O Brasil ultrapassou recentemente a marca de 41 mil óbitos em decorrência da covid-19. Considerando que os números divulgados estão bem longe da realidade devido a subnotificação, falta de testes e má qualidade destes testes, é provável que o número de vítimas seja bem maior. São 41 mil pessoas, homens, mulheres, pais, mães, filhos, avós e avôs que não farão parte da próxima foto do álbum de família. É como se dezenas de municípios tivessem sido excluídos do mapa em três meses. Milhares de famílias não tiveram sequer o direito de uma despedida, 41 mil pessoas que morreram longe de qualquer rosto familiar. Esperávamos uma nota lamentando a perda dessas vítimas, uma palavra de consolo para esses familiares, mas no Brasil atual esperar o óbvio é utopia.

Como se ocultar os dados referentes ao número de mortos e contaminados não fosse o suficiente, agora o presidente estimula a população a invadir hospitais de referência para confirmar a veracidade da falta de leitos. Estimula a população a duvidar dos órgãos de saúde, confrontá-los e colocarem em risco as próprias vidas e a de todos que os rodeiam. O conceito do que é viver em sociedade se dissolveu no meio das milhares de mortes. E isso não é um acaso, é um projeto de governo que se consolida. Governos autoritários se beneficiam com uma população desinformada. Governos autoritários se beneficiam do caos. E esse é o Brasil de hoje.

A comunidade médica e científica em uma luta contra o tempo buscando uma vacina ou medicamentos eficazes ao mesmo tempo em que luta para convencer a população de que o risco é real. Uma população dividida que não sabe em quê ou em quem acreditar. Quarentena ou flexibilização? Economia ou vidas? Somos um amontoado de gente sob um governo que não faz a mínima questão de nos unir. Uma parte da população que acredita no perigo, mas precisa trabalhar para comer porque a mensagem “em análise” no aplicativo do auxílio emergencial não coloca comida na mesa; uma parte que acredita que há um exagero por parte da mídia e que a vida precisa voltar ao normal; uma parte que conhece os riscos, mas também sabe que a massa que move a economia é o trabalhador e que incentivar o descrédito na epidemia é a melhor saída para manter os seus negócios. Entre ignorantes, maus-caracteres e pessoas sensatas existe de tudo, menos união. E esse é o terreno perfeito para que o governo prospere.

Ao colocar a população em conflito, muda-se o foco e o governo tem um terreno fértil e disponível para plantar o que quiser pois sempre há os que o defende. A culpa é dos governadores, dos prefeitos, da mídia, da OMS, da China, a lista cresce a cada dia. Se vidas serão perdidas, paciência, na guerra é assim. Enquanto alguns lutam pela vida e famílias nutrem esperança de que seus entes queridos sobrevivam, um grupo invade violentamente um hospital, chutando portas, quebrando equipamentos e ameaçando os profissionais. No Brasil de 2020 não há paz nem no leito de morte. Não há paz para o pai que crava uma cruz na areia em luto pelo filho de 25 anos, não há paz para os profissionais de saúde que protestam a morte de colegas vítimas de um sistema de saúde colapsado e sucateado.

A política genocida com o apoio da epidemia nunca ficou tão evidente porque a covid-19 não escolhe classe social ou raça, ela é democrática, mas o sistema de saúde não. Há os que tem acesso a jatinhos particulares que aterrissam em vagas de UTI de hospitais altamente modernizados e há os que morrem aguardando vagas em leitos improvisados compartilhando o pouco de oxigênio disponível. Qualquer um pode morrer, mas alguns já estão sentenciados à morte antes mesmo da confirmação diagnóstica. As desigualdades sociais se intensificam dia após dia, mas não há problema, afinal idosos morrem de uma causa ou de outra. Pobres também.

Ao ocultar dados, minimizar a gravidade da pandemia e colocar a população contra os órgãos de saúde, todos perdemos. Sem acesso a dados confiáveis a tomada de ações e decisões por parte dos gestores municipais e estaduais se torna um jogo de tentativa e erro onde os erros significam centenas de vidas perdidas todos os dias. Diante de uma epidemia mundial onde o isolamento social se mostrou o método mais eficaz de contenção até o momento, o brasileiro está sendo estimulado a inovar seguindo a linha da imunidade de rebanho em um país onde nem todos tem acesso aos melhores pastos. O que nem todos perceberam é que já perdemos. Perdemos nos quesitos humanidade e coletividade.

Talvez um dia alguns percebam que não passaram de peças em um jogo onde não há vencedores. Talvez um dia todos concordem com Schopenhauer que “a única alegria do rebanho é quando o lobo come a ovelha do lado”. Talvez.

 

Luana Bernardes Primani. Araraquarense, 35 anos, técnica de enfermagem e fisioterapeuta. Iniciante na escrita há alguns meses. Acredito que escrever é uma das poucas maneiras de mostrar ao mundo realidades que o mundo desconhece.
Compartilhe...