O tempo passa e falar do Severinas continua sendo difícil e não é pela falta de palavras, de forma clariceana, ele apenas é e existir já se significa muito. O Severinas Mulheres do Sertão é a forma que escolhi de ser insubmissa, de estar com outras mulheres e ao encontrar cada uma delas dizer o quanto somos importantes. Eu sou a Mayara Albuquerque e com a Maria Oliveira, minha amiga-irmã, estamos desde 2018 aprendendo e compartilhando experiências com mulheres do Sertão Central do Ceará, mais especificamente em Quixeramobim, o lugar em que vivemos.

Em 2019 publicamos a nossa história no blog da professora Lola Aronovich e é incrível perceber que já fomos além do que aquele texto relata. Conquistamos editais estaduais e nacionais, um deles em primeiro lugar, mostramos para nós mesmas e para as mulheres que vamos conhecendo nessa caminhada que lugar de mulher é onde ela quiser e o Severinas é feito disso: viajamos de moto pelo sertão, montamos exposições em plena noite em lugares com pouca luz, acordamos de madrugada para mobilizar, enfrentamos chuvas torrenciais para voltar para casa e quando chegamos nas comunidades e assentamentos as mulheres perguntam preocupadas: “vocês não têm medo?”. Quando eu viajo só é que a preocupação redobra. A minha resposta verdadeira fica no coração, não temos medo porque vocês nos dão força.

Iniciamos nossas atividades em 2018, através do edital Ceará de Incentivo às Artes 2015 da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (Secult) e de lá para cá nunca mais paramos. Assim como a universidade pública, temos um tripé que se sustenta em: oficinas, rodas de conversa e exposições. As oficinas são realizadas em escolas públicas municipais e estaduais da cidade de Quixeramobim e zona rural, as rodas de conversa que chamamos carinhosamente de Ciranda das Mulheres Sábias (em referência ao livro da psicanalista e poeta Clarissa Pinkola Estés) com mulheres de assentamentos e comunidades, e as exposições acontecem nas zonas rurais, com as fotografias das mulheres que vivem lá.

 

Severinas

Maria encantada com a sua projeção na exposição Severinas Mulheres do Sertão no Assentamento Canaã.

 

Desde o primeiro edital decidimos que iríamos expor apenas no lugar em que as mulheres vivem, para que todas pudessem ver suas fotos, levá-las para casa e também para ser um dia de festa e celebração da vida de cada uma. Em uma das exposições, que reunia mulheres de três lugares, às 7 da manhã, já tínhamos uma fila esperando do lado de fora do salão paroquial do assentamento para entrar, e, em outra, Maria com seus 70 anos levou o crochê para ficar tecendo enquanto estava com a gente, depois de ver a sua foto e projeção na parede. São histórias que só as nossas exposições têm, por isso tão importantes e memoráveis para nós.

O segundo edital aprovado foi um verdadeiro marco para o Severinas, um divisor de águas. Tiramos o primeiro lugar no Prêmio Funarte Artes Visuais Periferias e Interiores. O primeiro lugar em mais de 300 projetos oriundos de todo o Brasil. Foi a partir dessa conquista que percebi que estávamos apenas começando. Eu sou professora de escola pública concursada do estado, Maria é agente social concursada do município e não nos consideramos artistas, fotógrafas, videomakers, mas desenvolvemos um trabalho envolvendo fotografia, audiovisual, artes visuais e seguimos atravessando várias linguagens para criarmos a nossa.

O que aprendemos quando temos a oportunidade de compartilhar a vida com essas mulheres que chamamos carinhosamente de Severinas ainda não pode ser dito ou fotografado, no entanto o processo de reconhecimento de nossas ancestralidades, raízes, lutas e conquistas começou a partir do momento que pudemos estar com elas. Foi quando olhei para Socorro e o seu quintal produtivo e vi na força de trabalho daquela mulher a verdadeira mudança que quero ver no mundo. É a comida sem veneno, a terra para plantar, acesso à água e formas de estocá-la. As conquistas de Socorro fazem parte das pautas de luta de décadas das mulheres camponesas por valorização de seus trabalhos, soberania popular, igualdade, autonomia, justiça social, democracia participativa, por um país livre de violência. A luta das mulheres rurais por terra, água, agroecologia, trabalho e renda, saúde,  previdência e assistência social públicas, educação contextualizada e do campo é a nossa luta também.

Atualmente estamos trabalhando com o apoio de um edital que tem tudo a ver com o que acreditamos. O Prêmio Funarte Descentrarte tem como proposta descentralizar ações de formação e produção artísticas, como também de inclusão “cidadã nas artes”, assim estamos dando continuidade ao nosso trabalho em escolas públicas, em assentamentos e comunidades, fomentando espaços de troca e fazeres artísticos. Ao final, teremos uma exposição rural na Casa Severinas com instalações das artistas convidadas e das produções das mulheres e alunas a partir de cada encontro que realizamos.

As nossas colaboradoras-oficineiras são muito importante para nós. Até agora tivemos mulheres negras, trans, quilombolas, interioranas, artistas que compartilharam suas experiências de vida e sua arte. Infelizmente com a pandemia do COVID-19 estamos em isolamento social e com as atividades paralisadas, mas temos fé que em breve estaremos juntas novamente, temos muito o que fazer.

 

Mulher idosa assobiando

Lúcia, uma Severina cheia de história para contar, assobia com a Rosinha em seu ombro.

 

E diante de tantas notícias ruins nesse ano de 2020, o Severinas foi selecionado em mais dois editais públicos estaduais: o Circula Ceará da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (Secult), em parceria com Fundação Nacional das Artes (Funarte) e o XII Edital Ceará de Incentivo às Artes, também da Secult. Estamos ainda esperando o resultado de mais dois outros, ambos nacionais. O que importa mesmo é saber que nada terá o poder de calar a nossa voz e barrar os nossos planos.

Não podemos deixar de dizer que a fotografia no nosso projeto é o dispositivo que nos permite ir além da escuta, é quando podemos compartilhar com mais pessoas a imensidão de narrativas e corpos que existem, as várias possibilidades de ser mulher. É quando a voz torna-se uma memória visível e essa visibilidade pura representatividade.

Recentemente Maria Carneiro, de Santaluz, no sertão da Bahia, deixou um recado na nossa página do Instagram que nos encheu de emoção, felizmente temos uma coleção de mensagens guardadas com muito carinho por mulheres do Brasil todo. Cada companheira que nos deixou mensagem, como a Maria fez, não tem ideia de como nos enchem de coragem e determinação:

Oi, meninas Como vocês, também sou uma mulher nordestina, além disso, da caatinga… Acompanho esse projeto, que admiro muito, desde que tive conhecimento desse ig, em meados de 2018. Agora mesmo vocês estão recebendo uma porrada de curtidas minhas, ultimamente eu tenho visitado esse ig mais do que nunca, lendo tudo e revisitando todas as fotografias, é incrível a nossa capacidade de enxergar coisas que antes não tinham sido vistas. Tratando de curtir, me deliciar e emocionar com tudo que acabei por deixar passar. Sempre que posso compartilho esse ig com mulheres como as severinas, como eu, como tantas outras de nós. Espero ver esse projeto lindo brilhando cada vez mais. Vocês fazem um trabalho de representatividade lindíssimo!!

Severinas Mulheres Sertão é a forma que encontramos de conhecer mulheres e não nos sentir sozinhas na caminhada árdua que é lutar pela equidade de gênero, empoderamento feminino e representatividade. Precisamos de espaços de formação, em que mulheres se encontrem e se sintam acolhidas, compartilhem suas próprias histórias, e aprendam umas com as outras. A arte pode e deve ser essa ponte. Por meio da fotografia, da performance, do audiovisual, da poesia e de um processo de fanzine ou colagens, o que quer que seja, podemos encontrar a nossa identidade e ecoar ela pelo mundo. Resistir é o que fazemos de melhor. Como gostamos de dizer: Voa, Severinas!

 

Mayara Albuquerque é educadora, pesquisadora feminista e realizadora do projeto Severinas Mulheres do Sertão.
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