“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino” (DE BEAUVOIR; 1980:9)

A célebre frase da filósofa Simone de Beauvoir, principal figura da segunda onda do feminismo, nos dá as primeiras pistas sobre o que é ser mulher ao mesmo tempo em que revela a fundamentação teórica da qual parte a escritora. Existencialista, Beauvoir nega haver uma essência feminina que assim identifique as mulheres. Na verdade, a feminilidade seria o resultado de um conjunto de práticas e discursos opressores que moldam o ser mulher. Segundo Beauvoir, a criança que nasce com o sexo feminino não é mulher, mas se tornará ao longo dos anos, a partir das pressões sociais que serão impostas a ela.

Nos dez primeiros meses de 2015, o Brasil registrou 63.090 denúncias de violência contra a mulher, ou um relato a cada 7 minutos, segundo a Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. O balanço foi feito a partir de relatos ao Ligue 180. 

Segundo a ONG Action Aid, a violência doméstica mata cinco mulheres por hora em todo o mundo. A organização estima que mais de 500 mil mulheres serão mortas por seus parceiros ou familiares até 2030. Em 2014, na 59ª Comissão sobre o Estatuto da Mulher da Organização das Nações Unidas (ONU), o governo brasileiro classificou as mortes por abortos ilegais como um problema de “saúde pública” . Em relatório, o governo afirmou que o aborto ilegal é a quinta causa de morte materna no Brasil.

De acordo com o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), no mínimo 527 mil pessoas são estupradas por ano no país e apenas 10% chegam ao conhecimento da polícia. Cerca de 89% das vítimas são do sexo feminino e possuem, em geral, baixa escolaridade.

Esses são apenas alguns números que revelam as situações de violência física, emocional, psicológica, sexual e institucionalizada às quais as mulheres estão submetidas. O destino de toda criança que nasce com o sexo feminino é ter que enfrentar ou se esquivar de tais violências à medida em que lhe é imposta a socialização feminina, ou seja, os comportamentos, expectativas e lugares correspondentes à mulher nas esferas público e privada.

Entretanto, esses dados não dão conta da violência simbólica, que serve como base para todas as outras. Conceituada por Pierre Bourdieu (1989), essa violência é “suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento”.

Segundo o autor, a violência simbólica somente pode ser realizada “com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” (BOURDIEU; 1989:7-8). Ou seja, se a violência simbólica fosse reconhecida como uma violência, ela não existiria. O ponto de partida para que ela exista é que o agente da violência não enxergue em si mesmo um agressor e que a vítima não enxergue que é agredida.

Por isso há tantas mulheres que reproduzem discursos que oprimem outras mulheres, como aquele que condena a liberdade sexual feminina. Elas não reconhecem que isso é uma violência e não reconhecem que elas mesmas também são vítimas dessa violência ou poderão ser futuramente. Com isso, buscam diferenciar-se de outras mulheres ao chamá-las de “piranhas” ou “vagabundas” para se aproximar do próprio grupo que as oprime – os homens. Dessa maneira, acabam reproduzindo o discurso dominante na sociedade, que vem da classe dominante, sem conhecer que estão prejudicando a si mesmas. A violência simbólica, por operar no inconsciente, faz com que mesmo os opressores por vezes não reconheçam a violência que exercem, acreditando que suas ações são naturais e justificadas.

Seria necessário enumerar todos os casos em que os homens mais bem-intencionados (a violência simbólica, como se sabe, não opera na ordem das intenções conscientes) realizam atos discriminatórios, excluindo as mulheres, sem nem se colocar a questão, de posições de autoridade, reduzindo suas reivindicações a caprichos, merecedores de uma palavra de apaziguamento ou de um tapinha na face, ou então, com intenção aparentemente oposta, chamando-as e reduzindo-as, de algum modo, à sua feminilidade, pelo fato de desviar a atenção para seu penteado, ou para tal ou qual traço corporal, ou de usar, para se dirigir a elas, de termos familiares (o nome próprio) ou íntimos (“minha menina”, “querida”, etc.) mesmo em uma situação “formal” (uma médica diante de seus pacientes), ou outras tantas “escolhas” infinitesimais do inconsciente que, acumulando-se, contribuem para construir a situação diminuída das mulheres e cujos efeitos cumulativos estão registrados nas estatísticas da diminuta representação das mulheres nas posições de poder, sobretudo econômico e político. (BOURDIEU, 2012:74-75)

Bourdieu (1989) afirma que a violência simbólica é exercida pelo poder simbólico e que as diferentes classes estão sempre envolvidas em uma luta simbólica para impor o estabelecimento de uma sociedade mais de acordo com seus interesses. Para o autor (1989), o poder simbólico é um poder invisível dado por quem o está sujeito para quem o exerce. Ou seja, é um crédito dado pelo oprimido ao opressor. “É um poder que existe porque aquele que lhe está sujeito crê que ele existe” (BOURDIEU; 1989:188).

Este crédito está calcado no “capital simbólico” que o opressor detém. Segundo Bourdieu (1989), o capital simbólico é o crédito firmado na crença e no reconhecimento. Ou seja, o oprimido crê na autoridade e na legitimidade das ações e do discurso do opressor, ignorando sua arbitrariedade, o que acaba facilitando a continuidade das práticas opressoras.

É importante destacar, entretanto, que a culpa da opressão não é da vítima. Embora o desconhecimento da opressão impeça o levante do oprimido, a existência deste desconhecimento não é de responsabilidade do oprimido, mas sim de estruturas prévias de dominação, de acordo com Bourdieu (1989). Oprimidos e opressores estão tão imersos nessas estruturas que é muito difícil, para ambos, perceberem que práticas rotineiras são, na verdade, exemplos de violência. Responsabilizar o oprimido pela inércia diante do próprio destino é superficial e não dá conta das estruturas de dominação que perpetuam as relações entre as classes.

Por sua vez, um dos canais para o exercício da violência simbólica é o discurso. Na verdade, mais do que um canal, o discurso serve como alimento para a opressão. Segundo Coulthard (1991:66), a opressão “não é simplesmente refletida na linguagem, mas também um resultado dela”. Ou seja, a disputa de diferentes ideologias no campo discursivo pode servir para cristalizar preconceitos ou superá-los, já que é também pelo discurso que se constrói a realidade.

O discurso contribui para a constituição de todas as dimensões da estrutura social que, direta ou indiretamente, o moldam e o restringem: suas próprias normas e convenções, como também relações, identidades e instituições que lhe são subjacentes. O discurso é uma prática, não apenas de representação do mundo, mas de significação do mundo, constituindo e construindo o mundo em significado. (FAIRCLOUGH, 2008:91)

 

Segundo Marx e Engels (1984:56), “as ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes”. Assim, em uma sociedade em que os homens exercem poder sobre as mulheres, o discurso hegemônico, produzido por aquele que consegue se inserir na ordem do discurso, dá embasamento a essa realidade. O discurso hegemônico costuma reforçar ideologias conservadoras, naturalizando padrões e estigmas e corroborando o senso comum, como bem aponta Paiva (2008).

 

Narrativas fincadas em estratégias do senso comum funcionam com o propósito de reforçar as ideias concebidas e vigentes hegemonicamente na sociedade. Na verdade, a ideia centrada no senso comum possui uma retórica certamente bastante assimilável, porque reconhecida com facilidade, carregada de pressuposições e prejulgamentos com enfoque arraigado e incrustado psíquica e socialmente. (PAIVA, 2008:20)

 

Na conta do senso comum estão os estigmas de que a mulher sexualmente livre é “puta”, que é da mulher a responsabilidade de cuidar da casa, que todas as mulheres têm um “instinto materno”, entre outros. Ou seja, são esses os discursos que, aplicados no dia-a-dia, violentam as mulheres diretamente. Indo além, para Foucault (2014:10) “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”. A disputa não é apenas pelo que se diz, mas por um lugar na ordem do discurso, ou seja, por ter a sua fala autorizada. Foucault (2014:35) ressalta que “ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo”.

O poder e a importância do discurso são muito maiores do que a sociedade, em geral, imagina. Quando nos expressamos, devemos estar cientes de que nossas palavras tem um enorme peso ao reforçarem – ou combaterem – determinadas ideologias. Segundo Van Dijk (2015), as ideologias são crenças compartilhadas, adquiridas de forma lenta, que servem como uma base cognitiva para a conduta social. Ao vocalizar o preconceito, mesmo com um eventual tom de brincadeira, o sujeito é responsável pela manutenção de ideologias como o machismo, o racismo e a homofobia.

Com frequência, especialmente com a ascensão das redes sociais, o humor é utilizado como disfarce para a violência simbólica. Quando contrariados, seus agentes argumentam que “é só uma piada” e reclamam que “hoje em dia não se pode mais brincar com nada”.

 

Grande parte do fluxo discursivo existente na atualidade se torna responsável pela permanência de estruturas sociais nas quais o preconceito e a exclusão consolidam-se como regra. Dentre as práticas agenciadoras dessa estrutura, encontram-se as piadas, os chistes populares e as anedotas, mas também, e de maneira extremamente mais consolidadora, porque massiva, as mensagens difundidas pela mídia. A naturalização destes discursos, o fraco esquema de análise crítica, o baixo índice de escolaridade, os diminutos recursos financeiros, as dificuldades de acesso aos múltiplos recursos discursivos, consolidam, de maneira definitiva, a aceitação dessa estrutura de preconceitos e de exclusão. (PAIVA;2008:124)

 

Dessa maneira, é preciso que os sujeitos estejam conscientes sobre o poder que exercem com a fala. Para esvaziar o machismo e outras formas de opressão, é necessário refletir sobre às custas de quem são feitas algumas piadas e quais as consequências da validação e reprodução de determinados discursos. Negar a própria agência na perpetuação de uma estrutura de dominação é característica de uma sociedade mergulhada na violência simbólica.

 

Referências

 

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Vol.2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

______. O segundo sexo. Vol.1. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.

______. O poder simbólico. Lisboa: DIFEL, 1989.

COULTHARD, Malcolm. Linguagem e sexo. São Paulo: Ática, 1991.

FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: Editora UnB, 2008.

FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2014.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Editora Moraes, 1984.

PAIVA, Raquel. Política: palavra feminina. Rio de Janeiro: Mauad X, 2008.

VAN DIJK, Teun. Discurso e poder. São Paulo: Contexto, 2015.

 

Ana Luiza Albuquerque
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