*Texto originalmente publicado na versão online do Telegraph

Uma estatística chocante veio à tona: o suicídio superou a mortalidade materna como a maior causa de morte de jovens mulheres ao redor do mundo. Nisha Lilia Diu pergunta aos experts por que isso está acontecendo — e como falhamos em notar. Próximo ao fim do ano passado, uma estatística chocante apareceu enterrada nas páginas do relatório da Organização Mundial de Saúde. Era o seguinte: o suicídio se tornou a maior causa de morte das adolescentes em todo o mundo.

Mais garotas entre 15 e 19 anos morrem por automutilação do que em acidentes rodoviários, por doenças ou complicações da gravidez.

Por anos, a gravidez era tida como a maior causa de mortes nessa faixa etária. Mas em algum momento da última década, mais ou menos — a última vez que as estatísticas foram coletadas nessa escala foi em 2000 — o suicídio tomou a liderança. E, de acordo com os dados revisados da OMS para 2000, na virada do milênio o suicídio já tinha começado a mostrar que superaria a mortalidade materna.

Ainda assim, de alguma forma não notamos.

Ouvi a estatística pela Sarah Degnan Kambou, presidente do International Centre for Research on Women (ICRW) [Centro Internacional de Pesquisas sobre a Mulher], durante um café-da-manhã na Fundação Gates no mês passado.

A maior parte dos meus colegas convidados trabalhava nos campos dos direitos das mulheres ou da saúde feminina globalmente. Ainda assim, eles ficaram tão chocados quanto eu ao ouvir essa informação.

Não tenho certeza do porquê de não termos percebido isso antes”, diz Suzanne Petroni, uma diretora sênior do ICRW. “A mortalidade materna caiu tanto, o que é fantástico”, ela diz.

Esse é um fator enorme por trás da queda das taxas de mortalidade das meninas de 15-19 anos de 137,4 mortes a cada 100.000 meninas em 2000 para 112,6 hoje em dia. É uma conquista maravilhosa. E permitiu que os holofotes recaíssem, finalmente, sobre o que era a maior causa de morte esse tempo todo: o suicídio.

O relatório se volta para 6 regiões globais. Na Europa, é a causa número um de mortes entre as adolescentes. Na África, não está nem no top 5, “porque as mortes maternas e o HIV são tão altos”, diz Petroni.

Mas em todas as regiões do mundo, exceto na África, o suicídio é uma das três maiores causas de morte de garotas entre 15 e 19 anos. (Para os garotos, a maior causa são os acidentes rodoviários). É particularmente chocante, dado o fato de que os casos de suicídio são notoriamente sub-reportados.

 

 

Maiores causas de morte de meninas adolescentes
  1. Automutilação
  2. Condições ligadas à maternidade
  3. HIV/AIDS
  4. Acidentes rodoviários
  5. Doenças ligadas à diarreia

Fonte: OMS

“Nós não sabemos realmente a extensão do problema”, diz Roseanne Pearce, uma supervisora sênior da Childline no Reino Unido. “Porque com frequência o médico-legista não registra [a morte] como suicídio. Às vezes, a pedido da família e outras simplesmente para poupar os sentimentos da família”.

Em países em que o estigma é particularmente alto, é ainda menos provável que os suicídios sejam registrados do que no Reino Unido. E os países mais pobres no relatório da OMS têm dados muito irregulares sobre nascimentos e mortes em geral, quem dirá detalhes confiáveis sobre a causa dessas mortes.

No Leste Asiático, o problema é agudo: a automutilação mata três vezes mais meninas adolescentes do que qualquer outra coisa. (O Leste Mediterrâneo, que inclui o Paquistão e o Oriente Médio, tem a segunda taxa mais alta).

O Professor Vikram Patel, um psiquiatra que recentemente apareceu entre as 100 Pessoas Mais Influentes da revista Time por seu trabalho na saúde mental mundial, diz em um duro diagnóstico: “A razão mais provável é a discriminação de gênero. A vida das jovens mulheres [no Leste Asiático] é muito diferente da dos jovens homens em quase todos os sentidos”.

A taxa de suicídio masculino nessa faixa etária é de 21,41 para 100.000, em comparação a 27,82 para as garotas.  Essa é idade em que as garotas podem ser tiradas da escola e forçadas a se dedicar às responsabilidades domésticas, esquecendo todas as suas outras habilidades ou ambições. Chegar à puberdade pode significar não ter mais permissão para socializar fora de casa. Às vezes, pode significar não ter permissão para sair de casa para o que quer que seja. E, às vezes, pode significar um casamento forçado.

O Prof. Patel foi o diretor fundador do Centre for Global Mental Health [Centro de Saúde Mental Mundial] na London School of Hygiene and Tropical Medicine [Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres], mas agora passa boa parte do em Delhi, onde trabalha para a Public Health Foundation of India [Fundação de Saúde Pública da Índia].

“A mídia indiana é repleta de imagens de aspirações românticas e de amor”, ele diz. “A capacidade de escolher seu parceiro de vida é uma ideia que é propagada fortemente por Bollywood. Mas esse não é totalmente o caso na realidade da maior parte das jovens mulheres”.

As jovens noivas, diz Suzanne Petroni “são frequentemente arrancadas de seus grupos. São sujeitas ao sexo precoce e indesejado, e têm muito mais probabilidade de sofrerem violência vinda de um parceiro do que as pessoas que se casam mais tarde. Todas essas coisas as colocam sob um risco maior de suicídio”.

Na Índia, diz o Prof. Patel, “as taxas de suicídio feminino são mais altas nas partes do país com a melhor educação e a melhor economia, provavelmente porque as mulheres crescem com aspirações maiores para então descobrir que seu ambiente social as limita”.

Na visão do Prof. Patel, “50% dos que tentam cometer suicídio na China e na Índia não têm um distúrbio mental. Eles sofrem de um desespero lógico”.

A taxa de suicídio entre os meninos adolescentes, embora mais baixa, também é extremamente alta nessa região. As entrevistas feitas pelo Prof. Patel com sobreviventes de tentativas de suicídio o levaram a acreditar que “para as garotas, os problemas de gênero costumam estar por trás disso [do suicídio]. Para os garotos, são as inseguranças financeiras”.

Os garotos passam por uma pressão enorme para serem bem-sucedidos e dar sustento financeiro. O que me parece um problema de gênero, também — é um problema diferente daquele enfrentado pelas mulheres, mas ainda é um problema cuja raiz está nos papéis rígidos de gênero.

 

Maiores causas de morte de meninos adolescentes

 

  1. Acidentes rodoviários
  2. Violência interpessoal
  3. Automutilação
  4. HIV/AIDS
  5. Afogamento

Fonte: OMS

No Reino Unido, diz Joe Fearns, diretor executivo de políticas e pesquisa do Samaritans, “todos nós da prevenção de suicídio nos preocupamos mais com os homens”.
Isso é porque quase 80% de todos os suicídios do RU são de homens. Mas, diz Fearns, “a maioria dos casos de automutilação do RU e dos que chegam ao departamento de Acidentes e Emergência por automutilação são de mulheres”. Parte da razão para a taxa dramaticamente mais alta de suicídio masculino no Reino Unido (e na maior parte do mundo ocidental) são as drogas e o álcool; os homens têm mais probabilidade de abusar dos dois, o que leva a um comportamento mais impulsivo.

“Os homens também tendem a usar meios mais violentos, aos quais é mais difícil sobreviver”, diz Fearns. Roseanne Pearce da Childline me conta que 75% das garotas que entram em contato com o serviço com sentimentos suicidas estão planejando ou tentam ter uma overdose, em comparação a apenas metade dos garotos.

Os garotos têm mais probabilidade de planejar ou ter tentado se enforcar — método com chance bem menor de sobrevivência.

Parte da disparidade entre as taxas masculina e feminina tem a ver também com as circunstâncias, diz Fearns. Ele diz que a taxa de suicídio é maior do que a média entre aqueles que trabalham com construção pesada ou em fazendas — “porque eles têm os recursos”.

As mulheres trabalham muito menos nesses ambientes do que os homens.

Rhea (não é seu nome verdadeiro) tem 17 anos e tentou cometer suicídio duas vezes. “A pornografia estava em todos os lugares na minha escola”, ela diz. Seu namorado Andy ficou “obcecado com isso”.

Ela tinha “deixado claro”, ela diz, que “não estava pronta para transar”, mas em uma noite ele a agrediu sexualmente em um parque. As agressões viraram rotina. Rhea não fez nada. “A conversa constante sobre pornografia tinha me feito sentir que o que estava acontecendo era normal”, ela diz. Ela usa essa palavra repetidamente para descrever sua atitude diante dos ataques de Andy: normal. “Eu me sentia presa, como se todo mundo pensasse que era normal e eu tivesse que permitir aquilo para ser aceita”. A pressão para se conformar a essas expectativas percebidas era tão grande que, eventualmente, Rhea diz, “Eu senti que não tinha como escapar”. Ela tentou se matar.

“A taxa de tentativa de suicídio entre as jovens mulheres do RU é extremamente alta”, diz o Prof. Patel. Ele acredita que a “pressão sexual” é um fator significativo na infelicidade delas.

Roseanne Pearce concorda, acrescentando que “o sexting é outro grande problema entre as pessoas que nos ligam. As garotas ficam desesperadas, até mesmo suicidas, porque mandaram uma foto e ela foi postada online”. Há também a pressão implacável sobre as garotas ocidentais para ter uma certa aparência: ser magra e sexy. Os garotos da escola de Rhea constantemente comparavam os corpos das meninas aos das mulheres que viam em filmes pornô, quase sempre negativamente.

Mas, diz Rhea, a pressão mais forte vem da mídia online.

 

“A Kim Kardashian, por exemplo, e todas as suas coisas de treinamento-de-cintura no momento”. As irmãs Kardashian vêm postando selfies infinitamente nas mídias sociais vestindo corsets que afinam a cintura.

“Muitas garotas da minha faculdade estão falando sobre isso e estão infelizes, porque as faz sentirem insegurança em si mesmas e que têm que tentar ter essa aparência”.

Rosie Whitaker vinha passando muito tempo nas mídias sociais quando tirou sua própria vida em 2012, quando tinha apenas 15 anos. Ela não estava olhando fotos de celebridades, entretanto.

Sua tia, Nancy Whitaker, me fala sobre as contas de TUMBLR tenebrosas dedicadas à automutilação que Rosie havia conhecido através de uma amiga, que já se automutilava, e que Rosie acabou imersa em si mesma.

“São imagens bem pesadas de meninas que são só carne e osso se cortando. É como se estivessem competindo para ver quem consegue chocar mais”.

Ela diz “pode haver pessoas que não estão se encaixando, por quaisquer motivos, que têm problemas com sua imagem corporal ou que estão sofrendo bullying — crianças que são vulneráveis — e quando elas descobrem esses sites, pensam ‘Ah, as pessoas me entendem, elas sabem como me sinto’. De repente elas entram nessa coisa de automutilação e sentem que pertencem a algo”.

“Mas,” ela continua “quando você escreve algo como ‘Sou gorda, sou feia, eu quero morrer’,” — como a sobrinha de Whitaker, Rosie, fez — “em vez de alguém falar ‘Ah, não seja boba, você é linda’, eles falam ‘É, por que você não simplesmente se mata?”.

“E quando elas já estão em um estado mental tão vulnerável, palavras de um completo estranho como essas…” Whitaker vai se esvaindo.

Pearce está familiarizada com o que descreve como “sites de automutilação dominados por garotas que encorajam umas às outras, tentando chocar umas às outras, tentando, provavelmente, só conseguir alguma atenção”.

A Dra. Amy Chandler, pesquisadora associada da Edinburgh University que se especializa em automutilação e suicídio, diz que as garotas ocidentais têm mais probabilidade de se automutilar do que os garotos e que, em sua experiência, “as explicações delas sobre o porquê de fazerem isso têm a ver com controle: seu corpo sendo um lugar em que podem exercer controle”.

“Os garotos têm outros meios para expressar ansiedade e sofrimento”, como as brigas. As garotas se voltam à automutilação, ela diz, “porque não é culturalmente aceitável que elas expressem sua raiva da mesma forma”.

Whitaker acredita que isso seja verdade. “Os garotos vão gritar ou socar uma parede. Sua agressividade pode ser expressada de outras formas. Eles não necessariamente se viram para si mesmos nos mesmos números que as garotas”.

“É muito difícil identificar a motivação de alguém quando machucam a si mesmos”, diz Joe Fearns do Samaritans.

Mas, ele diz, “grupos que detêm menos poder” tendem a ser os mais vulneráveis — as taxas de suicídio são consistentemente mais altas entre os desempregados e os marginalizados econômica ou socialmente. Jovens mulheres em partes do Oriente Médio e do Leste Asiático são algumas das pessoas mais desempoderadas e marginalizadas do mundo.

Mesmo no Ocidente, a adolescência é um tempo em que as garotas sentem suas escolhas se restringirem: sentem que elas têm que se comportar de certa forma e ter uma certa aparência para serem aceitas.

“O gênero é um problema mundialmente difundido”. diz o Prof. Patel. E, como estamos tardiamente percebendo, as consequências podem ser fatais.

Tradução de Bruna de Lara.

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