Atualmente, no Brasil, a cada 7 minutos a polícia recebe pelo menos uma denúncia de violência doméstica, nas quais em 85,85% dos casos a agressão parte de alguém da própria família – sendo 58,55% das vítimas mulheres negras, 49,82% de abusos físicos e 30,40% de abusos psicológicos. O restante está dividido entre violência moral e sexual. Estes dados foram divulgados pela Secretaria de Políticas pelas Mulheres (SPM) da Presidência da República.

Os dados preocupam, e eles nem precisam ser ditos para serem sentidos, pois 85% das mulheres brasileiras têm medo de sofrer algum tipo de violência, segundo pesquisa da Datafolha em 2016.

Para falar sobre a questão e suas consequências na vida das mulheres, entrevistamos a psicóloga Maria Clara Zanforlim Viana, do site de atendimento psicológico online TelaVita. Formada pela Universidade Católica de Campinas, a Dr.ª Maria Clara possui uma vasta experiência sobre temas do núcleo familiar e vai nos explicar com mais clareza sobre o assunto.

Maria Clara, primeiramente, é um prazer entrevistar uma profissional da área da psicologia para tratar sobre um assunto tão delicado. Agradeço sua participação em nome do Não Me Kahlo, sua palavra será importante para muitas mulheres. Para começar, poderia nos explicar qual a relação entre a violência doméstica e a psicologia?

R: A psicologia se propõe concomitantemente ao exercício da ciência e profissão, ou seja, requer que estejamos em contato constante com conteúdos diversos num exercício de atualização sobre temas diversos. No código de ética que regulamenta a profissão, dois dos princípios norteadores contribuem no estabelecimento da relação entre a violência doméstica e a psicologia.

São estes:

  1. O Psicólogo baseará seu trabalho no respeito à dignidade e integridade do ser humano.
  2. O Psicólogo trabalhará visando promover o bem-estar do indivíduo e da comunidade, bem como a descoberta de métodos e práticas que possibilitem a consecução desse objetivo (Código de ética profissional, princípios fundamentais).

É importante frisar que o estigma de que o psicólogo apenas atua na presença de sofrimento ou patologia é excludente e não real. Situações de orientação pontual, ou numa palestra, por exemplo, não requerem que a motivação da atuação parta necessariamente de uma situação patológica, pode abranger o caráter preventivo e de conscientização.

No entanto, quando não cabe na situação vivenciada pela pessoa uma abordagem preventiva, como no caso do fenômeno da violência doméstica, cuja existência pressupõe a incidência continuada, os danos e agravos psíquicos são mais severos e demandam a realização de um trabalho menos pontual e mais aprofundado relacionado ao restabelecimento do bem estar, resgate do sentimento de dignidade, reestruturação da autoestima… Existem vários níveis de abordagem, desde a triagem até a terapêutica.

Quais os principais fatores que desencadeiam a violência doméstica?

R: Cabe dizer que não se trata de uma modalidade de violência praticada apenas contra as mulheres. Embora no Brasil (e em outros países) seja maior o número de casos registrados contra mulher, a educação sexista contribui para que os homens não exponham a condição de vítima. Independentemente do gênero, creio que o fenômeno da violência doméstica ocorre em maior quantidade do que a registrada. Nem todas as situações de violência chegam até profissionais da área da saúde – ou da educação, ou qualquer outra; muitas vezes elas “sequer saem debaixo do tapete da sala lá de casa.”

Dito isto, acrescento a percepção de que a convivência aproxima as pessoas e as pessoas têm suas particularidades, e a estranheza existe mesmo na proximidade. Requer resiliência e tolerância a convivência harmônica, pois se partirmos do modelo “família comercial de margarina”, certamente nenhuma família se adequará. Portanto, lidar com as nuances do dia a dia é uma tarefa imprescindível.

De forma geral, alguns fatores são comuns nos casos de violência doméstica (e não apenas estes, pois a individualidade reserva um universo particular nem sempre “categorizável” num primeiro momento), dentre eles:

  • O uso de substâncias entorpecentes, incluindo o álcool;
  • Alto grau de intolerância;
  • Baixa resiliência entre o que se tem como expectativa em relação ao          outro com quem se convive;
  • Negação ou sublimação (mecanismos de defesa): acreditar que foi “a última vez”, ou que “é coisa da minha cabeça”, ou qualquer outra justificativa que minimize a incidência da violência, mesmo sem indícios concretos de mudança;
  • Fatores culturais;
  • Educação sexista.

Qual a relação da violência doméstica com a autoestima da mulher?

R: A violência doméstica requer a incidência continuada para sua existência, portanto, impulsiona agravos quanto à autoestima, autoimagem, sentimento de ser capaz de lidar com situações adversas e até mesmo a crença de ser a pessoa quem protagoniza a desestruturação presente em situações de violência doméstica. Tem a ver com a forma como a vítima passa a se perceber mediante recorrentes agressões, e isto certamente tem influência na forma como a pessoa consegue lidar com a situação.

Não é uma tarefa fácil perceber, aceitar e romper o ciclo da violência doméstica, pois a fragmentação dificulta o planejamento e estabelecimento de ações sejam elas quais forem.

Por que as mulheres passam tanto tempo se submetendo à violência doméstica? 

R: Resumidamente, penso que pela nossa história, ou seja, por uma questão cultural arraigada, de cunho patriarcal.

Muitas vezes os sinais de violência são ignorados. Na prática, é muito comum, em atendimentos às vítimas de violência doméstica, ouvir “justificativas” como:

Numa relação de dependência: “não tenho condições de criar sozinha meus filhos”, “tenho medo da perseguição dele”, “ele pode mexer com minha família”. Ou numa relação de simbiose: “eu sei que vou conseguir curar ele”, “é mais uma criança pra eu cuidar dentro de casa”, “ele precisa de mim”.

O termo “justificativa”, nesse contexto, deve ser compreendido como motivo de manutenção e de não validação/aceitação passiva e consciente da situação. O abalo na autoestima tem um papel relevante no que diz respeito às “justificativas”, pois infere na forma como a vítima percebe a si própria.

É válido dizer que violência doméstica não é apenas agressão física. Você poderia nos falar sobre violência moral ou psicológica?

R: Não é válido tanto por não ser reducionista a incidência da violência física e por haver diferentes formas de violência. Cabe aqui um comentário sobre a necessidade de melhorias na forma de acolhimento da demanda espontânea relacionada à violência doméstica. Entendo ser comum, em casos de violência física, o acolhimento da situação já com registros e encaminhamentos; talvez pela visibilidade da agressão, algo observável fisicamente.

Nos casos de agressão moral ou psicológica (também a sexual quando não deixa marcas físicas aparentes), a ausência do tato para com a delicada questão gera uma situação na qual a vítima pode ser mais facilmente contestada a respeito da veracidade dos fatos, assim como a interpretação pautada na culpabilização da vítima. Isto incide no rompimento da rede de cuidados, a qual esta pessoa deveria recorrer. Algo muito presente em nossa sociedade.

Constitucionalmente, há descrição sobre a existência das seguintes formas de violência:

Art. 7o  São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:

I – a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;

II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;

III – a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;

IV – a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;

V – a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria (Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006).

Normalmente, ao passar por violência doméstica, uma mulher se cala e não busca por ajuda. Há sinais que podemos identificar quando uma mulher possa estar sofrendo um caso de violência?

É importante considerarmos o contexto ao redor do silêncio; uma pessoa que permanece submersa numa situação de violência pode não desejar que ameaças sejam concretizadas e, para tal, seguem criteriosamente a ordem do silêncio verbal endossada por ameaças.

O silêncio verbal, no entanto, não impede identificar o sofrimento! Trata-se de uma delicada tarefa de observação e constatações, por exemplo: alterações bruscas de comportamento, atitudes relacionadas ao limiar de tolerância às frustrações; algumas marcas físicas podem ser vistas, ou podem estar encobertas “pelo uso de cachecol em pleno verão”. Em linhas gerais, é possível compreender que a violência interfere na sociabilidade, rendimento da produção no trabalho e autocuidados.

Para finalizar, poderia passar uma mensagem para mulheres estão passando por violência doméstica?

Busque orientações! O primeiro passo para conseguir romper o ciclo da violência doméstica é o apoio, a escuta e o acolhimento! Onde encontrar:

  • CRAS – Centro de Referência de Assistência Social,
  • CREAS – Centro de Referência Especializado em Assistência Social,
  • PSFs – Postos de Saúde da Família,
  • Delegacias (preferencialmente às destinadas ao público feminino)
  • Psicólogos autônomos (atendimentos online são destinados às orientações e aconselhamentos e podem ser um primeiro passo de acesso facilitado, um momento pregresso à possível abordagem terapêutica, desempenhada na modalidade presencial).

Os dados citados acima são referentes somente às denúncias recebidas. Muitas mulheres não relatam a violência vivida, principalmente quando ela é de cunho psicológico. É muito importante que todos tenham a consciência de que qualquer tipo de violência doméstica deve ser denunciada e a vítima precisa de segurança e orientação para diminuir os traços da agressão sofrida.

Para saber um pouco mais sobre o tema, confira o vídeo:

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