Uma das séries mais esperadas do ano estreou na útlima sexta-feira, dia 12, e chegou com tudo. A 3ª temporada da série disponível no Netflix de cara já aborda um tema que sempre causa polêmica: aborto. Infelizmente, não da melhor forma.

Num episódio onde as detentas de Litchfield celebram o dia das mães, Tiffany ‘Pennsatucky’ Doggett (Taryn Manning) aparece afastada das comemorações, sentada no gramado onde formou com palitos de picolé um pequeno cemitério. Cada “túmulo” representa um aborto que havia feito enquanto era viciada em drogas, totalizando cinco. É quando Boo (Lea DeLaria), que se tornou amiga de Dogget e, nessa temporada, vemos essa amizade se estreitar cada vez mais, aparece para consolá-la. A partir daí ocorre um diálogo desnecessário que, ao contrário do que tem sido dito, não é – ou pelo menos não deveria ser – um argumento importante pela defesa do direito ao aborto.

Veja o diálogo:

Big Boo: Já leu o livro “Freakonomics”?

Pennsatucky: Não. É sobre mulheres barbadas e anões?

Big Boo: Quase. É sobre teoria econômica. Causa e efeito.

Pennsatucky: Parece chato.

Big Boo: Na verdade, é uma boa leitura. Tem um capítulo chamado “Aonde foram parar os criminosos”. Na década de 1990, o crime caiu dramaticamente e o livro atribui isso à aprovação do aborto.

Pennsatucky: A escuridão de 1973.

Big Boo: É bem ao contrário, na verdade. Os abortos ocorridos após a legalização eram crianças indesejadas. Crianças que, se suas mães fossem forçadas a ter, terminariam pobres, negligenciadas e maltratadas, os três ingredientes mais importantes ao se produzir um criminoso. Só que eles não nasceram. Então, 20 anos depois, quando estariam no auge do crime, eles não existiam. E a taxa de crime caiu drasticamente.

Pennsatucky: O que você quer dizer?

Big Boo: Quero dizer que você era uma ‘bostinha’ entupida de metanfetamina, e se seus filhos tivessem nascidos, também seriam ‘bostinhas’ entupidas de metanfetamina. Ao interromper estas gestações, você poupou a sociedade do flagelo de sua prole.

Pennsatucky: Nunca havia pensado desta forma.

Big Boo: Talvez você deva. Talvez você deva parar de punir a si mesma.

 

Apesar de ter havido esse estudo, o movimento feminista, em geral, nunca utilizou esse argumento pra defesa da legalização do aborto. Primeiramente, porque existem argumentos muito mais sólidos e convincentes, que perpassam a necessidade de proteção da saúde e vida da mulher e o direito individual ao próprio corpo. Segundo, porque foi refutado diversas vezes. Terceiro, porque é um argumento perigoso e irresponsável de ser fazer.

O argumento leva em consideração a premissa de que crianças que poderiam ser abortadas mas não foram devido a criminalização do aborto se tornariam futuros criminosos. No entanto, desconsidera o fato de que mulheres sempre abortaram e que a criminalização, ao contrário de impedir esses abortos, colocava em perigo a saúde e vida dessas mulheres. Além disso, é uma premissa bastante preconceituosa.

Como se sabe, as maiores vítimas de políticas que criminalizam o aborto são mulheres negras e pobres, que, por sua condição social, não possuem meios de interromper a gestação de forma segura. Essas são as mulheres que, pela lógica desse argumento, estavam parindo e criando futuros criminosos. A partir da legalização e da facilitação do acesso a clínicas de aborto, esses criminosos negros periféricos não estariam mais nascendo.

Essa lógica leva a um discurso perigoso e inaceitável de higienização social: o aborto passa a servir como uma espécie de “pena de morte” antecipada ao futuro jovem negro que viria a ser criminoso. É um discurso que legitima a utilização do aborto por parte de mulheres negras pobres como forma de diminuir a criminalidade.

Acredito que é desnecessário dizer, diante do exposto, que a série fez um desserviço ao trazer de volta o debate já ultrapassado do Freakonomics. Muito menos como uma forma de apaziguar o sofrimento de uma mulher que abortou diversas vezes.

Porque dizer que, ao abortar, Doggett acabou poupando da sociedade futuros criminosos ao invés de dizer que ela tomou aquela decisão considerando que não tinha condições financeiras ou psicológicas de gestar e cuidar de uma criança? Foi uma escolha infeliz da série e mais infeliz ainda é esse argumento estar sendo reutilizado como para sustentar a defesa da descriminalização do aborto.