Não sei muito sobre Thereza, minha bisavó. Ouvi, ao longo da vida, recortes de histórias aqui e ali sobre como ela se desdobrava com esforço para garantir o sustento da família. Em meio aos relatos de uma mulher vigorosa e firme, minha mãe e tias costumavam contar, achando certa graça, um episódio que a mim soava peculiar. Logo após perder o marido, dizem, vó Thereza circulava pela cidade alegremente, fazendo incontáveis planos para um futuro cheio de possibilidades. Era a viúva mais feliz que já andara por aquelas ruas interioranas e bucólicas. Sentia-se livre, creio.

Recentemente, ao mergulhar em textos sobre o envelhecer e as mulheres, fiquei surpresa ao constatar, a partir de levantamentos de outras pesquisadoras, que o sentimento de minha bisavó talvez não seja tão único. Depoimentos colhidos pela cientista social Alda Britto da Motta mostram mulheres idosas que, na velhice, se sentem bem, livres, sem amarras atreladas à juventude. A beleza que com o tempo se esvai é um elemento recorrente nas declarações das entrevistadas para explicar a sensação de libertação diante do passar dos anos. Não há mais beleza e, portanto, também não resta preocupação dos parceiros em preservar essa beleza só para si.

A mulher e o tempo

Dona Celina, por exemplo, com 73 anos à época da pesquisa, afirmou: “Estou feliz. Agora que eu estou velha, ele [o marido] não se incomoda que eu saia, não. Eu me considero uma pessoa jovem, porque quando eu estava jovem eu nunca tive direito de ir a lugar algum” (MOTTA, 1999, p. 212). Dona Regina, cuja idade não foi indicada no estudo, resume seu sentimento frente ao envelhecer em uma frase curta: “Ninguém me manda mais”. O fato de um grande número de mulheres, independentemente de classe social, considerar sua etapa atual de vida, como idosas, a etapa mais tranquila, feliz e – este termo é frequente em suas falas – livre que já tiveram carrega, segundo Alda, uma dupla valência.

Por um lado, há a liberdade de gênero. Elas se tornam mulheres que podem circular por onde quiserem e viver conforme sua vontade. Por outro, como liberdade geracional e, mais que isso, existencial, o envelhecimento é atrelado a um sentido de marginalismo. Elas podem sair porque já não importam tanto. Não são mais bonitas. Estão velhas, gastas e feias. Já não vão atrair os homens, nem mesmo aqueles da sua idade, também velhos. Uma vez que elas não mais se reproduzem, não há muito o que preservar.

Na modernidade ocidental, ser velha é, sobretudo, ter perdido uma importante e não-falada condição social de reprodutora, é colher um pouco dos frutos desta nos filhos – uma compensação afetiva, um apoio ou uma carga, a depender do caso. Mas é, também, ir conseguindo (ou ter conseguido) a libertação de certos controles societários que se referiam justamente à reprodução e a tolheram durante toda a juventude. (MOTTA, 1999, p. 211)

No corpo-em-mulher, a velhice acarreta ambiguidades. Há o medo de não mais agradar, de não ser mais desejada e olhada. Afinal, os padrões patriarcais nos indicam que, para a mulher, “não basta ser jovem, bela e sedutora, é preciso ser fértil, esta é sua essência, sua razão de ser no mundo” (SWAIN, 2003, p. 9). Estímulos constantes advindos dos mais variados âmbitos (sociais, econômicos, culturais, familiares, religiosos) nos orientam a viver sempre em função do que homens vão pensar de nós. As feministas, com suas primaveras e insurreições, resistem, claro. Principalmente as jovens.

Mas e as velhas, aquelas que, como Dona Regina, precisaram perder o vigor físico para se desvencilhar das imposições de um homem? E as Donas Celinas, que, para poderem transitar com satisfação pela calçada precisam, em paralelo, encarar o olhar esvaziado de maridos que já não se interessam mais por elas? Ou as Therezas, que dependem da viuvez para fazer planos e aspirar a diferentes formas de viver?

A sociedade, tão patriarcal quanto limitante para nós, mulheres, vem ditando com frieza nossos destinos antes e após o envelhecer. Há diferenças de perspectivas sobre velhice para velhas e velhos. Eles tendem a assumir a melancolia da velhice e se entristecem com os corpos que definham. Enquanto elas, muitas vezes, se deixam levar pelo entusiasmo de liberdades tardiamente conquistadas, tornando-se até mais ativas, como apontam as pesquisas de Motta. Isso porque diversas mulheres velhas não tiveram a oportunidade de alcançar uma vida profissional ativa, foram relegadas a tarefas estritas de reprodução social, e, simultaneamente, contaram com vidas sociais bem mais limitadas que as de homens da sua geração. Tal conjuntura de opressão as conduz a um sentimento de maior satisfação e plenitude na velhice.

 

Até que ponto se sustenta a liberdade restrita ao envelhecer?

 

Lembro que, ao longo de toda a infância, escutava minha avó sonhando alto com diferentes maneiras de levar a vida que, para ela, eram simplesmente inalcançáveis, uma vez que ela era mulher. Ela queria ser caminhoneiro. No masculino mesmo, claro. Na concepção dela, as contrariedades do existir sequer admitiam que uma mulher pudesse exercer tal profissão. Dona Irene (é assim que ela é conhecida na vizinhança) queria ser “caminheiro” para poder viajar país afora. E – isso ela nunca me disse, mas é preciso saber ler as entrelinhas –, em especial, para experienciar o sabor ímpar que a liberdade tem.

No seu imaginário, assumir a direção, pegar a estrada e virar a curva era libertar-se.

Ela não se tornou caminhoneira e, tampouco, livre. Percorreu os anos sob as amarras do marido, dos filhos, da casa e da reprodução social. Ao contrário de sua sogra (a bisavó Thereza), minha avó, após ficar viúva, perdeu-se em si e sucumbiu aos males da mente. Não experimentou qualquer sabor de liberdade. Mas plantou suas sementes. Permitiu, com suas desvairadas utopias de quem quer ser caminhoneira, que suas filhas e netas rumassem a estradas distintas. Hoje vejo minha tia, minha mãe ou até eu mesma envelhecer com autonomia. E sinto, nesse amadurecer, grande influência da força que minha vó sequer sabia que tinha.

A gente precisa mostrar para nossas jovens e velhas que não há restrições para o ser-mulher. Para isso, contudo, temos de construir juntas os caminhos que podem levar cada uma de nós a ser quem – e quando! – quiser.

 

Curtiu esse texto? Fortaleça nosso blog!

 

Referências

BEAUVOIR, Simone de. A Velhice. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

MACHADO, Liliane Maria Macedo. Somos Tão Jovens. Eco (UFRJ), v. 13, p. 1-15, 2010.

MOTTA, Alda Britto da. As dimensões de gênero e classe social na análise do envelhecimento. Cadernos Pagu, Campinas, n. 13, p. 191-221, 1999.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, v. 16, n. 2, Porto Alegre, jul./dez. 1990, p. 5.

SWAIN, Tania Navarro. Velha? Eu? Auto-retrato de uma feminista. LABRYS: estudos feministas, n. 4, 2003. Disponível em: www.unb.Br/ih/his/gefen Acesso em: 24 de abr. 2021.

Compartilhe...