Como mulher, assim como professora, a percepção sobre desigualdade social do gênero feminino não me eram indiferentes. Sempre permearam minhas vivências, tanto pessoais quanto profissionais. No entanto, apenas no início do processo de Mestrado realmente me aprofundei nas questões de gênero. Com este aprofundamento no estudo histórico e conceitual das desigualdades que permeiam tudo relacionado ao “feminino”, pude também contar com um movimento de reconstrução pessoal, reformular tudo o que estava em mim (nunca acabado) naturalizado, porque nascemos e somos criados dentro de uma leitura de mundo, de uma história androcêntrica cultural. Entender que tudo que tange as masculinidades e as feminilidades é relacional, que nada mais é senão uma construção social e, portanto, pode ser mudado, levou certo tempo. Penso que seja um exercício contínuo, em constante processo.

Na área da Educação, a qual pertenço, a primeira iniciativa de investigação se deu em contexto público, ou seja, em uma escola pública. Porém, com o passar do tempo, depois de realizar várias leituras e através de novas descobertas, percebi que esse já era um campo com muitas produções. Já existiam muitas análises, inclusive sobre as questões de gênero, apontando uma tendência à manutenção de um sexismo que persiste na sociedade e, portanto, permeia as famílias e influenciam as crianças. A partir desta visão, conversando sobre esta problemática com um colega, surgiu então a ideia de investigar uma instituição diferente, talvez progressista. Progressista e particular, uma vez que ambos os campos haviam despertado, em menor proporção, o interesse da academia. Decidida, fui em busca de acolhimento da minha pesquisa mandando e-mail para algumas escolas. Uma delas aceitou que eu fizesse minha observação durante um período de seis meses. Com este artigo quero, portanto, contar um pouco sobre essa experiência, minhas análises e algumas conclusões a que cheguei.

 

Entrando na escola

 

A pergunta que regia meu olhar empírico sobre as 20 crianças que investiguei era: Como elas constroem suas relações de gênero inseridas em uma pedagogia que, pelo menos a princípio, imaginamos libertária? Proponho a investigação da socialização das crianças como uma autonomia na qual elas reproduzem, mas também produzem, seus posicionamentos de meninos e meninas em um espaço cuja livre iniciativa é proporcionada como princípio pedagógico. Para isso foi importante a escolha de uma escola que rompesse o modelo de instituição que conhecemos como “tradicional”, sob outra perspectiva.

Sabemos que as características femininas e masculinas, ainda nos dias de hoje, estão dispostas simbolicamente de maneira binária, e que as crianças já percorreram um caminho social até chegar à escola. Porém, se o gênero é construído através das relações, então meninas e meninos também constroem significados individuais entre suas diferenças sexuais de forma flexível e plural, ou ainda, como diz Conell (2009),” as crianças têm capacidade de criarem seus modos de serem meninas e meninos se engajando nesse processo através de resistências e dificuldades nas interações”. Portanto, se considerarmos as condições mais favoráveis, em que se respeitem suas ludicidades, criações e desejos, haveria também condições desses agentes alargarem e modificarem os conteúdos simbólicos da cultura em que vivem.

É necessário frisar ainda minha experiência pessoal dentro de uma instituição tão diferente das que conhecia até então. Não foi sem estranhamento que adentrei em uma organização com princípios pedagógicos democráticos na qual não haviam salas com carteiras enfileiradas, e a participação de todos nas decisões sobre as regras para boa convivência, dentre outros. Neste contexto, ler “A República das Crianças”, de Helena Singer, foi fundamental. Essa preparação teórica me ajudou a compreender a essência deste movimento, que é caracterizada pela autonomia das crianças e cuja origem está localizada na Rússia, em 1857, com a Escola de Yasnaia-Poliana por Liev Tolstói. Na prática, observar as criançasindo e vindo conforme suas vontades e interesses era uma novidade e a sensação de desconforto inicial me levou a confrontar meus limites, do meu universo simbólico, com maior nitidez ao reconhecer outros territórios. Estabeleci um olhar sem juízos de valor como enfoque etnográfico, um posicionamento que pretendia desnaturalizar e refletir a assimilação da cultura e hábitos de um espaço com o qual não estava acostumada. Através da convivência, me impregnei dos valores e comportamentos, acompanhando a rotina diária e anotando tudo em um diário de campo, inclusive minhas impressões.

 

Aproximação com as crianças e primeiras percepções

 

A dúvida seguinte seria: como agir na interatividade com as pessoas que compunham aquele lugar? As experiências etnográficas de Corsário (2009) em uma escola italiana marcaram meu posicionamento perante as crianças para conseguir obter uma visão “de dentro” de suas relações, objetivo principal da pesquisa. Assim, aguardei a aceitação delas, conforme a construção de cumplicidade, para uma aproximação. Consegui estabelecer uma posição não-hierárquica ao mantê-las no comando. Ao respeitar suas vontades como sujeitos de ação e de direitos, com a conquista da confiança e da cumplicidade,  percebi suas capacidades de ação e reflexão. A Sociologia da Infância (MARCH, 2011), hoje, é um campo novo que passa a considerar a criança como ser produtor de uma cultura infantil na qual reinventa e reproduz o mundo que a rodeia (SARMENTO, 2004). Essa metodologia foi a base de toda a atividade empírica.

A partir destes princípios, no primeiro semestre de 2014, fiz minhas observações e as anotações foram registradas em detalhe, no tocante às relações entre meninas e meninos, para posterior reflexão e análise: mecanismos de aproximações e distanciamentos, quando o gênero interfere nas escolhas, quais são os agrupamentos e em que ambientes escolares se delimitam ou não, dentre outros.  Quem faz uma pós-graduação cuja pesquisa pretende ser qualitativa sabe que o período que temos para desenvolver todo este processo é, por vezes, curto, e o trabalho nos parece sempre inacabado. Porém, citarei a seguir considerações que consegui trazer à tona. Algumas por se apresentarem logo no início de forma clara, em outros momentos, por se revelarem de maneira persistente. Vale lembrar que as pistas que desvelam o cotidiano, tais como vivenciadas, são um processo constante de construção individual com identificações que se transformam continuamente, conforme Melucci (2004) coloca no conceito de identização.

 

O Gênero na infância

 

Logo nos primeiros dias participei de uma reunião que acontece semanalmente na escola, chamada de Assembleia. Nesta ocasião, tanto professores e professoras quanto as crianças, conversam sobre a organização do material escolar, horários, ocupação dos espaços, comportamentos etc. Em outras palavras, todos colaboram para que haja benefícios na convivência coletiva. Neste momento, mapeei, dentro de uma roda na qual os agentes estavam dispostos, que meninas sentaram de um lado e meninos do outro. A disposição espacial foi representada através da oposição homóloga entre masculino e feminino. Conversando posteriormente com os educadores, eles não haviam se atentado para este fator até então. A partir desta observação, procurei entender os significados de masculinidade e feminilidade de acordo com a construção social estabelecida naquele ambiente em particular para alcançar as concepções das crianças através de suas falas e comportamentos.

Nas brincadeiras com uso de fantasias, por exemplo, o menino se intitulava “prefeito”, enquanto as outras duas meninas que brincavam junto eram “madames”, “fadas” e “empregadas”. Desta vez, pude considerar mais um par homólogo de representação simbólica do forte/frágil, assim como uma posição hierárquica. Durante o lanche, apesar de teoricamente todos terem o dever em colaborar com a limpeza do ambiente, os meninos resistiam.

Para além do momento da Assembleia, cujo resultado da disposição das crianças já apresentado acima se repetiu por diversas vezes, resolvi fazer algumas anotações quantitativas sobre os agrupamentos de meninos e meninas em outros momentos. Observei que os meninos se apropriaram do espaço “dos computadores”, que ficava em uma sala no andar superior, enquanto as meninas se dividiram em alguns grupos transitórios, se espalhando pela escola. Os meninos permaneceram neste espaço em seus tempos livres durante toda minha permanência de pesquisa, já as meninas, que por vezes tentavam interagir com os meninos sem sucesso, percorriam e ocupavam todos os espaços. Cito em meu trabalho outras pesquisas que revelam que as meninas aproximam-se mais dos meninos em todas as faixas etárias, como ocorreu durante minha pesquisa.

Para além de outras observações realizadas, esta foi importante para a percepção da manutenção constante da constituição das identidades masculinas. Primeiro, pela desvalorização do universo feminino, ao se afastarem das meninas e sequer realizar qualquer movimento de aproximação. Este fato ganhou evidência quando entrou na escola um menino novo. Ele aceitou entrar em uma brincadeira em que só haviam meninas. Os meninos também entraram na atividade durante um primeiro momento, para logo em seguida o levarem para a sala dos computadores. Os meninos “mais velhos” exerciam um efeito controlador (ALMEIDA, 1995) que os afastava do universo feminino.

Com a disposição de maior tempo livre do que nas escolas comuns, ficou mais nítida a percepção da organização dos espaços e tempos pelas crianças através de suas escolhas, assim como a resistência dos meninos contra a permeabilidade de posicionamentos de gênero que tratava de reforçar um contínuo trabalho de “fronteiras das relações de gênero” (CORSARO, 2011, p. 182) entre os grupos.

 

Conclusões

 

Apesar de usar neste artigo apenas algumas passagens utilizadas nas categorias de análise da dissertação de Mestrado, considero relevantes minhas impressões sobre a apropriação da divisão sexual binária entre as crianças. Apesar de haver uma nova abordagem sobre o pertencimento de gênero e sexualidade nos cinemas, na música, nos programas de televisão, ou dos movimentos feministas, ainda caminhamos a passos lentos na prática diária, especialmente na área da Educação. A escola se apropria pouco das transformações sociais, submersas em uma visão normatizante, colocando o androcentrismo como neutro sem abrir espaços de debates para deslegitimá-lo. Se considerei que uma escola com princípios democráticos e horizontalidade das hierarquias do saber e das relações, poderia levar a caminhos mais questionadores, isto não ocorreu. Certamente ainda é preciso criar pedagogias realmente inovadoras na quebra dos padrões, como diz Moreno (1999).

Os educadores e as educadoras se posicionaram de forma acolhedora perante minha pesquisa, ficaram interessados nos resultados, me ajudaram a realizar uma dinâmica para investigar as reflexões das crianças sobre os comportamentos de meninos e meninas. Acredito que minha permanência tenha sido uma troca vindoura e tenha causado impacto suficiente naqueles profissionais para que agora possam se atentar para estas questões.

Ressalto que percebi a notável flexibilidade das feminilidades entre as meninas, resignificando múltiplas formas de ser menina para além de valores simbólicos femininos, como a extroversão e a ocupação dos lugares de forma ampla. Talvez, os movimentos feministas tenham propiciado uma abertura de fronteiras que hoje estão fazendo parte do quadro de novas dinâmicas de ação de meninas e mulheres. Não nos espantamos, por exemplo, com mulheres jogando futebol, mas não consideramos com a mesma naturalidade o fato de meninos brincarem com bonecas ou dançarem balé. Por isso, o controle rígido por parte dos meninos na escola pesquisada na manutenção das suas masculinidades talvez seja reflexo da pouca flexibilização da masculinidade também na sociedade. Sendo assim, resta à educação e à escola, apesar de ser um espaço de manutenção mas também servir como um lugar de transformações, oferecer ambiente favorável às desconstruções de padrões engessados que não nos servem mais, enquanto sociedade.

Ao final, uma das meninas fez uma fala surpreendente: “pensando bem, é mais fácil menina brincar com brinquedo de menino ou usar roupas pretas, azuis, do que menino gostar de rosa”.

Divimary Borges

 

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