Eu tenho um problema muito sério com sutilezas. Tudo que é sutil, para mim, na verdade, grita. Histericamente.

Despropositadamente, ou por querer, quase tudo o que é sutil — para quem não perde a mania de tentar sempre enxergar nas entrelinhas — pulsa. Entrega. Revela. Eu desconfio.

Veio pedindo um favor de maneira sutil, de mansinho, suave… Eu já entendo que lá vem exploração. É que a sutileza, às vezes, parece entregar um pensamento oposto ao que se diz.

A sutileza do machismo de todo dia é para mim ensurdecedora.

Dia desses escrevi um texto sobre a “exigência” da “boa aparência” feminina nos espaços que ocupam as mulheres bem-sucedidas.

Essa coisa de fazer unha, passar batom, depilar, numa tentativa de ganhar respeito, para não ser destratada ou tida como incompetente. Essa coisa de levantar mais cedo para fazer tudo isso, de despender tanto tempo com isso. Essa coisa de usar o salário, mais baixo, para pagar tanta coisa a mais. Sobrancelha, depilação, maquiagem, salto alto.

Essa coisa de não ter culhões e, portanto, de não ter a dignidade como presunção.

Essa coisa de começar o dia já perdendo, enquanto o lado de lá do gênero tem mais tempo para dormir, menos rituais para cumprir, e, ainda assim, ser tão mais merecedor de respeito.

Essa coisa terrível de ter que recorrer ao batom, ao corretivo e à unha feita para se colocar no mundo do sucesso. Ainda que a gente goste de se enfeitar, essa obrigação é mesmo uma coisa terrível.

Também tratei da minha inevitável e vergonhosa surpresa sempre que vejo uma mulher em um posto de comando. É uma surpresa que tem raiz na minha infância, na época em que ser chefe não era “brincadeira de menina”. Brinquei muito de casinha, de fogãozinho, de ser só mamãe dos meus ursinhos e das minhas bonecas. Desde muito cedo, ouvia muita “brincadeira de menino” sobre uma interminável lista de lugares que não cabiam às mulheres ocuparem.

Era mais ou menos sobre isso esse texto.

Como tudo que é publicado, jogado neste mundo selvagem da internet, é tratado como se não tivesse dono, meu texto foi apropriado por um exército de homens que me aplaudiu. Uma parte me aplaudiu e disse que sim, que as mulheres têm mesmo que ocupar os espaços públicos, que têm mesmo que negar o trinômio tão contemporâneo da bela-recatada-do lar.

Maravilha. Só um detalhe, que faz uma gigante diferença: se elas quiserem esse trinômio para si, têm todo o direito de fazê-lo.

Nas entrelinhas, aqueles que se diziam apoiadores de minhas linhas, gritaram comigo nas sutilezas de seus posicionamentos.

Para eles, as mulheres tinham mesmo que ocupar esses lugares, “desde que”. “Desde que”, diziam eles, “por mérito”, “por competência”.

“Desde que” seja para “transformar, não para manipular”. “Desde que” não fosse por algum tipo de “sistema de cotas” ou para “atender alguma exigência da lei”. “Desde que” nada. Pois é, não entenderam nada. E ainda esfregaram na minha cara tudo o que pensam de mim. Enquanto me aplaudiam.

Ali, eu via a sutileza daqueles homens gritando bem alto para mim qual é o lugar que eu devo ocupar, as condições que eu preciso cumprir à risca para poder ser digna desse lugar de comando.

Como é que se vai negar qualquer benefício desse tal “tipo de sistema de cotas”? Se a gente começa o dia perdendo. Se a representatividade não é real. Como é que não se vai atender a uma exigência da lei (ainda tão insuficiente)?

Se a mulher ocupa um lugar de comando, não está subentendido que é por mérito? Então tudo que a mulher conquista é pela “beleza”? “Pelo que esconde embaixo da saia”? Então faz parte da essência do feminino manipular? Ainda esse discurso das bruxas? Vai. Aproveita e diz para mim onde é a minha fogueira que eu vou lá me queimar.

Essa sutileza escancarou para mim que o homem tem um salvo-conduto para falhar, para ser incompetente, mau-caráter, corrupto, mesquinho, para ser mau. O homem tudo pode. Mesmo. A condição masculina nunca é argumento para justificar que um homem falha.

O contrário não é verdadeiro. A mulher quando falha, “tinha que ser mulher”. Qualquer falha é o suficiente para jogarem fora o precário disfarce de aceitação da possibilidade do sucesso feminino. Um deslize, e é logo uma vadia, puta, vagabunda. Ufa! “Sai daí, mulher”. A sexualização e objetificação da mulher é uma das armas mais usadas para insultar quem quer que seja. Ainda que o “filho da puta” seja homem.

Quando está em alguma posição de destaque, a mulher tem que ser impecável. É tanta vigilância. E qualquer deslize: “Tirem ela de lá, de onde já devia ter saído mesmo. É isso que dá!”.

Tinha que ser mulher!

 

Iara Gonçalves Carrilho  é advogada, especialista em Ciências Criminais. Em outubro, terá o privilégio de publicar seu primeiro livro “A Violência de Gênero Além das Grades”, pela editora Lumen Juris. Revisão por Clarice Batista.

 

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