Quem Disse? é um espetáculo que retrata a aventura de Ritinha e Bernardo, duas crianças que, através da amizade, nos mostram como é possível superar as formas de opressão de gênero através do olhar infantil.

A peça propõe a desconstrução das identidades de gênero a partir das brincadeiras das crianças sobre as figuras do príncipe e da princesa. Desbravando os mundos da imaginação, Ritinha e Bernardo se questionam sobre a validade da ideia de família tradicional, os diversos lugares de opressão que ainda transitamos e nos convidam a transformar a forma como nos organizamos como sociedade.

Conversamos com a Ana Luiza França, produtora, roteirista e atriz da peça.

Você é diretora de produção, escreveu e atua na peça, é isso mesmo? Como é desempenhar tantos papeis? 

Ana Luiza: É isso! Realizar “Quem disse?” está se tornando um dos momentos mais emocionantes e desafiadores que já vivi. Desempenhando tantos papéis, preciso atender demandas de naturezas bem diferentes: questões artísticas, burocráticas, financeiras…e isso tudo, nestes tempos em que as temáticas que abordamos não são bem recebidas por parte da sociedade. Refletir sobre a construção das identidades de gênero e sobre a possibilidade de desconstrução, ou seja, refletir sobre liberdade, atualmente, é visto como algo perigoso, como uma afronta. Essa resistência torna as questões relacionadas à divulgação da temporada, por exemplo, mais difíceis; essas, por sua vez, interferem na quantidade de pessoas que conseguimos alcançar, consequentemente no número de espectadores que temos e na receita que conseguimos gerar. Eu tenho procurado formas de desempenhar esses papéis diversos de forma que eles se complementem. Quando estou em cena, estou inteira. Preciso deixar o lado produtora para depois que termina o espetáculo, por exemplo.

Como foi a sua história até aqui? Fale um pouco mais sobre você.

Ana Luiza: Eu sou atriz, dou aulas de teatro, produzo espetáculos, pesquiso, estudo, arrisco versos, dou a cada dia um pouco mais de argumentos à minha condição de feminista, sou uma mulher branca, enquadrada no perfil heteronormativo, cultivo amizades jovens e de longa data, me interesso por todo pensamento que aponte a possibilidade de desconstrução e, com inúmeros privilégios, vou construindo um jeito de estar presente no mundo. Comecei a fazer teatro na escola, com 13 anos. Dos 17 aos 21 cursei a graduação em Artes Cênicas na Unirio e, em seguida, a de Produção Cultural na UFF. Desde 2006, dou aulas de teatro para crianças e adolescentes em escolas.

Posso afirmar que o teatro e as crianças são duas grandes paixões na minha vida. Até 2018, minha trajetória profissional foi, principalmente, como atriz, professora e produtora. Apesar de sempre ter gostado de escrever, foi a partir do mestrado em Artes Cênicas que passei a experimentar a escrita de um outro lugar. Terminei o mestrado em dezembro de 2017 e, em março de 2018, juntei toda a minha coragem para começar a publicar os poemas que escrevo em um perfil público no instagram, o @palavrafranca. Acho que o ato de escrever e tornar público o que escrevo, com a dissertação e as poesias, foram parte do processo que me levou a escrever uma peça de teatro – algo que eu achava que não poderia fazer. Mesmo com recursos materiais limitados, tive a alegria de juntar uma equipe muito talentosa e generosa, que abraçou a história e me ajudou a dar vida à “Quem disse?”. Além de ser minha estreia como autora, eu me vi fazendo algo ainda mais surpreendente: criei as melodias e letras das canções da peça.

Então, posso dizer que esse espetáculo tem muito de mim, sem ser sobre mim. Já não consigo falar sobre minha história sem falar da peça. Ela é uma das formas que eu encontrei para afetar o mundo – dar ao mundo algum afeto – e, para isso, foi necessário afetar a mim, antes de tudo. “Quem disse?” é sobre a possibilidade de desconstrução que sempre teremos iluminando nossos horizontes – é sobre um desejo por liberdade que me atravessa e segue. É sobre aprender com as crianças que a vida poderia ser mais simples e menos doída, se não fizessemos de nossas ideias, crenças e pensamentos, amarras.

De onde surgiu a ideia de fazer essa peça?

Ana Luiza: Apesar de no passado, pedalar ter sido considerado inapropriado para as mulheres e dito que a atividade poderia fazer mal à nossa saúde, a bicicleta foi uma ferramenta na luta por autonomia feminina, na medida em que proporcionou maior liberdade de deslocamento. Embora, ainda no século XXI, existam lugares em que há restrições quanto ao uso da bicicleta, no nosso contexto, a bicicleta tende a ser vista como um elemento “neutro”. A partir dessa “neutralidade” do pedalar, decidi escrever uma história em que 2 crianças fossem percebendo como o mundo ainda é pintado em cores diferentes, literal e metaforicamente, para meninas e meninos. Como educadora, tive o privilégio de perceber como o olhar infantil tem a nos ensinar no que diz respeito à liberdade, entre tantas outras coisas. As crianças tendem a ser muito mais abertas que nós, mais generosas, e por isso são capazes de com uma frase desfazerem toda uma lógica adulta, com uma pergunta são capazes de nos mostrar que complicamos a vida com tantas regras que nos separam em nichos e que nos trazem dor. Como mulher, como feminista, lidando cotidianamente com meninas e meninos, de diversas idades, pude ver que quanto menores, menos fazem distinções. E, se conforme vão crescendo, começam a surgir, entre outros julgamentos, as noções de “é de menina” ou “de menino”, isso se dá porque aprendem com as pessoas adultas. O que quis fazer na peça foi inverter esse processo – somos nós que temos que desaprender essas noções e permitirmos, à nós e às outras pessoas, ser quem somos.

Porque você acha que é importante contar essa história hoje?

Ana Luiza: Vivemos um período duro. Como reação aos movimentos que, principalmente nos últimos anos, vinham garantindo maior liberdade para a diversidade de expressões que podemos ter/ser/criar, o conservadorismo avançou em todas as esferas e se nega a debater questões relacionadas à pluralidade de gêneros. Assim, um espetáculo infantil que traz à tona temas relacionados à construção/desconstrução dessas identidades, a partir do olhar de duas crianças sobre a figura do príncipe e a princesa, vem se mostrando cada vez mais necessário. A criança não nasce com preconceitos ou ideias prontas e tende a questionar “regras absolutas”: porque tal coisa TEM que ser assim? QUEM DISSE?.  É ao longo da vida que vamos aprendendo como “devemos” nos comportar, o que é “certo ou errado”, o que é “normal” ou não e desaprendendo a aceitar as imposições sem questioná-las, sem pensar que alguém, um dia, disse que é assim que deveria ser.

Ao acompanhar a aventura de Ritinha e Bernardo, com suas muitas perguntas e o desejo de poderem ser o que são, o público é convidado a visitar um lugar dentro de si em que ainda mora uma criança capaz de se questionar, de questionar certezas, de descobrir seus próprios desejos e que, apesar das lágrimas, tem o peito cheio de coragem para lutar por um mundo mais justo. E acredito que dessa forma, com afeto e coragem, podemos nos fortalecer e atravessarmos períodos como o atual, em que precisamos resistir aos retrocessos e lutar para continuarmos avançando, e apesar dos pesares, continuarmos brincando.

 

 

 

 

 

 

 

Excepcionalmente, no próximo sábado (16), não haverá sessão em virtude do desfile da Banda de Ipanema na rua do teatro! 

SERVIÇO:

Espetáculo: QUEM DISSE?

Sábados e domingos, às 16hs.

Local: Teatro Ipanema

Ingressos: R$40(inteira) e R$20(meia-entrada)

Até 24 de fevereiro.

 

FICHA TÉCNICA:

Direção: Breno Sanches

Texto: Ana Luiza França

Elenco: Ana Luiza França e Filipe Codeço

Cenografia e Figurinos: Patrícia Muniz

Trilha sonora: Daniel Carneiro

Canções originais: Ana Luiza França

Arranjos: Filipe Codeço

Fotografia: Laura França

Design: Tiago Torres

Iluminação: Ricardo Lyra Jr.

Produção executiva: Fernando Torres e Teresa Rocha

Operador de luz: Paulinho

Operador de som: Robert

Assessoria de imprensa: Lyvia Rodrigues

Dir. de Produção: Ana Luiza França

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