Esse ano o Brasil reelegeu uma mulher ao cargo da presidência da República. Ainda que esse seja um avanço, a participação política feminina ainda é muito baixa. Embora as mulheres sejam 51,7% dos eleitores, representam apenas 9% da Câmara dos Deputados e 10% do Senado Federal[1]. A discussão da representação das mulheres na política faz parte de uma discussão mais ampla sobre representação na teoria política. Segundo Hanna Pitkin:

Para compreender como o conceito de representação entrou no campo da agência e da atividade política, deve-se ter em mente o desenvolvimento histórico de instituições, o desenvolvimento correspondente no pensamento interpretativo sobre aquelas instituições e o desenvolvimento etimológico dessa família de palavras [2].

Assim, Pitkin passa da etimologia da palavra representação, pra construção do conceito de representação e pra forma como foi materializado na política. Afirma que a teoria política produziu muito acerca da representação, mas se propõe a discussão de duas questões: “a polêmica sobre o mandato e a independência” e “a relação entre a representação e a democracia”. Sobre a primeira questão, afirma que:

(…) Pode ser sintetizado nessa escolha dicotômica: um representante deve fazer o que seus eleitores querem ou o que ele acha melhor? A discussão nasce do paradoxo inerente ao próprio significado da representação: tornar presente de alguma forma o que apesar disso não está literalmente presente. Mas na teoria política, o paradoxo é recoberto por várias preocupações substantivas: a relação entre os representantes na legislatura, o papel dos partidos políticos, a medida em que os interesses locais e parciais se encaixam no bem nacional, a forma pela qual a deliberação se relaciona com o voto e ambas se relacionam com o exercício do governo, etc. [3]

Pitkin analisa várias formas pelas quais o termo “representar” foi utilizado durante a história e afirma que somente com Hobbes, em o Leviatã, que o termo ganhou a conotação de um indivíduo que recebe autorização para agir por outro. De todos os autores citados, como Burke, Alexander Hamilton, John Jay, James Madison, Bentham e Rousseau, o que problematiza a questão que servirá de ligação entre o texto de Pitkin e o tema da representatividade feminina é John Stuart Mill, ao defender o governo representativo, o sufrágio universal e a representação proporcional. Segundo Mill, “é importante que todos os governados tenham voz no governo, porque é difícil esperar que aqueles que não têm voz não sejam injustamente preteridos por aqueles que têm”[4]. No mesmo sentido, Iris Marion Young:

(…) Discute, seguindo os passos de Pitkin, que a autorização eleitoral é importante indício de representação, e que as eleições são o meio óbvio de autorizar os representantes e reautorizá-los pela reeleição. Os partidos políticos são o veículo mais comum para a representação de opiniões, sendo elas definidas em princípios, ideias e valores. Mas, uma vez que as pessoas diferentemente posicionadas têm experiências, histórias e compreensão do mundo particulares, isto leva às diferenças da perspectiva social. Se os grupos não representados encontram-se excluídos da representação ou estão sub-representados, temos aí a injustiça da desigualdade política que tende a produzir a desigualdade social. Este é o caso das mulheres, para pensar apenas neste segmento. [5]

O feminismo em geral muito teorizou sobre a construção do patriarcado, a hierarquia de gêneros e a dominação masculina. Além da divergência de como se formou a estrutura patriarcal, o machismo não é uma entidade fantamasgórica, ele se manifesta no poder, influência e privilégios masculinos em uma sociedade culturalmente sexista. A grande preponderância masculina nos espaços formais de decisões coletivas é um exemplo bem claro disso.

Por séculos mulheres foram sistematicamente excluídas dos espaços públicos da sociedade, sendo confinadas ao espaço meramente privado. Não podiam votar, decidir sobre os rumos da sociedade ou mesmo da própria vida. Não é surpresa, então, que os homens ainda dominem o sistema político, pois são desde muito socializados para estarem confortáveis nesse espaço, que seria seu lugar na sociedade.

A representação feminina em instâncias democráticas de representação eleitoral é de extrema importância para a autonomia feminina, para ocupação desses espaços pela mulher. Em um contexto social onde o homem sempre representou a mulher, que a mulher tenha sua própria voz em espaços públicos não tem somente uma expressão de força simbólica como também produz efeitos reais na sociedade, em termos de identidade, identificação e estímulo para que outras mulheres tomem o mesmo caminho.

Claro que existe muito ainda a ser feito. Mas não se pode negar também os avanços em relação ao direito das mulheres: à época da Constituinte de 1988, as mulheres conseguiram que 80% de suas reivindicações fossem incorporadas no texto constitucional. No início daquela década, com a relativa distensão do regime militar, foram criadas as Delegacias para Mulheres; em 1985, o Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres (CNDM); (…) Em 2003 foi criada a Secretaria Especial de Política para as Mulheres (SPM), com status de Ministério e ligada à Presidência da República. Nesse mesmo ano criou-se a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), também com status de Ministério, tendo como um dos seus focos a mulher negra. Todas as ministras vieram dos movimentos das mulheres. Foram realizadas três Conferências de Políticas para as Mulheres – 2009, 2010, 2011; instituiu-se nacionalmente o Prêmio “Construindo a Igualdade de Gênero”, para as categorias de estudantes de graduação e pós-graduação. Realizaram-se inúmeros Fóruns Nacionais de Elaboração de Política de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres do Campo e da Floresta, a Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transsexuais e criou-se o Memorial da Mulher Brasileira [6].

No entanto, se “é difícil esperar que aqueles que não têm voz não sejam injustamente preteridos por aqueles que têm”, conforme defende Mill, como entender o fato de que, mesmo diante de pouca representatividade feminina no Executivo, Congresso Nacional e no Judiciário, pautas feministas consegam ser aprovadas ou implementadas? É por isso que devemos nos debruçar também sobre outras formas de representação e destacar a importância dos movimentos sociais no Brasil. Segundo Avritzer:

(…) A representação da sociedade civil é diferente daquela exercida na instituição representativa por excelência, isto é, no Parlamento. Dois aspectos diferenciam a representação nas instituições participativas da parlamentar: em primeiro lugar, não há o requisito explícito da autorização, tal como elaborado por Hobbes e, posteriormente, desenvolvido por Hanna Pitkin. Em segundo lugar, não há estrutura de monopólio territorial na representação realizada por atores da sociedade civil, assim como não há o suposto de uma igualdade matemática entre os indivíduos que dão origem à representação. (…) Assim, na maior parte das vezes, a representação na sociedade civil é um processo de superposição de representações sem autorização e/ou monopólio para o exercício da soberania [7].

Para Avritzer, a autorização, ou seja, o “agir no lugar de”, pode ser relacionado com três papeis políticos diferentes: o de agente, o de advogado e o de partícipe. A advocacia de causas coletivas não se dá somente pela autorização de uma pessoa ou conjunto de pessoas para que uma instituição possa agir. Organizações não-governamentais, por exemplo, “defendem atores que não as indicaram para tal função”[8]. Assim, o que legitima advocacia de temas não é a autorização, mas a afinidade, a identificação “de um conjunto de indivíduos com a situação vivida por outros indivíduos”[9]. Portanto, existem organismos internacionais e nacionais que representam um discurso “sobre os direitos das mulheres em geral e não um conjunto específico de pessoas”[10].

Além da representação eleitoral “clássica” e da mencionada anteriormente, existe também a representação da sociedade civil. São organizações criadas “por atores da sociedade civil e que lidam por muito tempo com um problema na área de políticas sociais [e que] tendem a assumir a função de representantes da sociedade civil em conselhos ou outros organismos encarregados de políticas públicas”[11]. Podem acontecer eleições para os representantes dessas organizações, havendo um grupo que dê origem a esses representantes. No entanto, “esse grupo pode incluir ou não todas as associações ligadas ao tema ou mesmo não estar organizado em associações”[12]. É, portanto, uma forma coletiva e não-institucionalizada de ação que gera a representação nesse caso.

O que importa nessa discussão acerca de outras formas legítimas de representação que vão além da eleitoral com relação à temática da discriminação de gênero é que as mulheres, ainda excluídas da instância clássica e formal de representação, puderam se unir e procurar outros canais por meio dos quais pudessem manifestar suas demandas, participar da vida política da sociedade e influenciar não só o governo, mas os discursos públicos e a cultura[13]. Não podemos dizer que essas outras formas de representação são menos válidas que a representação eleitoral clássica. Mesmo assim, devemos sempre problematizar: estamos conquistando um espaço por outras formas de representação e, assim, buscando chegar à participação eleitoral ou o sistema patriarcal de dominação masculina nos empurra para fora das instâncias formais de representação enquanto mantém intacta a parte mais importante e significativa do poder?

 

Referências

[1] PORTAL BRASIL. Mulheres na Política. Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2012/02/mulheres-na-politica>.

[2] PITKIN, Hanna Fenichel. Representação: Palavras, Instituições e Ideias. Pg. 21

[3] PITKIN. Pg. 30.

[4] MILL abud PITKIN. .Pg. 39.

[5] AVELAR, Lúcia. Mulher e Política em Perspectiva. In: Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado: uma década de mudanças na opinião pública. Org. Gustavo Venturini e Tatau Godinho. São Paulo: Ed. Funação Perseu Abramo, 2013.  Pg. 296.

[6] AVELAR. Pg. 298

[7] AVRITZER, Leonardo. Sociedade Civil, Instituições Participativas e Representação: Da Autorização à Legimidade da Ação.PITKIN, Hanna Fenichel. Representação: Palavras, Instituições e Ideias.PORTAL BRASIL. Mulheres na Política. Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2012/02/mulheres-na-politica>. Pg. 444.

[8]AVRITZER. Pg. 456.

[9] AVRITZER. Pg. 457.

[10] AVRITZER. Pg. 457.

[11] AVRITZER Pg. 457.

[12] AVRITZER. Pg. 457.

[13] AVELAR. Pg. 296.

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