Lá estava ela, assim como em todas as noites: parada, em pé, esperando seu ônibus para voltar para casa. Ainda era férias nas escolas e universidades, o que reduzia o quadro de horários e aumentava o tempo de espera. Quando finalmente o veículo estacionou, subiu as escadas, cumprimentou o motorista e, segurando o cartão, se encaminhou à catraca, dando graças por ter se lembrado de carregar as passagens eletrônicas. Isso garantia que ela não precisasse pagá-lo em espécie, uma vez que achava injusto o motorista também ter que ser cobrador, acumulando assim essas tarefas de assobiar e chupar cana, advindas da exploração do seu trabalho, fazendo gerar mais lucros para as milionárias famílias donas do sistema de transporte público da cidade, enquanto o preço da passagem segue estratosférico e com previsões de aumento. Por fim, rodou a catraca.

Sentada, abriu a bolsa e pegou um livro de contos, permitindo-se sentir aquela gostosa sensação de estar saciada pouco antes de chegar em casa. Nos últimos tempos, vinha preferindo ler contos ao invés de romances, o que a fazia se sentir mais nutrida, como quem ingere uma  exata medida de refeição literária por trajeto que percorre. Após a leitura do conto, ainda lhe restou tempo para telefonar para a mãe e dizer um ¨eu te amo¨ antes de ter que descer e ganhar as ruas. Em pé, empurrou grosseiramente com o joelho o cara ao seu lado para que lhe abrisse algum espaço e ela não tivesse que encostar nele ao passar, embora na verdade desejasse chutar o folgado que dormia inclinando-se sob seus ombros, invadindo seu espaço.

Próxima à porta, passou a praticar seu ritual diário: olhou para ambas as saídas à procura de alguma mulher, na tentativa de, quem sabe, poderem ir caminhando juntas pelos três quarteirões até chegar em casa, quando avistou duas mulheres que desceriam no mesmo ponto.

Uma delas caminhava em direção à sua casa, então, decidiu andar atrás dela, sentindo-se mais segura por estarem perto. Lembrou-se do antigo ensinamento de prender os cabelos quando estivesse sozinha na rua, principalmente à noite, para evitar o ataque de algum homem.

Notou que a mulher a quem tentava acompanhar puxava seu vestido para baixo, embora a roupa insistisse em subir com seu caminhar. Em dado momento, ambas passaram em frente a um boteco cheio de homens sentados nas mesas, tomando suas cervejas, e reparou que todos permaneceram em silêncio ao olharem a bunda da mulher à frente, que puxava incessantemente seu vestido. Em seguida, foi sua vez de passar por eles, ouvindo o mesmo silêncio e imaginando o mesmo olhar, dessa vez, para a sua bunda e, inevitavelmente, sentiu a humilhação de ser reduzida a um pedaço de carne.

Mais adiante, quando passaram em frente à padaria, ela reparou no homem que mais uma vez estava lá, na porta, parado, e se perguntou se ele seria o vigia ou algum tipo de perigo com que deveria se preocupar. Mais uma vez, ele trazia um olhar desafiador que parecia tentar intimidá-la. Quando voltou a si, percebera que a mulher à frente intensificara a puxação do vestido a cada novo passo que dava.

Seguindo adiante, passou pelo supermercado e percebera que dentro daquele local estava lotado de mulheres, tanto atendendo nos caixas quanto aguardando nas filas. Seus próximos passos foram atravessar a esquina, a mulher do vestido frente e ela, seguindo logo atrás. Em sua direção, vinha vagaroso um carro vermelho com os faróis quase apagados, o que a induziu a calafrios e palpitações no peito de uma forma que passou a caminhar mais apressadamente em direção à mulher da frente, sentindo o ímpeto de gritá-la um ¨oi, me espera!¨ mas, antes de gritar, conseguiu livrar-se do asfalto e pisar na calçada, indo de encontro à descoberta de que o poste da rua tinha tido sua luz trocada durante o dia.

Os carros e ônibus passavam pela avenida zunindo seus ruídos e o trem de minério passava do outro lado da marginal, depois do Rio Arrudas, atritando agudamente contra os trilhos. Mais uma vez, passou a sentir um medo estranho e pensou: ¨se eu precisasse gritar, alguém me ouviria

Caminhando sem parar, passou pelo ponto de ônibus, onde notou uma senhora carregando sacolas plásticas de supermercado, uma jovem encostada no poste e uma mulher de meia idade com uma mochila nas costas. Todas as três possuíam o mesmo olhar esperançoso de quem, como ela, sente, a cada minuto, sua casa mais perto. Pensou que, talvez, aquele olhar nada mais era do que a alienação das duplas, triplas e quádruplas jornadas às quais as mulheres são submetidas e se perguntou a quem enriquecemos com isso, ou se o capitalismo atual existiria sem nossas contínuas e infindáveis jornadas de trabalho.

Virou à direita e foi ficando mais próxima de casa, quando reparou que a mulher do vestido, atravessando a rua, continuaria seu percurso por outros caminhos diferentes do seu. Desejou que a companheira também chegasse bem em casa e, silenciosamente, a agradeceu no coração pela presença no trajeto.

 

Aiezha é uma mulher que escreve o blog Meu Próprio Lar, espaço de compartilhar reflexões, contos, poemas e escrevivências sobre algumas das suas experiências de ser mulher. Mineira, de Belo Horizonte, mas criada no Vale do Jequitinhonha, é psicóloga pela Universidade Federal de Minas Gerais e mestra em psicologia social. Atua como psicóloga|analista de políticas públicas para crianças e adolescentes desde 2008.
Compartilhe...