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Nos descobrimos grávidos dia 24 de março, exatos 3 dias de atraso da minha sempre tão regrada menstruação. Quer dizer, 3 dias, 4 testes de farmácia e 1 exame de sangue depois.

Que momento feliz e doido. Fiquei logo muito orgulhosa da minha proclamada capacidade de entender meu ciclo, conhecer os tempos do meu corpo, ouvir as dicas de concepção bem sucedida das amigas (beijo, Li!). Era a primeira vez que tentávamos pra valer, depois de fazer tudo como manda o figurino, a consciência, a ginecologista e os perfis de Instagram sobre maternidade: exames, conversas, vitaminas, papos sobre dinheiro, enfim.

Em meio à euforia daquela sensação desconhecida, misturada a uma desconfiança e inexperiência, ligamos para as irmãs — aquele espaço de conforto fora da expectativa parental, mas ainda na intimidade do núcleo familiar. Cada qual com seu jeito (quase oposto), comemorou conosco a novidade.

Em coisa de pouquíssimos dias, os algoritmos das redes sociais de nós dois já tinham entendido tudo. Deslizar pelo feed era ver quartos de bebê coloridos com camas montessorianas, discussões sobre puerpério e rodas de amamentação, eventos sobre parto humanizado, perfis de parentalidade positiva, grávidas e hashtags com as respectivas semanas de gravidez, slings de marcas nacionais, bebês de oclinhos, bebês comendo, bebês tossindo, bebês, bebês, bebês.

A gravidez é um bebe gordo de bochechas rosadas no final do túnel.

Em casa, as conversas passavam pela escolha da obstetra, nomes de menino — o de menina já está há tempos escolhido — , ao que fazer para manter o escritório e inventar um quarto de bebê. Em outras palavras, estávamos bem felizes.

Uma das questões que logo surgiu foi: contamos para as pessoas?

Aí que várias opiniões, teorias e medos surgem instantaneamente: melhor esperar três meses, a chance de aborto espontâneo é muito alta; vai que tem algum problema; vai que não vai pra frente; vai que é uma gravidez ectópica; ou o feto tem algum atraso; vai que, vai que…

Ao mesmo tempo, como lidar com a ansiedade e desejo de compartilhar um momento que já era assim, tão feliz? Íamos fingir que um terço daquela gravidez simplesmente não tinha existido?

Pois decidimos contar sim, ao menos pra um bom punhado de pessoas próximas. Logo entendi que cansei dessa postura de não poder falar sobre o que pode “dar errado”. Hoje, mesmo que dentro da minha bolha-paulistana-branca-classe-média, vejo muitos debates sobre desidealização da maternidade, puerpério, rede de apoio às mães, etc., mas quase nada (ou nada?) sobre tudo que se passou bem antes de chegar a esse(s) ponto(s).

O que trava, será, essa conversa? Vejam que não estou falando de publicizar a gravidez fazendo foto (ou propaganda) de teste de farmácia positivo nas redes sociais. Mas sim, de compartilhar com as pessoas queridas, mais ou menos próximas, um momento (em muitos casos) bastante feliz.

Seria vergonha de dizer que passou por um aborto espontâneo, superstição de achar que verbalizar as coisas dá azar, medo de ter que desdizer o que foi dito? Talvez seja uma análise ainda superficial, mas me parece que todas essas razões têm em comum a culpabilização da mulher pelo que ocorreu. Pois ela sabia que dava azar dizer, mas disse mesmo assim; porque o seu corpo não deu conta de “segurar” a gravidez; porque devia ter feito – insira aqui o absurdo que quiser – para evitar que isso acontecesse; porque ficou aí iludindo a família com notícia “falsa”.

Eu não acredito em nada disso. Pra mim, esse mecanismo só serve a impedir que as mulheres se comuniquem de maneira mais honesta umas com as outras, que compartilhem as dores e contem com uma rede de apoio maior nesses momentos. Se é pra contar, que seja não só a parte feliz, mas também as eventuais partes difíceis — tão mais reais.

Nosso ultrassom seria na sexta, dia 5, no primeiro horário da manhã. Passamos dias pensando em como o seria o exame e, até, no café da manhã que tomaríamos depois, pra relaxar e tentar restabelecer uma rotina de normalidade que parecia suspensa desde que descobrimos que poderíamos em breve ter um bebê.

Pois na véspera do dia do ultrassom comecei a ter cólicas estranhas. Tentei ficar quieta, deitar, meditar. Não passavam. Comecei a sangrar.

Em questão de segundos liguei pra médica, enfiei a carteira na bolsa, chamei o Uber para o hospital, tranquei a porta de casa, pedi pra ele me ligar quando pudesse. Parecia um princípio de aborto e era necessário verificar. Três horas de ansiedade, exame de sangue, ultrassom transvaginal e consulta com duas médicas depois, o diagnóstico: uma “gravidez química”.

Me achava uma pessoa bem informada até, mas daquilo nunca nem tinha ouvido falar. Parece que se trata de um óvulo fecundado que, por algum motivo, não se implanta direito no útero. Com isso, o organismo produz o HCG (hormônio da gravidez), mas logo elimina o potencial embrião.

Desgosto, muito, do termo. Saí do hospital com uma sensação de que tinha enganado a mim mesma me dizendo grávida, quase como se tudo tivesse sido uma enorme invenção da minha cabeça e dos meus hormônios. (essa eterna culpa, ó céus!). Não, Nathalia, não foi nada disso.

Eu não acho pior ter que recontar para aquelas pessoas que sabiam da gravidez que não estava mais grávida. Pior, me parece, seria fingir que não passei por nada disso, não poder elaborar coletivamente a dor, não ter apoio e encarar as coisas como elas são. Tive um apoio lindo do meu companheiro, minha mãe, irmã, amigos e da família dele também. Sorte minha, pois sei que não é assim para tantas e tantas mulheres.

Aprendi rápido que a idealização da gravidez começa bem antes do que eu imaginava. Só se fala mesmo das gravidezes “bem sucedidas”.

Que paremos de nos esconder. Que partilhar a parte difícil sirva de apoio àquelas que passaram por coisas parecidas, para que tenham com quem conversar, para que não se sintam sozinhas, para que relativizem as próprias experiências a partir de um imaginário coletivo mais real. Desde que, é claro, isso seja possível para você e seu emocional, nada de novas prisões disfarçadas de acolhimento.

E por aqui tá tudo bem. Que fique claro, esse texto não é um pedido de ajuda (tampouco um texto científico sobre o assunto), e sim, um caminho para olhar pra frente tendo elaborado o que passamos, como também um ombro disponível a quem quiser conversar.

 

 

Nathalia Boanova Pesquisadora de cidades e gênero • semioticista e professora • fazedora de pães e mais carboidratos • passeadora de gente por SP • casamenteira aos finais de semana
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