Uma das coisas que eu aprendi na minha vida enquanto mulher transexual foi respeitar a identidade dos outros.

Qual identidade? Qualquer uma que me disserem.

Pois se o que mais quis na vida foi ter o respeito que tanto penei para conseguir e que parece que só hoje consegui um vislumbre do que sempre desejei, por que eu desrespeitaria a identidade dos outros? Por que eu agrediria a identidade dos outros?

Uma das coisas que eu acho mais deprimente em alguns textos feministas radicais é a ideia de que identidade de gênero não existe e tudo se resume a papel de gênero: não é que você é mulher, é que você quer se vestir como a sociedade determinou que só uma mulher pode se vestir, maquiar-se como só a uma mulher é permitido, usar o salto que só uma mulher pode, e por aí vai.

Nisso pipocam relatos, geralmente estrangeiros, de pessoas que dizem que um dia foram transexuais mas descobriram que na verdade o que estavam experimentando eram outro papel de gênero que sempre quiseram e que sempre lhe proibiram.

Uma das coisas que eu SEMPRE digo para as pessoas que me procuram com perguntas do tipo: “gosto de usar roupas “de mulher” (sic), gosto de me maquiar, gosto de usar um salto; será que sou transexual ou travesti?” é que a identidade de gênero não está na roupa, na maquiagem, no salto.

Outro dia uma pessoa me perguntou se era mulher já que seu sonho era poder servir o seu marido. Respondi que há homens gays que vivem uma relação servil, e logo, querer servir o seu marido não só não significa necessariamente que se é uma mulher, como também parte de um pressuposto que ser mulher é servir o marido – um pressuposto deplorável e que tanto as feministas lutaram para livrar as mulheres dessa condição quase essencialista.

Precisei ao longo da vida responder mentalmente e responder para os outros umas milhares de vezes por que eu me dizia mulher. Posso afirmar, eu a Daniela, com bastante propriedade, atualmente, que quando eu digo que sou mulher, isso independente de tudo que as pessoas podem ver, o ser mulher é algo tão íntimo que eu mesma tateando a minha superfície passei muito tempo achando não ser possível.

Não existe qualquer lembrança da minha infância a mais remota que eu me visse como menino, como homem. Eu tinha uma ojeriza imensa por tudo que diziam ser dos meninos, pelo comportamento que deveria ser dos meninos – o papel de gênero; e pelos meninos em si. Invariavelmente a sociedade me jogou no grupo gay, pois para a sociedade, se você fugir ao papel de gênero esperado, significa que você é homossexual – mesmo que não o seja.

Frequentando espaços e grupos gays percebi que então eu poderia vestir-me com roupas femininas, como muitos outros meninos gays faziam; poderia rebolar como muitos outros meninos gays faziam; poderia ter os homens que eu queria e que no entanto me diziam o tempo todo que aquilo era algo deplorável, dado que homem não ficava com homem; poderia me encaixar dentro do papel de gênero que a sociedade decidiu que só à mulher é permitido e… continuar homem.

E aí reside o problema: continuar homem, como eu continuaria o que eu nunca me reconheci ser?

Passei muitos anos tentando me afirmar como algo que jamais eu fui: um homem gay. Passei muitos anos usufruindo do papel de gênero considerado feminino dentro dos espaços gays, e ouvindo que todos podiam fazer aquilo: brincar de gênero. Mas aí é que instalava-se o problema: brincar de gênero, como eu brincaria de algo que para mim não era uma brincadeira?

Passei muitos anos tentando me encontrar entre os gays, e tudo que consegui encontrar foi um enorme vazio. Eu não era decididamente como eles, ainda que eu observasse os considerados mais femininos.

O que vinha do meu íntimo e que eu sentia necessitar não era apenas colocar uma roupa feminina, ou comportar-me como a sociedade julgava que às mulheres era permitido.

Acredito que a construção da identidade de gênero não toca apenas o social – aquilo que a sociedade define como sendo homem ou mulher, ela toca entranhas muito profundas do meu aparato psíquico; pois a nossa identidade também é construída muito internamente. Falando aqui do cérebro, um órgão ainda pouco estudado e pouco explorado; um órgão do qual ainda pouco se sabe.

A pergunta: o que é um homem ou uma mulher não pode se resumir a “é aquilo que a sociedade te impõe ser por conta de uma escolha arbitrária: escolheram que determinada parte anatômica define homens e mulheres”. Não para mim, para mim essa afirmação não consegue se sustentar.

Quando me pergunto por que jamais na minha infância consegui me identificar como homem, quando lembro quantas vezes rezei para Deus me transformar no homem que diziam que eu era, não consigo chegar a nenhuma resposta que vai se encaixar para todo mundo. E eu penso que isso é ótimo, e que é no mínimo dedutível. O ser humano não é uma máquina, um produto de uma fábrica de produção em série. Em que todos são idênticos, em que a construção identitária de todos se dá da mesma forma.

Creio que o que significa ser mulher e o que é ser a mulher que eu sou para mim só cabe à Daniela, e cada uma das demais mulheres terão sua concepção muito única de si mesmas.

Agora, eu tenho uma verdadeira repulsa que me tratem como homem, me vejam como homem, coloquem-me no grupo dos homens. Não é algo que apareceu no dia que eu descobri o que significa a transexualidade – algo que foi bem tarde, já quase na vida adulta.

A bem da verdade, uma vez que a transexualidade é uma identidade artificial e categorizada pelas pessoas cisgêneras, talvez eu a encare uma prisão à medida que as mesmas pessoas cisgêneras – os psiquiatras – que rezam possuir a chave de todas as definições para a transexualidade, sejam os mesmos que aprisionam as pessoas transexuais dentro de um discurso patologizante, biologiziante e essencialista.

Você só pode ser transexual se você se encaixar na definição de transexualismo (sic) designada pelo CID 10.

Mas eu não sou essa transexual, a imposta; pois então eu sairia de uma prisão, a que me diziam que eu era um homem e cairia em outra: a que ditam o que é uma mulher transexual.

A bem da verdade a identidade transexual ainda é necessária hoje em dia por motivos políticos. Para poder ter acesso ao tratamento médico e às instâncias do judiciário que precisamos.

Eu não me resumo a ser transexual, a transexualidade não define como um todo a pessoa que eu sou, ela é uma mera parte de mim.

Ademais, passei tanto tempo da vida acreditando que para ser reconhecida como mulher eu precisava me encaixar em todos os estereótipos de gênero que definiram para uma mulher. Cheguei à conclusão hoje que isso é uma bobagem – pelo menos para mim.

Eu me cansei de ver competições da que é mais mulher, mais transexual, mais cirurgiada, mais feminina, mais vaidosa, mais siliconizada, mais hormonizada. Eu não preciso disso.

Eu não preciso exibir meu corpo atrás de aplausos, pois os aplausos que eu precisava – os meus próprios – eu já os tenho.

Eu não preciso me aprisionar nessa competição com outras mulheres, sejam elas cis ou trans, pois jamais escaparei de uma verdade: eu não sou elas, e elas não são eu. Somos invariavelmente diferentes. E eu precisei aprender a conviver com a minha individualidade, a minha marcante diferença para todas elas.

Eu não preciso ser feminina para ser mulher, ter silicone para ser mulher, ser cirurgiada para ser mulher, ser vaidosa para ser mulher, ser super hormonizada para ser mulher; eu não preciso de nada disso para ser mulher pois o ser mulher não está instalado em nada disso. O ser mulher está em um lugar que ninguém poderá ver ou tocar, e que só eu mesma tenho acesso, dentro do meu mais íntimo ser.

Eu tampouco preciso da aprovação de todas as pessoas para ser mulher, podem falar em suas rodas de amigos que eu sou um homem, que eu sou um macho, que eu sou XY, que eu sou isso ou aquilo; não vou acabar meus dias de vida me martirizando por conta disso, afinal, não posso mudar a vontade das pessoas serem transfóbicas ou a ignorância de todas as pessoas; mas exijo que na minha frente me tratem por Daniela, pois do contrário, que bom que ainda existe algo nesse país que todos devem seguir: a Constituição Federal, a mesma que diz que ninguém será desrespeitado ou discriminado.

Não perco mais meu tempo me perguntando: será que fulano descobriu que sou trans? Eu realmente não me importo. Mas eu me importo para o respeito que a mim é devido, o mesmo que eu uso para respeitar pessoas que inclusive eu penso horrores sobre as mesmas.

Deixei de usar quilos de maquiagem, de usar salto 15, de usar mil vestidos, de forçar um andar rebolado para me encararem como mulher. Pois além de eu não precisar disso para ser a mulher que eu sou, nada disso ao meu ver traduz o que é ser mulher. Afinal de contas, aqueles meus amigos gays do começo, que usavam tudo isso e se comportavam de forma feminina, eram os mesmos que continuavam a se afirmar homens.

Então, não confundo jamais papel de gênero com identidade de gênero; posso não ser nada vaidosa grande parte do tempo, posso ficar sem me depilar, posso ficar no jeans e na camiseta, posso deixar o cabeleireiro para lá, a manicure e a pedicure para lá; e nada disso vai alterar um fato que a mim é muito sólido: eu sou mulher.

Então, é preciso nunca confundirmos papeis de gênero com identidade de gênero.

O papel de gênero é descartável, a minha identidade de gênero não.

De calça, burca, vestido, jeans, ou as roupas consideradas masculinas, continuarei a ser a Daniela.

E como eu escolheria ter uma identidade que a sociedade não só rejeita, discrimina e inferioriza, como diz que é pior que aquela outra que me impuseram no dia que nasci: a de homem? Quem escolhe passar a vida lutando contra o sofrimento?

Daniela Andrade