Ayiti, An Untamed State, Bad Feminist, Difficult Women and Hunger e de World of Wakanda for Marvel. Ela também tem um boletim informativo, The Audacity.

Traduzido por Bruna Rangel.

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