Enquanto feministas, estamos diariamente chamando atenção para violências que mulheres sofrem, principalmente no Brasil. Falamos de casos específicos que são noticiados nos jornais, casos que são ignorados pela mídia e pesquisas sobre o tema. Não demora muito para alguém – normalmente um homem – vir deslegitimar nossas ações alegando que, no Brasil, o machismo não existe ou, se existe, não é nada comparado a outros países como os do Oriente Médio: “vai ser feminista no Oriente Médio”, dizem.

  

Infelizmente, esse recurso argumentativo que tenta tirar o enfoque de um problema pra outro – que, segundo o interlocutor, seria mais urgente ou mais grave – não se restringe aos antifeministas de plantão.

No artigo “As mulheres muçulmanas precisam realmente de salvação? reflexões antropológicas sobre o relativismo cultural e seus outros”, Lila Abu-Lughod se refere a uma “obsessão com o sofrimento das mulheres muçulmanas” por parte do feminismo ocidental. A consequência disso é o discurso de que essas mulheres precisam ser salvas e quem irá se encarregar disso são os nobres países ocidentais.

O foco, então, se retira das complexidades políticas e históricas e, principalmente, do papel – e responsabilidade – dos países ocidentais no apoio e financiamento de regimes repressivos nesses locais. Segundo Lila:

Em outras palavras, a questão é por que saber sobre a “cultura” da região e particularmente suas crenças religiosas e o tratamento dispensado às mulheres era mais urgente do que explorar a história e o desenvolvimento dos regimes repressivos na região e o papel dos Estados Unidos nessa história. Tal enquadramento cultural, me pareceu, obstava a exploração séria das raízes e da natureza do sofrimento humano nessa parte do mundo. Em vez de explicações políticas e históricas, solicitavam-se dos especialistas explicações culturais. Em vez de questões que talvez levassem à exploração das interconexões globais, ofereceram-nos outras que serviam para artificialmente dividir o mundo em esferas separadas – recriando uma geografia imaginária do Ocidente em oposição ao Oriente, nós em oposição aos muçulmanos, culturas nas quais primeiras-damas dão discursos em oposição a outras nas quais as mulheres andam contidas e silenciosas em burcas.

 

Recentemente, a ativista afegã Noorjahan Akbar* publicou um artigo intitulado “Queridos misóginos americanos: A opressão das mulheres afegãs não existe para o seu benefício”. 

Nele, ela denuncia esse discurso disfarçado de preocupação com mulheres afegãs como extremamente machista. E responde a pergunta feita pela Lila Abu-Lughod anteriormente: As mulheres muçulmanas precisam realmente de salvação? Para Noorjahan, não.

No artigo, Noorjahan se dirige aos homens americanos, mas sintam-se à vontade para vestir a carapuça. Aqui, o texto traduzido na íntegra:

Queridos misóginos americanos: A opressão das mulheres afegãs não existe para o seu benefício

Hoje é o último dia dos 16 Dias de Ativismo contra violência de gênero. Todo ano, ler os depoimentos poderosos de mulheres que superaram essa forma tão comum de violência me inspira e me lembra do quão importante é a desigualdade global.

Nos últimos seis anos, eu tenho tido o privilégio de falar em universidades americanas e escolas particulares sobre minha experiência trabalhando e escrevendo sobre direitos humanos na minha terra natal, o Afeganistão.  Uma das reações mais comuns que americanos têm para meus discursos e meus artigos é a invalidação da defesa dos direitos das mulheres nos Estados Unidos comparando as atrocidades que mulheres enfrentam no Afeganistão com as opressões “menos importantes” e “exageradas” que feministas estão lutando em seu próprio país.  

A marginalização de mulheres afegãs é usada como uma ferramenta para diminuir a percepção do quão injusto é o status quo que eles têm em casa.  Esses homens, e às vezes mulheres, me contam o quanto estão decepcionados com feministas americanas por estarem “reclamando de cantadas que levam nas ruas enquanto mulheres estão sendo massacradas por homens afegãos.” 

Essa é uma reação daqueles que fingem simpatizar com mulheres afegãs – e por extensão também muçulmanas e mulheres do oriente médio em geral – enquanto atacam ativistas dos direitos das mulheres em seu próprio quintal.

Talvez minha maior oposição a esse sentimento é que ele retrata mulheres afegãs como vítimas que precisam ser salvas.  Qualquer um que tenha trabalhado com mulheres afegãs em um nível básico sabe que nós não somos vítimas. Não é novidade que mulheres do meu país enfrentam uma enorme quantidade de opressão por causa de radicais islâmicos, violência de gênero, guerras e insegurança, pobreza, analfabetismo e muitos outros problemas. No entanto, assumir que nós não temos nenhuma defesa é um desserviço para mulheres afegãs. 

Eu vi mulheres afegãs que cresceram em guerra nas áreas mais rurais do país, com pouca ou nenhuma oportunidade para educação, lutar pelos seus direitos de maneiras heroicas.  Eu aprendi essa importante lição sobre o poder de mulheres afegãs sozinha enquanto viajava por Badakhshane e Takhar alguns anos atrás.  Eu estava fazendo uma pesquisa sobre canções folclóricas femininas e percebi que mulheres cantavam sobre a luta contra violência de gênero e casamento infantil de maneira mais efetiva e articulada que muitos ativistas instruídos que eu conhecia. 

Mulheres afegãs estão cantando, escrevendo, administrando negócios, estudando, ensinando, aprendendo, gerenciando organizações sem fins lucrativos, organizando protestos e encontrando milhares de maneiras de contar suas histórias – apesar das ameaças diárias que sofrem do Daesh (Estado Islâmico) e talibãs.  Essa capacidade de resiliência e luta não corresponde com o status de vítima.

Mas apoiar mulheres afegãs “que não tem voz” e ao mesmo tempo dizer para feministas americanas parar de reclamar sobre estupros em campus de universidades é sinal de uma mentalidade ainda mais patriarcal.  Disfarçada de empatia é a noção de que mulheres merecem proteção e apoio desde que se mantenham “vítimas sem voz” para crimes fisicamente violentos.  No entanto, no momento que encontram a capacidade de falar e exigir igualdade – a igualdade real, que vai destruir todo o patriarcado, não somente o patriarcado mais abertamente violento – nossas vozes não merecem mais ser ouvidas.

Em outras palavras, se não houver a necessidade de um salvador masculino, mas sim da prestação de contas com todos os homens, as vozes das mulheres se tornam irrelevantes. 

Também não podemos ignorar o racismo escondido na suposição de que mulheres afegãs precisam ser salvas de homens afegãos.  Em uma ocasião após um discurso que eu havia feito, uma pessoa sugeriu que trouxéssemos todas as mulheres afegãs para os Estados Unidos. A sugestão foi de que deveríamos literalmente tirar todas as mulheres afegãs de seu país, a fim de protegê-las dos homens. Quando americanos me contam sobre o quanto estão tristes pelas “pobres mulheres afegãs” que são atacadas pelos seus próprios pais e irmãos, eles também estão querendo dizer que os homens americanos, mais civilizados, jamais tratariam mulheres como aqueles selvagens no Afeganistão.

A violência de gênero é um problema global, não é específico das mulheres do oriente médio.  Os Estados Unidos têm algumas das taxas mais elevadas de violência sexual e abuso doméstico do mundo. Todos os dias, três mulheres americanas são mortas por um parceiro íntimo. A guerra contra mulheres certamente matou mais americanos do que as guerras no Iraque e Afeganistão. 

Eu não finjo que as mulheres americanas e as mulheres afegãs têm os mesmos problemas e enfrentam opressões do mesmo nível. Mas nós não devemos comparar um país com quase nenhuma infraestrutura que tem enfrentado cinquenta anos de traumas e guerras com um que tem mantido a paz em seu próprio solo desde 1865. As mulheres afegãs enfrentam uma taxa muito mais elevada de violência do que mulheres nos Estados Unidos e na maioria dos outros países. É por isso que eu faço o que eu faço. No entanto, assumir que a violência de gênero é de alguma forma inerente ou patológica aos homens afegãos, e que não é um problema enfrentado nos Estados Unidos, é racista. 

Um motivo pelo qual não posso mais tolerar em silêncio o uso da minha opressão como uma forma de invalidar ativistas dos direitos das mulheres nos Estados Unidos é que a opressão contra mulheres é global.  Durante meus discursos eu frequentemente uso a metáfora de que o patriarcado é o mesmo monstro em todos os lugares, mas tem faces diferentes. A essência da raiz do patriarcado – tirar poder das mulheres, possuir e explorar o corpo das mulheres e diminuir a contribuição das mulheres para a sociedade – está presente em quase todos os contextos, mas os sintomas são diferentes.

Seja forçando meninas a se casarem no Afeganistão ou culpando as mulheres por estupros nos Estados Unidos, a mensagem que está sendo emitida é essa: os corpos das mulheres não pertencem a elas mesmas.  As mulheres não têm o direito de escolher o que fazer com os seus corpos ou onde existir. É por isso que mulheres que dizem “não” e rejeitam avanços masculinos sofrem consequências ambos nos Estados Unidos e no Afeganistão. No momento que mulheres se tornam donas de seus próprios corpos, elas são vistas como criminosas.

Além das raízes do patriarcado serem similares no mundo todo, seus agentes geralmente são farinha do mesmo saco. 

Entre para a irmandade global da misoginia.  Eu tenho lutado para acabar com assédios sexuais e agressões no Afeganistão e nos Estados Unidos. Em ambos os contextos, as pessoas culpam mulheres por vestir roupas “inadequadas” e causar estupros e assédios.  Aparentemente, os corpos das mulheres são provocativos estejam eles cobertos de burcas no Afeganistão ou de saias nos Estados Unidos.  Em ambos os contextos, no mundo todo, as mulheres são culpadas pela falta de moral dos homens. Em ambos os países, ouvi pessoas dizerem que se as mulheres não fossem a determinados lugares, não agissem de uma determinada maneira ou aparecessem em público em certos horários, elas estariam mais seguras.

Os mesmos homens afegãos de que opuseram ao linchamento de Farkhunda disseram que se as mulheres se vestissem adequadamente e não provocassem homens, esse crime teria sido prevenido.  Os misóginos no campus da minha faculdade americana, onde eu me juntei a protestos para mudar as políticas de violência sexual da nossa escola, também argumentaram que se mulheres se vestissem de forma mais modesta elas não seriam estupradas.  É curioso então que quando as mulheres estão vestidas “corretamente” e permanecem em casa sendo esposas “adequadas”, elas ainda continuam sendo estupradas pelos seus maridos, ambos nos Estados Unidos e no Afeganistão. 

Mais uma vez, a violência cometida contra seus corpos e suas almas são justificadas com os mesmos argumentos. É revoltante ouvir a frase “ela deve ter feito alguma coisa” mais frequentemente do que ouço a frase “ele não devia ter matado ela. ” Isso também deveria te revoltar.

Os misóginos em ambos os contextos não apenas usam as mesmas desculpas para proteger seu status na sociedade, como também utilizam uns aos outros para defender seus comportamentos.  Eu tenho um blog sobre igualdade de gênero e a justiça social no Afeganistão. Quase todas as vezes que posto algum texto sobre violência de gênero ou outras formas de abuso enfrentados por mulheres, eu recebo comentários sobre como as mulheres no Afeganistão deveriam agradecer porque são tratadas com mais respeito e dignidade do que mulheres ocidentais “que são objetificadas e usadas como brinquedos sexuais. ”

Os homens que escrevem estes comentários apontam para a sexualização de mulheres na mídia ocidental, na pornografia e em personagens de TV repulsivos que perpetuam essa sexualização. Eles me lembram de todas as coisas pelas quais eu deveria agradecê-los, “bem, nós podemos até bater em nossas esposas quando elas saem da linha, mas pelo menos não tratamos elas como objetos sexuais e não as vestimos em biquínis para o prazer masculino. ” A verdade é que agredir mulheres e vendê-las em casamento objetifica mulheres tanto quanto- se não mais que – usar seus corpos em comerciais de TV humilhantes para vender produtos.  Além disso, afegãos que assistem pornografia americana – e sim, eles assistem – são tão impactados pela misoginia dessa indústria quanto os americanos.

Por outro lado, mulheres americanas que escrevem sobre a violência sexual e assédios na rua escutam, “vocês chamam nossos elogios de assédio, mas hey, pelo menos vocês não estão sendo apedrejadas até a morte como aquelas mulheres afegãs. ” Em ambas as situações, os problemas que as mulheres enfrentam são desprezados e elas têm que ouvir que seus pedidos de segurança – que é o mínimo que elas merecem – são ilusórios. 

Nestes argumentos, misóginos de ambos os lados ajudam uns aos outros a manter o controle. As únicas pessoas que perdem com isso são as mulheres e as meninas cujos corpos e as almas continuam a ser exploradas, abusados, traficados, vendidos e desrespeitados. 

Não me leve a mal. Eu não acredito que exista uma irmandade global. Não existe um movimento feminista onde pessoas marrons, negras e brancas e todas as outras mulheres estão conversando umas com as outras com mútuo respeito e compreensão para lutar contra todas as formas de opressão. Eu facilmente critico o feminismo das privilegiadas da mesma forma que critico misoginia. Há muito o que criticar quando várias feministas privilegiadas passam mais tempo escrevendo sobre a Miley Cyrus do que sobre as mulheres negras em prisões que não têm acesso a absorventes e sobre as mulheres nativas-americanas que não tem igualdade de direitos legais paracrimes de violência sexual.  Eu percebo que na luta para igualdade racial, econômica e de gênero minhas irmãs de cor e eu frequentemente estamos marginalizadas e sozinhas.

Feministas privilegiadas – frequentemente brancas, mas não sempre – torcem para nós quando falamos sobre misoginia, mas nos silenciam quando exploramos as interseções com raça e desigualdade global.  Isso para mim não é novidade. No entanto, meus aliados não são os misóginos que descreditam feministas que lutam contra violência sexual, assédio nas ruas ou qualquer uma das muitas outras injustiças reais que mulheres sofrem. 

Aos misóginos americanos, eu digo: minha opressão, como uma mulher de cor do oriente médio, não é uma arma para você esconder sua misoginia. O fato de que os talibãs assassinam mulheres por levantar a voz no Afeganistão não diminui as ameaças de morte que vocês fazem para mulheres americanas que estão lutando por igualdade de gênero nas áreas de ciências, tecnologia, engenharia e matemática nas universidades.  O fato de que cerca de 80% das mulheres afegãs sofrem violência em suas casas não torna os odiosos assassinatos sexistas por Elliot Rodger pouco importantes.  Na verdade, essa forma de raciocínio é bastante familiar para mim. Quando vocês chamam os crimes sexuais no Reddit eufemisticamte de “The Fappening”, é o mesmo que homens afegãos fazendo montagens pornográficas de membros da minha família para silenciar o meu ativismo. 

Sim, eu quero que o mundo se importe com as mulheres afegãs. Mas o interesse dos americanos não deve vir às custas de nos enxergar como vítimas sem voz e sem defesa que precisam ser resgatadas, nem através de lentes que mostram homens afegãos como selvagens e homens americanos como heróis. A violência de gênero é global.

*Noorjahan trabalhou com diversas organizações afegãs e globais focadas nos direitos das mulheres e liderou campanhas nacionais em defesa dos direitos humanos. Já teve seu trabalho publicado no Al Jazeera, Safe World for Women e outros meios. Em 2013, ela publicou uma coleção de cartas de mulheres afegãs. Atualmente, administra um blog chamado Free Women Writers, focado em igualdade de gênero e justiça social. Noorjahan esteve na seleção de Mulheres Acadêmicas de 2013, pela revista Glamour, e tem sido indicada para a lista das 100 Mulheres Mais Poderosas do Mundo, pela Forbes, e também para a seleção Women Who Shake the World, pelo The Daily Beast.

*Tradução por Vanessa Ribeiro.

 

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