Juíza Adriana de Mello fala sobre o combate à violência doméstica em entrevista coletiva a alunos de jornalismo da UFRJ. Foto: Breno Crispino

Acelerar o atendimento a mulheres em risco de vida. É esse o objetivo do Projeto Violeta, idealizado em 2013 por Adriana Ramos de Mello, juíza titular do 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar do TJRJ. Em vigor há dez anos, a Lei Maria da Penha prevê um período de até quatro dias entre uma queixa e a decisão judicial sobre a medida de proteção de urgência. Com a iniciativa, a espera caiu para quatro horas.

“A medida protetiva é o coração da Lei Maria da Penha ” diz a juíza, temporariamente afastada do juizado para exercer o cargo de auxiliar do presidente do Tribunal para questões sociais. Ela afirma que o índice de descumprimento da medida é baixo. O envolvimento da justiça costuma fazer o homem perceber que passou dos limites, apesar de ser comum que ele não entenda as agressões como crimes, por enxergar a mulher como posse.

Identificados com tarjas violeta, cor que simboliza compaixão e transformação, os casos mais graves são levados de imediato às juízas e juízes, ativando um protocolo de atendimento integral, realizado em parceria com a Polícia Civil, a Defensoria Pública, o Ministério Público e os setores de psicologia e serviço social. Durante a espera, as vítimas permanecem em salas de cor violeta, protegidas da exposição comum nas delegacias e nos tribunais.

O atendimento humanizado proporcionado pelo projeto é previsto em lei, mas, no geral, não é posto em ação.

“O que pegou foi a parte punitiva “, comenta Adriana, ressaltando a importância dos poucos centros de atendimento às mulheres vítimas de violência, que hoje sofrem com a falta de verbas e começam a fechar.

De autoria do senador tucano Aloysio Nunes, o PLC 07/2016, que altera pela primeira vez a Lei Maria da Penha e tramita em caráter de urgência no Senado, poderia provocar uma melhoria no atendimento às vítimas – não fosse pelo artigo 12-B. Incluído no apagar das luzes, sem diálogo com as mulheres, o item concede aos delegados de polícia poder para expedir medidas protetivas, sem o envolvimento de um juiz.

Criticado por juristas e pelo movimento feminista, o projeto é, segundo Adriana, um retrocesso. Um dos méritos da Lei Maria da Penha, para ela, é justamente ter ajudado as mulheres a acessarem a justiça. Antes, os casos de violência doméstica não raro ficavam parados nas delegacias, onde as vítimas eram orientadas a desistir da queixa. Essa realidade não se alterou por completo, mas, ao dispensar a participação da justiça nesse primeiro momento, o PLC pode agravar a situação.

“É uma questão de direito de acesso à justiça, que é algo muito mais amplo do que uma disputa de poder entre delegado e juiz”, afirma, sublinhando que a expedição de uma medida protetiva deve caber apenas aos magistrados, por se tratar de uma forma de restringir a liberdade de um indivíduo. Para ela, cabe à justiça, e não a um delegado, pesar se alguém deve ou não ter seus direitos cerceados.

Denunciar um caso de violência doméstica é sempre difícil, o que explica, em parte, o alto índice de subnotificação do crime. Mas, para algumas mulheres em especial, é ainda pior. O acesso a todas as políticas públicas é mais difícil para as negras, ressalta a juíza – culpa de um racismo histórico que ficou ainda mais evidente com o Mapa da Violência 2015. Segundo o estudo, de 2003 a 2013, o feminicídio (assassinato de mulheres por razões de gênero) diminuiu 9,8% entre as brancas e aumentou 54,8% entre as negras.

No país que mais mata transexuais no mundo, as mulheres trans pouco chegam ao judiciário. De acordo com Adriana, elas têm procurado a justiça no âmbito civil, requerendo, por exemplo, o direito ao nome social. Porém, permanecem longe da esfera criminal, evitando as delegacias – provavelmente, acredita a juíza, por medo de serem mal tratadas pelos policiais.

Como parte de uma sociedade machista, a polícia e a justiça são permeadas pela cultura de violência contra a mulher. Julgando o estupro de uma adolescente, Adriana se lembra de ouvir da mãe da menina: “O que minha filha passou no IML chegou a ser pior do que a violência que ela sofreu”.

Junto ao treinamento dos profissionais que lidam com a violência doméstica, à implantação do atendimento integral e à aplicação das sentenças, é preciso investir também em centros de reeducação para os agressores – outra política pública prevista em lei e comumente ignorada. O Projeto Violeta encaminha agressores a grupos autorreflexivos, acompanhados por psicólogos e assistentes sociais. Em oito encontros, cerca de dez homens dividem sua percepção sobre drogas, álcool, violência contra a mulher e a Lei Maria da Penha.

Em um primeiro momento, conta Adriana, eles tendem a se defender, culpando a mulher por estarem ali e pela violência cometida. Do terceiro para o quarto encontro, porém, eles passariam a refletir sobre seu papel no ciclo de violência que impunham às parceiras e a entender melhor conceitos como machismo e patriarcado. A reincidência desses homens é, segundo a juíza, muito baixa. Em São Paulo, onde há dois programas do tipo em funcionamento, a média de reincidência é de 11%.

“Cultura não se muda com decreto, se muda com educação “, afirma Adriana, que defende a realização de grandes campanhas de conscientização e da inclusão das questões de gênero na educação, desde a infância, para prevenir a violência. “A gente não pode discutir gênero, porque tiraram do Plano Nacional de Educação”, critica.

Adriana explica que a justiça já trabalha com a violência consumada e que, apesar de considerar a repressão importante, é preciso ir além dela.

“Enquanto a gente não entender isso, vamos ficar na ponta, curando os sintomas só, não chegamos na raiz “, avalia.

Em seus 20 anos de magistrado, 15 deles julgando casos de violência contra a mulher, ela afirma que só viu a violência aumentar. Seus primeiros anos como juíza foram passados em Duque de Caxias, onde grande parte dos casos envolviam violência contra a mulher. Ela se especializou na área, com um mestrado e um doutorado e, em 2006, quando a Lei Maria da Penha entrou em vigor, sua vara foi a primeira a ser transformada em juizado de violência doméstica.

O preconceito dentro da magistratura com a luta pela causa da mulher sempre esteve presente. “Já vem você com essa história de mulher que apanha”, ela costuma ouvir.

“Já briguei com meio mundo e arrumei inimigos, porque respondia à altura”.

Hoje, o aumento do conservadorismo no país a preocupa. Uma visita recente de três semanas a Brasília, motivada pelo PLC 07/2016, a surpreendeu de forma nada positiva.

“Fiquei apavorada” – relata a juíza – “A gente conversa com um senador, ele não tem percepção nenhuma do que é gênero, do que é violência contra a mulher”.

Para ela, o momento político é “péssimo”, marcado por retrocessos e pela interferência da religião no legislativo. Os projetos que dificultam ou proíbem por completo a realização do aborto em casos de estupro são, para ela, algo que “jamais poderemos permitir”.

“Eu me sinto em guerra”, declara, fazendo um apelo aos jovens; “A gente tem perdido algumas batalhas, mas não a guerra total. Se politizem, se apropriem dessas discussões e lutem contra isso. Não sejam passivos”.

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