Fotografia: Rafael Freire/ Instagram: @rafaelfreiiire

 

Quando pequena a garota negra pintava sua infância com todas as cores da sua caixa de lápis de cor. Tudo lhe era colorido. Enxergava tons vivos e vibrantes. Pintava o sete com suas tintas hidracor. Pintava as paredes. Pintava o rosto da mãe, as unhas da avó. Pintava a casa, a vida ao redor. Adorava desenhar a natureza e aquarelar seu imaginário social sem nenhum tipo de sofrimento.

No primeiro dia da nova escola, a garota entusiasmada levou sua caixa de lápis de cor. Ansiosamente pensava nas suas novas amiguinhas que iriam pintar junto com ela, brincar junto com ela. A menina, então, pôs seu álbum de figurinhas, seu caderno, seus pincéis e seus lápis de cor de madeira com as pontas todas feitas, para que nada pudesse atrapalhar seu primeiro dia de aula e sua primeira pintura na escola.

A menina negra não sabia que a nova escola – uma escola particular – nunca teve uma aluna negra. Ela foi a primeira garota negra, da periferia, a ganhar uma bolsa de estudo para estudar no colégio mais famoso da cidade.

Ao chegar à escola, ela percebe os olhares de estranhamento para si, para o seu cabelo, para o seu nariz. Ninguém quis brincar com ela no recreio. Ninguém pintou com ela. Naquele dia, pela primeira vez, a menina não quis colorir seu desenho. Deixou em P&B.

Os dias foram passando, e a vida acinzentada. Tons frios eram as cores das suas pinturas. A garota parou de desenhar na escola. Começou a decorar o decoreba e a competir com as colegas.

Chegou a juventude e seus primeiros amores. Mas nenhum amor que lhe trouxesse o colorido. Beijou, namorou e iniciou as suas adequações monogâmicas de um amor romântico. Seguiu o amor sem brilho, sem cor.

Ao chegar à universidade, para cursar antropologia, é recebida com tintas coloridas em seu corpo. Pintadas de vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, anil e violeta. As cores quentes, vibrantes, aqueciam o seu corpo. Parecia que ela se transmutava ao sentir em sua pele negra a energia daquelas cores que faziam ressuscitar o colorido da vida. Se fez transformar em um arco-íris, em Oxumaré.

Em uma refração de luz do sol ela observa que quem a pintou, tinha tranças coloridas, um sorriso largo e um corpo negro varginal. Seus olhos ganharam brilho ao ver aquele rosto. O amor lhe pegou. A partir daí começou a sua primeira amizade colorida.

Uma pintava o corpo da outra. Rabiscava em traços os traços ancestrais que cada uma trazia em seus corpos negros marcados. Usavam de todas as cores para pintar o amor, mas não quiseram emoldurar, fechar, enquadrar os afetos. Elas sabiam que outras pessoas também precisavam desse colorido que cada uma transmitia.

Elas perceberam que esse amor romântico, colonizador, castrador, e não erótico, só possuía uma exclusiva cor, uma cor normativa, regrada com sangue venoso de dor. Então, elas inspiradas no arco-íris, na energia de liberdade transgressora de Oxumaré, pintaram outro tipo de amor: o A-mar.

Um amor pintado da cor do mar para lembrar da imensidão desse sentimento, que jamais se prende, se priva. Para também lembrar de onde viemos. Que somos embarcação, somos Atlântica. Para afirmar que não há armário – nem amarras – que comporte, ou venha podar, um A-mar pintado com as cores do arco-íris.

Mês de agosto é o mês da visibilidade lésbica, do orixá Osùmàrè. É o mês de saudar e festejar o arco íris.

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