Cinco milhões de pessoas tomaram as ruas em 81 países para protestar contra o novo presidente, que já começou a colocar em prática a agenda retrógrada do Partido Republicano

Donald Trump não dormiu bem em sua primeira noite na Casa Branca. Às 5h da manhã do sábado (21/01), menos de 24 horas após assumir a presidência dos Estados Unidos, mulheres, crianças e defensores dos direitos humanos chegavam à Independence Avenue, em Washington D.C., para aquela que se tornaria a maior mobilização popular da história. O revide veio imediatamente. Na segunda-feira, o presidente restabeleceu a política da década de 80 que proíbe o repasse de verbas federais para ONGs internacionais que viabilizam abortos – mesmo que o dinheiro não seja utilizado para este fim. Nos próximos quatro anos, são as mulheres que perderão o sono.

Atualmente, o governo concede US$ 600 milhões através da ONG Planned Parenthood (Planejamento Familiar, em tradução literal), que são aplicados em programas nacionais e internacionais de saúde da mulher. São beneficiadas 5 milhões de pessoas em dezenas de países, como a Síria, Darfur e Nigéria. Dentre os serviços, estão o subsídio de contraceptivos, exames preventivos, educação sexual e abortos.

Trump assinou os decretos no Salão Oval da Casa Branca, rodeado por homens. A ameaça que a agenda Republicana representa aos direitos de escolha das mulheres foi uma das propulsoras da “Marcha das Mulheres em Washington”, que mobilizou cinco milhões de pessoas nos Estados Unidos e em mais 80 países. Somente em D.C., um milhão de ativistas compareceram, número quatro vezes maior do que o esperado. E como as duas vias principais que seriam percorridas no itinerário até a Casa Branca e mais oito transversais ficaram abarrotadas de pessoas, a passeata não aconteceu. O recado, no entanto, foi dado.

“A partir de agora, precisamos estar preparadas para ir para às ruas a qualquer momento. Ninguém sabe o que vai acontecer nos próximos 4 ou 8 anos. A próxima grande guerra, talvez?”, disse Brianne Butler, 27 anos, uma das organizadoras globais da Marcha.

Munidos de cartazes, fantasias, toucas cor-de-rosa e palavras de ordem, o público criticou o comportamento machista e as declarações misóginas do novo presidente, além de exigir a manutenção do direito de escolha das mulheres e o respeito às minorias, como negros, imigrantes e muçulmanos, grupos amplamente ameaçados durante a campanha presidencial.

“Juntos, nossos sussurros vão se transformar em rugido no Capitólio. Eles estão aterrorizados lá dentro. Não estão acostumados com mulheres vindo do Alaska, ou dirigindo de Nevada até aqui, especialmente para protestar contra o governo. Finalmente as mulheres estão vocalizando suas demandas”, completou Brianne, que é chefe de cozinha em Nova York e nunca havia se envolvido com ativismo político.

No Twitter, Trump questionou a multidão que bloqueou o acesso ao Capitólio e mais de 15 vias na parte sudoeste de D.C. “Acabamos de ter uma eleição. Porque essas pessoas não votaram?”. Mas ele sabe a resposta. A candidata democrata Hillary Clinton recebeu quase três milhões de votos a mais, mas o sistema de colégio eleitoral, que concede pesos diferentes para o voto de cada Estado, beneficiou Trump.

Segundo pesquisas realizadas pela CNN e o The Washington Post, logo antes da posse, apenas 40% dos norte-americanos aprovavam a conduta do novo presidente contra 84% de Obama, 67% de Bill Clinton e 61% de George W. Bush à época de suas respectivas posses. Tampouco Hollywood o aprova: em Washington, Katy Perry, Ellen Page, Amy Schumer, Lena Dunham, Jessica Chastain e Ashley Judd foram algumas das artistas que se uniram às massas para protestar. Novamente, no Twitter, ele desabafou: “Celebridades prejudicam a causa”.

 

“Meu corpo, minhas regras”

 

Na Marcha, mulheres demonstravam preocupação com o iminente corte do orçamento para a centenária Planned Parenthood. A organização sem fins lucrativos oferece métodos contraceptivos, abortos e exames preventivos de câncer de mama e útero a baixo custo, além de programas de educação sexual. A instituição opera 650 clínicas em todo o país, atendendo 2,5 milhões de pessoas anualmente. Há 40 anos, os serviços foram estendidos a outros 12 países. Com o recente cancelamento do repasse internacional de fundos para parceiros pró-aborto, a ameaça ao programa em território americano começa a ganhar forma.

Erguendo o cartaz com os dizeres “Acesso à saúde é um direito humano”, a enfermeira Sarah Landvay, de 38 anos, explicou que o Planned Parenthood costuma ser o primeiro contato de mulheres de baixa renda e estudantes com a medicina preventiva, importante em um país onde não existe o conceito de Saúde Pública gratuita. “Eles focam na educação sexual para o planejamento familiar, subsidiam anticoncepcionais… Sem verba federal, as pessoas que mais precisam ficarão desassistidas”, disse. Segundo a organização, são realizados 579.000 abortos todos os anos, que representam apenas 3% do total dos serviços prestados.

Na administração Trump, o vice-presidente, Mike Pence, e o chefe do Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS), Tom Price, estão dentre os maiores defensores do corte do orçamento. Pence é conhecido por aprovar diversas restrições à prática do aborto durante seu mandato de governador no Estado de Indiana. Já Price é autor de um projeto de lei de 2005 que determina que a vida começa na concepção, e que, se tivesse sido aprovado, aboliria o aborto nos EUA.

Artistas de Hollywood apoiam o movimento “I Stand With Planned Parenthood” (Eu fico ao lado do Planned Parenthood) através de suas redes sociais e projetos pessoais. Recentemente, um grupo encabeçado pela criadora da série “Girls”, Lena Dunham, lançou um curta-metragem de animação sobre os 100 anos da organização, que nasceu a partir da luta pelos direitos reprodutivos das mulheres iniciada pela enfermeira Margareth Sanger, no início do século XX.

 

Feminismo dividido na Marcha das Mulheres

 

A Marcha das Mulheres nasceu de um evento no Facebook criado por uma aposentada do Havaí, cuja ideia era protestar na capital americana contra o resultado das eleições na companhia das netas e de mais 40 amigas. O evento foi batizado de “Million Women March” (Marcha de Um Milhão de Mulheres), mas o título já tinha sido utilizado em um outro protesto, em 1997, realizado por mulheres feministas negras, na cidade de Filadélfia.

A ativista dos direitos civis dos negros Brittany Oliver entrou em contato com a organização através do Facebook, exigindo a mudança do nome. Ele se transformou em “March on Washington” (Marcha em Washington). Só que esse movimento também já existia – foi o emblemático protesto liderado por Martin Luther King Jr, em 1963, onde ele fez o discurso “Eu tenho um sonho”.

Britanny publicou uma carta aberta acusando a organização do evento de “roubar” o nome de movimentos iniciados pelos negros, o que seria um desrespeito à uma luta que ainda estava em curso. Por esse motivo, declarou boicotar a Marcha. Negra e mobilizadora comunitária em Nova York, Michelle Thompson, 32 anos, compareceu. Ela disse entender o posicionamento de Brittany e conhecer negras que não foram às ruas no sábado pelo mesmo motivo. “A batalha das mulheres e dos homens negros por direitos é antiga nesse país, assim como é a omissão dos brancos nas nossas questões. Mas estar aqui hoje é mais importante. É a oportunidade de unir nossas forças, afinal, somos todas mulheres”, disse.

Butler diz agradecer pelo puxão de orelha de Brittany. “Por causa dela, o comitê da Marcha passou a ter mais representatividade de minorias, o que conferiu a identidade global do evento e permitiu essa repercussão mundial”.

 

Como Trump caiu nas desgraças das mulheres

 

O empresário do ramo imobiliário e ex-apresentador do reality show “The Apprentice” entrou na disputa presidencial com um vasto repertório de declarações racistas, misóginas e incendiárias. Um prato cheio para a campanha da democrata Hillary Clinton, que utilizou a história da Miss Universo de 1996, a venezuelana Alicia Machado, para questionar o caráter de Trump. Em um vídeo de dois minutos, exibido em rede nacional, Alicia relatou os maus-tratos sofridos durante seu contrato com as Organizações Trump, dona do Concurso Miss Universo. O ganho de peso e a origem latina de Alicia lhe renderam apelidos pejorativos e humilhação pública, com direito a treinamentos físicos realizados na presença de repórteres convocados por Trump.

Alicia também nunca foi paga pelos trabalhos de publicidade realizados durante o seu contrato, que lhe garantia uma comissão de 10%, e adquiriu transtornos alimentares.

A menos de um mês para o resultado das eleições, o jornal The Washington Post publicou o áudio de uma conversa entre Trump e o repórter Billy Bush, gravada durante o intervalo de uma entrevista concedida em 2005. Nele, o magnata se gaba de “pegar as mulheres pela vagina” e “beijar sem esperar por consentimento”. “Quando se é famoso, elas deixam, e você pode fazer o que quiser”, disse.

Após a publicação dos áudios, oito mulheres vieram a público relatar episódios de assédio sexual protagonizados pelo milionário. A repórter da revista People, Natasha Stoynoff, contou ter sido imprensada contra a parede e beijada à força durante a cobertura do aniversário de casamento de Trump e Melania, em 2005. A participante do “The Apprentice” Summer Zervos relatou ter passado pelo mesmo. Uma recepcionista da Trump Tower, empreendimento localizado em Nova York, contou que foi beijada à força no elevador após cumprimentar o milionário com um aperto de mão.

No último debate presidencial, ele desmentiu todos os relatos: “Ninguém respeita mais as mulheres do que eu”. Menos de duas horas depois, chamou Hillary de “nasty woman” (mulher nojenta).

Na disputa polarizada, a vitória de Hillary sobre o Trump parecia óbvia. Mas no dia 7 de novembro, contrariando a previsão das pesquisas de intenção de voto e da imprensa, Donald Trump foi eleito o 45º presidente dos Estados Unidos, devolvendo a Casa Branca ao conservador partido Republicano após oito anos de gestão Democrata de Barack Obama.

 

Isadora Varejão Marinho é jornalista formada pela PUC-Rio e vive em Nova York, onde estuda documentário. Já trabalhou nas rádios Tupi e Bandnews, no Canal Futura, foi assessora de imprensa do Ministério da Saúde, do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e assessora internacional da Prefeitura do Rio. Siga a Isadora no Facebook e Twitter.
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