Estava aproveitando a quarentena para organizar umas fotos antigas e ficou meio óbvio que esse não é o meu primeiro isolamento social. De 2015 para 2016, noventa e nove porcento das minhas fotos são em casa, de pijama, olheiras fundas, pele que não via sol e um neném no colo. Só em 2017 eu recomecei a trabalhar, coloquei a minha filha na creche e voltei a usar roupas diurnas e a pentear o cabelo. E eu me lembro o tanto que significava pra mim pegar o carro e sair dirigindo pela cidade, estar em outros espaços, conviver com outras pessoas… Era uma sensação de estar voltando à vida!

Chegada a pandemia, acho que todos concordamos: ficar trancado em casa o dia todo é difícil. Mas já parou para pensar que essa provavelmente foi a vida toda das nossas mães e avós? Da casa pro mercado, do mercado pra casa e só. Pelo menos daquelas que “escolheram” ser do lar (entre aspas, porque raramente é uma escolha tanto o trabalhar fora, quanto o não trabalhar fora de casa). Mesmo as mães que retomaram em algum momento a carreira, tiveram a sua quarentena, pelo menos nos primeiros meses da maternidade. E a sensação é bem essa que estamos vivendo agora: angústia, incertezas, medo do que possa acontecer com quem amamos, saudades da vida de antes, solidão e uma neura quase irracional com mãos limpas e objetos desinfetados. Tudo isso somado a uma privação de sono enlouquecedora (nada dura mais que uma madrugada em claro tentando ninar um recém-nascido pela oitava vez enquanto o resto do mundo dorme sonhos de algodão-doce) e uma coleção de palpiteiros de plantão fazendo você se sentir equivocada em cada escolha.

Daí você até tenta sair pra respirar, mas é gente olhando torto porque o bebê (pasmem) chora, é olhar de reprovação porque o bebê (de novo, pasmem) mama – e às vezes eles fazem isso em peitos DES-NU-DOS, meu Deus! São estabelecimentos sem um mínimo de estrutura para atender necessidades básicas de um bebê, música alta, ar gelado, zero trocadores. São pessoas que passam trombando na moleira aberta da criança, desconhecidos que chegam apertando as bochechas com mãos cheias de germes, gente que não dá lugar no ônibus pra mãe com bebê no colo. Amigos que só convidam pra baladas impraticáveis e nunca estão livres pra um rolê kids-friendly à tarde. Parente que passa por cima de nós e nos desautoriza com a criança, oferece pirulito e refrigerante pro neném que ainda tá em amamentação exclusiva porque, tadinho, tá com vontade. É tanta coisa gritando SAI DAQUI que a gente desiste de ser um híbrido de Buda com MacGyver e assume que o nosso lugar é em casa mesmo. Chamamos isso de solidão materna.

Mas ninguém fala muito disso em voz alta, porque maternidade é uma benção, né. Olha esse neném que saudável, a maior alegria da vida, amor incondicional, é até pecado reclamar. Engole o choro.

Solidão materna também tem a ver com o peso de manter a roda da casa girando mesmo no meio do caos. Porque alguém tem que saber que o amaciante tá acabando, que a próxima vacina é aos 6 meses, que as roupinhas já estão curtas e o material da escola precisa ser encapado e etiquetado. E esse alguém geralmente atende por um único nome, independente de quantas pessoas morem na mesma casa.

Se o trabalho foi cansativo, se a semana tá cheia, se a gripe tá derrubando, se estamos no meio de uma pandemia, pouco importa. A criança ainda precisa comer, tomar banho, ser ouvida, vestir roupas limpas e dormir em um quarto sem pó. E na imensa maioria dos lares desse Brasilzão, se a mãe não fizer, ninguém faz.

Agora fica aí aparecendo publicação de marmanjo reclamando que é impossível trabalhar de casa, que as crianças e as tarefas domésticas impossibilitam qualquer produtividade, etc. É verdade – eu cheguei à mesma conclusão pouco antes de desistir do projeto de doutorado que, afinal, não saía nunca da introdução. Mas poucos pensam nisso na hora de cobrar rendimento da mãe que passou a noite segurando o inalador e fazendo compressa na criança doente. E olha que eu falo de um lugar relativamente confortável, do alto dos meus privilégios brancos, capital cultural, avós pra toda obra, chefes compreensivos. Dá pra acrescentar várias camadas de solidão aí se você for olhar para a mãe periférica, negra, em relacionamento abusivo, longe da família, explorada no trabalho, etc.

Deixo então um apelo: Será que a gente não consegue aproveitar esse momento em que estamos todos sentindo na pele os danos do isolamento para tentar evoluir um pouco enquanto sociedade e olhar com mais empatia para as mães ao nosso redor? Aproveitar que a pimenta tá ardendo no nosso olho também e sacar que ela nunca foi refresco?

Afinal, quando essa quarentena acabar, a sua vida social vai voltar, a nossa não. No fundo, no fundo, o “idosos que se isolem” dessa pandemia é apenas uma nova face do bom e velho “quem pariu Matheus que o embale”.

 

Joana Carvalhaes. Bióloga, professora e mãe solo.

 

 

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