Fotolivro que aborda identidade de gênero, com destaque para a não-binariedade, é símbolo de resistência em tempos obscuros

 

Foi em 2018, durante nosso último ano de graduação do curso de jornalismo na Unesp/Bauru, que surgiu o primeiro vislumbre do que viria a ser o Sui Generis. À época, ainda sem um nome oficial para o Trabalho de Conclusão de Curso, eu e Bianca Moreira, amigue de faculdade e de vida, decidimos retratar o espectro da identidade de gênero por meio de fotos e textos. O fotolivro, que aborda, em especial, a temática da não-binariedade, veio à luz definitivamente em dezembro de 2020.

Durante dois anos (2018-20), trabalhamos no processo de criação do material, que incluiu: leitura de base teórica; selecionar e entrevistar fontes; marcar os ensaios fotográficos; fazer as fotos; redigir os textos; montagem e diagramação do fotolivro. Bianca e eu compartilhamos do amor em comum pelas artes, mas o que mais nos motivou foi o amor pela escrita e pela fotografia –, além da vontade de contar histórias de um jeito diferente. Ao todo, entrevistamos, fotografamos e adentramos a vida de seis pessoas que se identificam como não-bináries. O resultado está nas páginas de diagramação minimalista, idealizadas pelo Coletivo Boitatá (Design/Unesp).

 

 

Vale dizer que a inspiração para compor o Sui Generis surgiu de um livro em comum. Após lermos Só Garotos, de Patti Smith (2010), começamos a levantar a possibilidade de discorrer melhor a respeito da pauta das diversas identidades de gênero.  No livro, que é autobiográfico, a cantora (compositora, poeta, performer e ativista) se debruça sobre as memórias do começo de sua trajetória artística, na Nova York da década de 1970, em pleno movimento da contracultura estadunidense.

Só Garotos é fruto de uma promessa que Patti fez ao amigo e fotógrafo Robert Mapplethorpe, que faleceu em decorrência da AIDS em 1989. Smith e Mapplethorpe foram de casal de amigos a casal romântico e, depois, viraram (só) amigos de novo.  Uma dupla que misturou amizade, companheirismo e, principalmente, arte: ela se dedicou a escrever não apenas letras de música ou poemas, mas também literatura, contos; e ele fotografou corpos para expressar a própria sexualidade através da imagem. Por consequência, o tema da identidade de gênero percorre toda a narrativa – passando pela a feminilidade de Robert, bem como p estilo tom boy encarnado por Patti:

Alguém no max’s me perguntou se eu era andrógina. Perguntei o que era aquilo. ‘Você sabe, como Mick Jagger’. Imaginei que deveria ser algo interessante. Achei que a palavra fosse alguma coisa ao mesmo tempo bonita e feia. O que quer que significasse, com um simples corte de cabelo, milagrosamente, virei andrógina da noite para o dia¹.

 

 

Assim, as peças fundamentais para a composição do Sui Generis já estavam dispostas: a paixão pela literatura e pela escrita; a necessidade de se expressar através das fotos; a vontade de mergulhar num tema tão novo quanto a não-binariedade e a necessidade de trazer histórias de vivências relacionadas à identidade de gênero. No entanto, alguns detalhes não foram simples de acertar.

A busca por material teórico que abordasse não apenas o conceito de gênero, mas a não-binariedade em si, se prolongou por tempo maior do que o esperado: poucos são autores que pesquisam a temática dentro do ambiente acadêmico, além de ser um assunto relativamente novo. O nome que sustenta a teoria do fotolivro é Judith Butler, quem, a partir da elaboração da Teoria Queer, foi uma das primeiras a colocar os holofotes da academia nas questões de gênero.

Fora Butler, as próprias fontes entrevistadas e a experiência de cada uma delas com a não-binariedade serviu de fio condutor para a produção de um material não apenas visualmente instigante, mas que traz explicações didáticas e importantes sobre conceitos-chave, tais como: gênero; sexualidade; não-binariedade; transexualidade; LGBTQIA+ etc.

As fotos que compõem o livro, todas feitas por Bianca, seguem o estilo fine art. Isso significa que as imagens criam um sentido narrativo, numa tentativa de o próprio fotógrafo expressar seus sentimentos. Assim, dentro do Sui Generis, as fotos refletem não apenas o que cada pessoa transpôs frente à câmera, mas também o que Bianca sentiu durante cada ensaio fotográfico – até porque, foi a partir da produção do fotolivro que Bianca passou a se identificar como pessoa não-binária.

Os textos, derivados de entrevistas, foram escritos de uma perspectiva própria, pessoal, inspirados num estilo literário – por isso optei por narrá-los em primeira pessoa. São minibiografias que tentam seguir a linha das longas reportagens da revista Piauí ou os clássicos da revista estadunidense The New Yorker. Mais do que jornalismo literário, o Sui Generis traz a poética para dentro de sua narrativa, num experimento que tem influências nomes como Joan Didion, Zelia Gattai, Sylvia Plath e Virginia Woolf.

De maneira geral, Sui Generis é um projeto independente, que nasceu de um trabalho de faculdade, mas que quer alcançar o mundo – ou parte dele. Buscamos, eu e Bianca, a união do trabalho jornalístico com a arte, um jeito de integrar forma e conteúdo – de maneira que estética do livro é peça fundamental. Ainda que seja um projeto experimental, Sui Generis tenta mostrar um caminho alternativo para se seguir dentro do jornalismo especializado.

A importância de um fotolivro nesses moldes, que traz uma temática atual e social, se mostra essencial, uma vez que a própria credibilidade do jornalismo diário tradicional se encontra defasada. O projeto, portanto, dá margem para o debate sobre a produção jornalística fora dos moldes tradicionais. Ao mesmo tempo, traz conteúdo pertinente quando se fala em Direitos Humanos e sociedade, e tem a finalidade de levar conhecimento sobre a temática de gênero para o maior número de leitores possível, de maneira fácil e acessível.

O livro se mostra ainda mais relevante quando o país atravessa um momento político de polarização e envolto por fakenews, que disseminam guerra a uma suposta “ideologia de gênero”. Nesse cenário estão: a eleição de políticos de extrema direita; a nomeação de Damares Alves como ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, que afirma que “meninos usam azul e meninas usam rosa”; e a proposta, feita por Carlos Bolsonaro, de barrar a possibilidade do uso da linguagem neutra e inclusiva.

Abordar questões que afetam minorias ou pessoas que apenas não se encaixam no padrão binário da sociedade não é algo simples ou fácil. O tabu e o preconceito se mostram presentes quando pautas abordam sexualidade, gênero ou corpo. Por isso é preciso difundir conhecimento a respeito de um tema tão recente, mas tão recorrente. Sui Generis atua, portanto, como símbolo de resistência em meio ao sucateamento de instituições públicas, desvalorização da ciência e desumanização.

Um trabalho cujo desenvolvimento não teria sido possível de realizar sem os nomes de Caê, Gabe Mancini; Thiago Sguoti; Sthefan Leal; Quin Roque; Wesley Anjos.

 

Beatriz Milanez é jornalista e escritora. Apaixonada por literatura e histórias, enxerga nas artes a potencialidade para transformar o mundo. Sui Generis é seu primeiro fotolivro. Compartilha impressões de leitura e idéias aleatórias no twitter @BeaMilanez
Compartilhe...