Quando estamos curiosos e queremos conhecer diferentes culturas, precisamos ir além dos clichês apresentados pela grande mídia e entender que o que nos apresentam, às vezes, é apenas um retrato de muitas histórias. No famoso TED “O Perigo de uma única história” a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie fala sobre a importância de buscar um outro ponto de vista sobre as histórias que nos são contadas.

“A história única cria estereótipos. E o problema com estereótipos não é que eles sejam mentira, mas que eles sejam incompletos. Eles fazem um história tornar-se a única história”disse Chimamanda.

Seguindo essa ideia, neste post te convidamos a buscar outras perspectivas sobre o continente africano através das lentes do cinema, bem além dos estereótipos de miséria e doença. Mas de um continente riquíssimo, colorido, criativo, alegre – e com suas dificuldades também, claro.

Nossa primeira sugestão é a comédia-drama-familiar nigeriana “Lionheart”; depois, seguimos com a também comedia sul-africana “Mais uma página” e fechamos com chave de ouro com o  incrível “Atlantique”, uma co-produção França-Senegal que teve boa parte do seu elenco estreante.

 

Lionheart (2018)

 

pôster do filme "Lionheart". Uma mulher negra ao centro e abaixo uma cidade.

 

Uma curiosidade, já pra começar: tanto “Lionheart” como “Atlantique” foram dirigidos por mulheres e tiveram alta pontuação no site americano “Rotten Tomatoes”, que faz avaliações de filmes e séries. O nigeriano alcançou pontuação máxima. Atlantique chegou quase lá, com pontuação de 96%.

O filme é um drama-comédia protagonizado e dirigido por Genevieve Nnaji – uma das maiores estrelas de Nollywood, a “Hollywood” nigeriana. No filme, quando seu pai, Ernest Obiagu (Pete Edochie), precisa se ausentar da empresa de transportes familiar por problemas de saúde, Adaeze Obiagu (Genevieve Nnaji) fica muito perto da oportunidade dos seus sonhos de assumir a liderança da companhoa. Porém, em uma sociedade patriarcal, assim como a brasileira e tantas outras, seu pai acaba chamando o irmão, Godswill Obiagu (Nkem Owoh), para o cargo e os dois têm como desafio salvar a empresa das dívidas.

Um dos objetivos de Genevieve com o filme foi justamente romper com os clichês, mostrar uma imagem mais realista da região. Como disse Noelia Farinã, do El País: “O filme não oferece somente o relato de uma mulher inteligente e capaz: também introduz uma imagem do continente africano honesta e próxima.”

É uma obra sobre uma mulher desafiando uma sociedade patriarcal, mas que também fala sobre laços familiares e tradições.

 

Mais uma página (2017)

 

Pôster do filme "Mais uma página", com uma mulher negra do lado esquerdo e um homem negro do lado direito e ao centro o título.

 

Na comédia romântica sul-africana, Max e Sam, um professor universitário e uma jornalista nos seus 30 e poucos anos, passam por uma crise quando um super escritor entra em suas vidas. Heiner Miller é um autor sul-africano branco conhecido por seu trabalho pós-colonial que está em Joanesburgo para uma palestra na universidade onde Max trabalha. Ao contrário de seus colegas, Max não é fã de Heiner. Ele faz críticas justamente ao que buscamos discutir aqui, sobre se ter um olhar que ele considera estereotipado e “viciado” do que é a África.

Até que os dois se encontram em uma mesa de bar, o papo flui e eles se tornam amigos. Nesse encontro, aliás, há diálogos sobre privilégios e diferentes formas de entender o apartheid no país.

Depois de uma noite de “exageros”, Heiner tem um problema de saúde, quando Max e Sam topam hospedá-lo. Se as coisas entre Max e Sam já estavam ficando estremecidas, quando Heiner se torna um hóspede, a crise entre o casal se intensifica. O novo amigo parece pôr em evidência problemas que os dois deixavam embaixo do tapete.

“Mais uma página” se passa em Joanesburgo, a maior cidade da África do Sul, e é dirigido, roteirizado e protagonizado por Kagiso Lediga. Seu personagem, Max, tem diversas cenas em que questiona seu lugar social, modo de vida, trabalho. Algumas das problematizações são sem fundamento, e a trama trabalha bem isso. O personagem expõe também certas contradições de Max, um cara engajado, intelectual, mas que esbarra em atitudes extremamente sexistas.

As duas produções anteriores abordam temas importantes, mas sem perder humor. Para a nossa próxima indicação, selecionamos um drama fantástico, em uma daquelas obras que o cinema mostra como fazer poesia com temas delicados. Vamos falar de Atlantique.

 

Atlantique (2019)

 

pôster do filme Atlantique, um casal negro se abraçando ao centro sob uma luz forte azul

 

O filme é bem diferente de tudo que já assistimos; trata de assuntos contemporâneos e já abordados pelo cinema mas de forma original e instigante. A produção retrata questões como migração, as desigualdades regionais, a exploração do trabalhador, as pressões familiares e sociais, o sexismo… E um caso de amor impossível. É um suspense que utiliza de artifícios fantásticos para falar de temas recorrentes no mundo moderno. Para isso, a diretora, Mati Diop, usa diversos recursos poéticos, sonoros e de fotografia.

No filme, o amor de Ada (Mame Bineta Sane) e Souleimane (Ibrahima Traoré) não pode ser vivido plenamente, já que a jovem está prometida para outro homem, um cara abastado, com estilo e aspirações bem diferentes das dela. E das de seu amado. Souleimane trabalha como operário em uma obra no subúrbio de Dakar, a capital do Senegal.

A obra onde ele trabalha começa a ter problemas, e os operários não são pagos mais uma vez. No dia em que recebe a notícia de que não será pago, Souleimane diz a Ada que precisa lhe contar uma coisa. A jovem desconversa e pede que ele conte mais tarde, em um bar onde eles e seus amigos costumam ir. O encontro, entretanto, não acontece. O jovem e seus colegas operários desaparecem no mar de forma misteriosa. Dias depois, seus espíritos voltam à cidade de maneiras sobrenaturais.

É preciso embarcar na proposta do filme para apreciar as metáforas que ele traz. Não é um retrato simples do que ocorre com pessoas que migram; com as mulheres que ficam à espera de notícias ou das injustiças que levam a busca por um novo destino. O filme ainda fala de um novo ponto de vista, não enxerga os jovens senegaleses como vítimas passivas desse sistema, mas protagonistas ativos de suas escolhas.

Ter produções africanas indo além das fronteiras e chegando ao grande público é um movimento relativamente recente. A Netflix, por exemplo, tem feito um trabalho importante ao disponibilizar produções fora do mainstream, e nós, como público, temos um papel fundamental de consumir esse conteúdo, debater e buscar além das populares listas de “mais vistos”, onde sempre podemos encontrar agradáveis surpresas.

Marina Correa e Ana Paula Blower são amigas que juntas escrevem no Instagram @hello.bordu. Marina “Nina” é fundadora da Bordu, carioca, e vive em Washington, DC (EUA) há três anos, foi para fazer mestrado em desenvolvimento sustentável e acabou ficando. Adora bater perna, andar de bicicleta, escutar podcasts, bordar, papear, papear e claro ler. Ana Paula, ou Paula, como prefere, é carioca, jornalista e mestranda em bens culturais com pesquisa voltada para religiões de matriz africana. Como boa jornalista e geminiana, é curiosa, se interessa pelo outro e adora bater papo, conversar sobre qualquer tipo de coisa.