A ausência de uma resposta coerente por parte do Governo Federal no combate à Covid-19 tem multiplicado a ansiedade das trabalhadoras e dos trabalhadores. Além de ter que lidar com a preocupação do contágio e com a saúde de pessoas próximas, estamos sofrendo a crueldade do neoliberalismo: o medo da perda do trabalho ou da redução drástica da renda familiar em um momento em que a vida de cada um e a coletividade sofrem ameaças reais.

Equilibrar a necessidade de isolamento social com a preservação dos trabalhos não tem sido tarefa fácil. Se o período demanda esforços coletivos, não podemos deixar de levar em consideração o abismo que é a desigualdade no Brasil – recaindo as piores condições sobre mulheres, mães de família, negros e negras. Acreditando que ter conhecimento dos direitos é o primeiro passo para que as trabalhadoras e os trabalhadores se fortaleçam, esquematizamos os principais pontos controversos quanto aos direitos trabalhistas que devem ser seguidos nesse momento, a partir das dúvidas enviadas pelas leitoras à Não Me Kahlo, e discutidas no Instagram de Rede Feminista de Juristas – deFEMde, no último dia 31.03.

Nessa primeira parte, abordamos as dúvidas geradas pela Medida Provisória 927 e 928, de 22 e 23 de março, com as principais previsões sobre teletrabalho (o famoso Home Office) e afastamento de trabalhadoras por motivo da Covid-19. Na segunda parte, que será publicada amanhã, iremos falar um pouco sobre as dúvidas referente à “renda básica” e às novas possibilidades de redução salarial, a partir das Medidas Provisórias assinadas hoje.

 

Teletrabalho (Home Office)

 

A Medida Provisória do Governo Bolsonaro prevê a implementação do sistema de home office para serviços não essenciais que possam ser realizados de forma remota, como principal forma de garantia de redução de circulação de pessoas para contenção da propagação da Covid-19.

Apesar da resistência de muitos empregadores em adotar a modalidade, frente ao decreto estadual que coloca a cidade de São Paulo em quarentena pelo menos até o dia 7 de abril, é fundamental que sejam criadas formas de migrar os trabalhos possíveis para a modalidade teletrabalho, principalmente pois, segundo a Constituição Federal, é responsabilidade do empregador garantir um ambiente de trabalho saudável e livre de contaminação, podendo ser responsabilizado em caso de adoecimento de suas empregadas[1].

A mudança na forma de prestar o trabalho, principalmente por se dar em razão de calamidade púbica, não pode ser sinônimo de precarização: a empresa não pode cortar o salário da trabalhadora em regime de teletrabalho. Também segundo a Constituição, não pode haver redução salarial por acordo individual entre a trabalhadora e o empregador – a única hipótese é mediante acordo realizado entre o sindicato da categoria e a empresa.

Quanto ao Vale Transporte, Vale Refeição e Vale Alimentação – os famosos VT, VR e VA, infelizmente, desde a Contrarreforma de 2017, não são mais entendidos como verbas salariais, mas apenas indenizatórias. Dessa forma, é possível que sejam cortados em caso de teletrabalho – a não ser que sejam previstos em Acordos Coletivos de Trabalho (ACT) ou Convenções Coletivas de Trabalho (CCT), pactuadas entre o sindicato e o empregador. Por isso, é importante sempre verificar as ACTs e CCTs de sua categoria, assim como fortalecer e participar de seu sindicato, como forma de garantir melhores condições de trabalho e manutenção de direitos básicos.

 

Afastamentos de pessoas pertencentes a grupos de risco ou com sintomas/doentes

 

Longe de regulamentar as condições de afastamento de trabalhadoras pertences aos grupos de risco ou de determinar as formas de contenção e contágio nos ambientes de trabalho, a MP de Bolsonaro se preocupou unicamente em desresponsabilizar o empregador com as medidas de saúde e segurança no trabalho, suspendendo, por exemplo, a realização de exames médicos periódicos ou demissionais. Contudo, mesmo sem disposição direita do governo, tem sido possível a garantia de afastamentos em algumas hipóteses:

Trabalhadoras(es) pertencentes ao grupo de risco: Os sindicatos de algumas categorias tem conseguido, via Ações Coletivas, liminares do Tribunal Regional do Trabalho – ou seja, decisões anteriores ao julgamento efetivo, mas com efeito imediato – para garantir o afastamento de trabalhadoras idosas, que tenham doenças crônicas associadas a maior mortalidade, ou convivam com pessoas do grupo de risco. Dessa forma, caso você ou algum familiar pertença ao grupo de risco, trabalhe em serviços mantidos durante a quarentena e não tenha conseguido dispensa, sugerimos que entre em contato com seu sindicato ou com alguma advogada.

Trabalhadoras(es) que manifestem sintomas e/ou tenham confirmação de Covid-19: Recebemos denúncias de que algumas empresas não estão liberando as trabalhadoras mesmo com atestado médico, o que não é apenas absolutamente desumano, como também ilegal. A Lei Federal 13.979/2020, que regulamenta em âmbito nacional medidas para enfretamento da emergência de saúde do coronavírus, determina a obrigatoriedade de quarentena para pessoas suspeitas de contaminação, como forma de evitar possível contaminação ou propagação do vírus, considerando falta justificada a ausência da trabalhadora em cumprimento de afastamento por contaminação ou suspeita de Covid-19.

Segundo o Ministério da Saúde, contudo, a quarentena só pode ser decretada oficialmente mediante atestado médico – dessa forma, se estiver apresentado sintomas e seu empregador não autorizar seu afastamento espontaneamente, será preciso recorrer à um serviço de saúde para que uma médica requeira seu isolamento.

Lembramos que o Decreto Estadual 64.881/2020, que impõe a quarentena no estado de São Paulo, prevê punições do Código Penal para aqueles que descumprirem as regras da quarentena, não podendo a trabalhadora deixar de cumprir a quarentena, assim como não tendo o empregador o poder de rejeitar atestado médico. Ainda, em qualquer um desses casos de afastamento, o empregador também não está legalmente autorizado a cortar o salário.

 

Em caso de fechamento do local de trabalho

 

No Estado de São Paulo, o decreto da quarentena determinou a suspensão das atividades de atendimento presencial ao publico em atividades de comércio e prestação de serviços, assomo como bares, restaurantes e padarias, e outros estados também tomaram medidas semelhantes. Nesses casos, o afastamento das trabalhadoras é obrigatório – mantidas as atividades possíveis via home office ou distante do atendimento ao público.

O descumprimento da medida pelo empregador, quer pela manutenção do comércio aberto, quer demandando a presença desnecessária das funcionárias, pode ser alvo de denúncia aos Sindicatos das categorias e ao Ministério Público do Trabalho (pelo site: https://mpt.mp.br/pgt/servicos/servico-denuncie) – em ambos os casos, a denúncia pode ser anônima.

 

Trabalho Doméstico

 

O Ministério Público do Trabalho – MPT lançou Nota Técnica (04/2020) recomendando o afastamento das trabalhadoras domésticas temporariamente do local de trabalho, sem prejuízo da remuneração, caso elas próprias ou alguém do domicílio empregador tenha suspeita ou confirmação de Covid-19, ou ainda em caso de necessidade de acompanhamento e tratamento de parente ou familiar das empregadas adoecidos.

Não podemos esquecer que a primeira vítima de Covid-19 registrada no Rio de Janeiro foi de uma empregada doméstica que foi obrigada a continuar prestando serviços na casa de seus patrões, moradores do Leblon, que tinham sido confirmados com a doença. Assim, o cumprimento dessas recomendações é fundamental para evitar o adoecimento e morte dessas trabalhadoras, relembrando que os empregadores podem ser responsabilizados.

O MPT Recomenda também flexibilidade de horário de jornada por conta de limitação dos serviços de transporte, creches e escolas, assim como fornecimento de EPIs – luvas, máscaras e álcool gel, em caso de manutenção do trabalho. Todas essas recomendações devem ser estendidas à terceirizadas do setor de limpeza, assim como diaristas.

 

Contaminação no local de trabalho

 

Em caso de informação de trabalhadora com suspeita para o vírus ou contaminada, o empregador deve notificar os órgãos sanitários, afastar funcionárias pertencentes ao grupo de risco, com a possibilidade de instalação de teletrabalho, promover a higienização dos postos de trabalho e seguir as demais recomendações da OMS.

Apesar de a MP 927 inventar disposição que demanda a prova de nexo causal em caso de contaminação no ambiente de trabalho, essa disposição é inconstitucional e tende a não ser recebida pelos julgadores. A contaminação de trabalhador por doença no ambiente de trabalho é entendida como acidente de trabalho, e não demanda prova de nexo causal para que o empregador seja responsabilizado, segundo o entendimento atual da legislação e dos tribunais nacionais.

 

[1] Utilizamos sempre o feminino quando tratamos das trabalhadoras, já que todas as dúvidas foram enviadas por mulheres, mas as previsões aqui discutidas valem para homens e mulheres.

 

Tainã Góis, advogada trabalhista, Co-fundadora da Rede Feminista de Juristas. Colaboradoras: Mariana Serrano, advogada trabalhista, co-fundadora da Rede Feminista de Juristas; Amarilis Costa, advogada, Administradora da Página Preta e Acadêmica. membra da Rede Feminista de Juristas