Ainda que hoje sejamos quase desconhecidos, optei por escrever-te.

Fôramos, em circunstâncias passadas, sinônimos explícitos. Como se arrancadas fossem as páginas da minha existência, reverteu-se o primeiro milagre de Jesus: tu, a água; eu, o vinho. Imiscíveis… antagônicos. O infinito ciclo de abandono ao redor do qual se esculpe a vida feminina, talvez alguma alma melancólica clame. Dada tua ausência, afoguei-me em um poço de desesperança. Desesperança que fere com a piedade do Diabo. Desesperança de ser e (senão principalmente) de ser mulher.

Escrevo-te e, portanto, ponho-me de joelhos aos teus pés. Peço-te que perdoe as mágoas que acumulei desse mundo injusto e a permissão que dei para por ele ser pisoteada. Desculpe-me por incorporar à minha luta diária a questão da mulher tão tardiamente. Desculpe-me por só agora enxergar a tristeza que transcende da pele maltratada do corpo feminino. Não sou eu o vinho imiscível em ti: é a classe feminina como uma instituição una.

Se concederes esse perdão chorado, ouso pedir por algo mais.

Ouso como prova de que sou mulher e não me calo.

Meu pedido é este: teu retorno. Teu retorno a um corpo que nada fez senão merecer-te dia após dia, batalha após batalha. Um corpo que vive na eterna luta de achar-te enquanto foste-nos roubada. Essa súplica é a demanda da garantia de meros direitos.

 

Rafaela Marchioro, 17 anos. Poeta e futura estudante de Direito e Letras.

 

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