Texto publicado orginalmente no Twitter, revisado por Bruna Leão.

Você e eu precisamos de uma conversa muito séria sobre direitos humanos. Eu escrevo esse texto, que jamais devia ser necessário, com lágrimas nos olhos e um ódio que eu jamais desejei sentir.

Hoje, eu contei sobre um presente que dei à minha mãe depois de 15 anos de muito suor e trabalho. Ontem, eu publiquei um registro em meu portão em que 5 crianças brincavam de sala de aula na Cidade de Deus, a favela em que eu moro e atuo todos os dias, faça sol, chuva ou tiro. O tiro, no entanto, é muito mais presente, intenso, dilacerante, determinante e covarde do que qualquer obra da natureza. E para dar conta do que digo: Hoje, que devia ter sido marcado na história como um dia feliz em minha família, o tiro roubou mais uma vez de nós o sorriso.

Eu não conheço os trabalhadores que o Estado, no uso da força, matou. Mas não preciso conhecê-los para dizer que são parecidos comigo. Pois são! Na exclamação, eu ouvi mais um tiro. A Polícia Militar está aqui. A poucas quadras da minha casa. Ela, que jamais deixa de estar, voltou para reprimir o ódio, que eu também sinto, que ela mesma gerou. O ódio manifestado nas ruas ensanguentadas pelos corpos assassinados que se parecem comigo. E reprimem os meus amigos, os meus colegas, os meus vizinhos, as minhas memórias. Que gritam, diante de um caveirão: AS NOSSAS VIDAS IMPORTAM!

As nossas vidas faveladas, negras, trabalhadoras importam para os donos das casas que nos contratam para limpar o chão, para os filhos dos donos das casas que compram o ópio em nossas esquinas. Mas somos substituíveis. Categoricamente substituíveis: As nossas vidas importam porque SERVEM, e servem para limpar, servem para dirigir, servem para vender, servem para cuidar porque, sem nós: Quem limparia a bosta dos seus filhos? Mas não servem para viver.

A história conta que há pouquíssimo tempo ainda estávamos acorrentados, sendo chicoteados, sistematicamente torturados, psicologicamente, fisicamente e sexualmente abusados. A história conta que a história não começou ontem e que ela ainda continua hoje com outras ferramentas e formas de se fazer, os nossos corpos negros e favelados custam, às vezes por peso, às vezes por kg, o quanto conseguimos pagar para continuar servindo quem nos mata. O Estado, que prometeu proteger: defende quem jurou que em 100 anos não existiríamos.

Humanos, que não somos, morremos em praça pública, à luz do dia, no beco, no asfalto ou debaixo do viaduto, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, quantas vezes necessária for para dizer: Aguentam mais 10 anos?

É o que os programas sensacionalistas da midiatização e normalização da barbárie cabos eleitorais de fascistas modernos propõem ao povo brasileiro a cada dia mais desgostoso: Estamos matando quem jamais devia ter sobrevivido.

E sobrevivemos tanto que continuamos sobrevivendo. Vida que é bom: nada. Resta, por fim, o tiro. Que tira da gente, desde o nascimento, a humanidade. E vai tirando todas as garantias dos direitos humanos que não somos. Até que cansados de nos fazer cansados, tiro. Nos matam.

A verdade, enquanto escrevo esse texto, triste como nunca, cansado como queriam, com medo do amanhã, em cima de um mototaxi ou na volta do trabalho, o caveirão ainda circula a Cidade de Deus à minha procura. Ouvi outro tiro. A minha mãe, nesse momento, passa mal. Não pelo tiro. Por medo. Que me levem. Por escrever esse texto, por ser conselheiro tutelar, por ser educador popular, por criar uma biblioteca, por dizer NÃO NOS MATEM, porque sou a sua imagem e semelhança, negro, favelado.

Mas definitivamente: Eu não sou humano. Nessa noite, peço que orem, desejem, enviem a maior e melhor energia. Por quem tão brutalmente foi retirado dessa vida. Para que ninguém mais seja tão brutalmente levado dessa vida. Até aqui, eu fiz o que podia. Descansem em paz, irmãos.

 

Jota Marques. Conselheiro Tutelar eleito +jovem do RIO

 

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