Tradução por Priscilla Pego.

Desde o surgimento do positivismo e do funcionalismo como linhas de pensamento dominantes dentre os cientistas sociais Ocidentais a partir de 1920, a busca pelas origens da relação desigual e hierárquica na sociedade em geral e da divisão assimétrica do trabalho entre homens e mulheres particularmente, tem sido um tabu. A negligência e sistemática supressão dessa questão faz parte de uma campanha contrária ao pensamento Marxista e sua teorização no mundo acadêmico, especialmente o mundo Anglo-saxônico (Martin and Voorhies, 1975: 155 ff). Apenas agora essa questão tem sido levantada novamente. Significativamente tal questão não foi levantada por acadêmicos, mas por mulheres ativamente envolvidas nos movimentos feministas. Independente das diferenças ideológicas entre os diferentes grupos feministas, eles se unificam enquanto se rebelam contra o sistema hierárquico imposto, o qual não mais é aceito como destino biológico, mas visto como algo a ser abolido. Sua busca pelos fundamentos sociais dessa assimetria é a consequência necessária dessa rebelião. Mulheres que estão comprometidas com a luta contra essa antiga opressão e exploração das mulheres não podem descansar enquanto a maioria dos estudiosos perpetua uma conclusão indiferente, de que as origens dessa relação não devem ser questionadas, pois pouco se sabe sobre elas. A busca pelas origens sociais das relações desiguais é parte de uma estratégia política pela emancipação das mulheres (Reiter, 1977). Sem entender os fundamentos e o funcionamento na relação assimétrica entre homens e mulheres não é possível superá-la.

Essa motivação política e estratégica diferencia fundamentalmente essa nova busca por tais origens de outras especulações acadêmicas e esforços de pesquisa. Sua meta não é meramente analisar ou encontrar uma interpretação diferente de um problema antigo, seu propósito é resolvê-lo.

A discussão a seguir deve, portanto, ser entendida como uma contribuição para ‘difundir a consciência da existência de uma hierarquia de gênero e de uma ação coletiva visando destruí-la’ (R. Reiter, 1977: 5).

 

Conceitos tendenciosos

 

Quando começamos a nos perguntar sobre a origem da relação opressiva entre os sexos, logo descobrimos que nenhuma das explicações apresentadas por cientistas sociais no ultimo século foram satisfatórias. Pois em todas as explicações, sejam do ponto de vista evolucionista, positivista-funcionalista ou até mesmo Marxista, o problema que necessita explicação é, em última análise visto como biológico e, portanto, está além do alcance da mudança social. Sendo assim, antes de discutir as origens da divisão assimétrica do trabalho entre os sexos, é importante identificar o viés biológico em alguns conceitos comumente usados em nossos debates.

O disfarce ou manifesto do determinismo biológico, parafraseado na declaração de Freud de que anatomia é destino, é talvez o obstáculo mais profundamente enraizado para a análise das causas da opressão e exploração das mulheres. Apesar de as mulheres que lutam pela emancipação rejeitarem o determinismo biológico, elas tem dificuldades em estabelecer que a relação hierárquica,  desigual e opressora entre homens e mulheres seja causada por fatores sociais, ou seja, históricos. Um dos maiores problemas é o fato de que não apenas a análise em si, mas as ferramentas para análise os conceitos básicos e definições são afetados – ou melhor, infectados – pelo determinismo biológico.

Isso é amplamente verdadeiro para conceitos básicos, que são centrais para nossa análise, como os conceitos de natureza, do trabalho, da divisão sexual do trabalho,  da família e da produtividade. Se esses conceitos forem usados sem uma crítica de seus preceitos ideológicos implícitos, eles tendem a obscurecer em vez de esclarecer o problema. Isso é, sobretudo verdadeiro para o conceito de natureza.

Frequentemente esse conceito tem sido usado para explicar desigualdades sociais ou relações de exploração como inatas e, assim, além do alcance de mudanças sociais. Mulheres deveriam desconfiar especialmente quando esse termo é utilizado para explicar o seu status na sociedade. Sua parcela na produção e reprodução da vida são usualmente definidas como sua função biológica ou ‘natureza’. Assim, o trabalho da mulher de cuidar da casa e dos filhos é vistos como uma extensão de sua fisiologia, do fato de que elas dão à luz a crianças, do fato de que a ‘natureza’ deu a elas um útero. Todo o trabalho de produzir uma vida, incluindo o parto não é visto como uma interação humana consciente com a natureza, ou seja, uma atividade verdadeiramente humana, mas sim como uma atividade da natureza, que produz plantas e animais inconscientemente não tendo controle sobre o processo. Tal definição da interação da mulher com a natureza – incluindo sua própria natureza – como um ato da natureza teve e continua tendo consequências de longo alcance.

O que é mistificado pelo conceito biologicamente infectado de natureza é a relação de dominância e exploração, dominância do ser humano (homem) sobre a natureza (mulher). A relação de dominância também está implícita em outros conceitos mencionados a cima quando relacionados à mulheres. Por exemplo, o conceito de trabalho! [em inglês, labour  que se refere a trabalho, enquanto atividade, bem como trabalho de parto]. Devido à definição biológica da relação entre mulheres e sua natureza, suas atividades seja ao parir ou ao cuidar dos filhos bem como as atividades domésticas não se caracterizam como um trabalho. O conceito de trabalho [atividade, emprego] é reservado ao trabalho produtivo dos homens dentro do sistema capitalista, o que significa trabalhar para a produção de mais-valia.

Embora mulheres também façam parte dessa mão de obra geradora de mais-valia, dentro do sistema capitalista o conceito de trabalho é usado com um viés masculino ou patriarcal, porque dentro do sistema capitalista, mulheres são tipicamente definidas como donas de casa, o que significa não-trabalhadoras.

Os instrumentos desse trabalho ou os meios corporais de produção implicitamente referidos nesse conceito são as mãos e a cabeça, mas nunca o útero ou os seios de uma mulher. Assim não apenas homens e mulheres são definidos de forma diferente em sua interação com a natureza, mas o corpo humano em si é dividido em partes realmente ‘humanas’ (mãos e cabeça) e partes ‘naturais’ ou puramente ‘animais’ (genitália, útero, etc).

Essa divisão não pode ser atribuída a um sexismo universal do homem como tal, mas como consequência do modelo capitalista de produção que apenas se interessa nas partes do corpo humano diretamente utilizadas para o trabalho ou que podem se tornar uma extensão da máquina.

A mesma assimetria oculta e viés biológico, o qual podemos observar no conceito de trabalho, também prevalecem nos conceitos de divisão sexual do trabalho. Embora esse conceito pareça sugerir que homens e mulheres simplesmente dividam tarefas diferentes entre si, ele encobre o fato de que tarefas masculinas são consideradas como verdadeiramente atividades humanas (ou seja, conscientes, racionais, planejadas, produtivas, etc), enquanto as tarefas femininas são novamente vistas como basicamente determinadas por sua ‘natureza’. A divisão sexual do trabalho, por sua definição, pode ser entendida como ‘trabalho humano’ e ‘atividade natural’. Além do mais, esse conceito também omite o fato de que a relação entre o trabalhador masculino (‘humano’) e o feminino (‘natural’) é de dominância e até mesmo de exploração. O termo exploração é utilizado aqui no sentido de que aconteceu uma separação e hierarquização mais ou menos permanente entre produtores e consumidores e que estes últimos podem se apropriar de produtos e serviços do primeiro sem que eles mesmos produzam. A situação original em uma comunidade igualitária, ou seja, uma comunidade onde quem produz algo – num sentido intergeracional – é também o consumidor, foi rompida. Relações sociais de exploração existem quando não-produtores podem se apropriar e consumir (ou investir) produtos e serviços de produtores reais (A. Sohn-Rethel, 1978; Rosa Luxemburgo, 1925). Este conceito de exploração pode ser utilizado para caracterizar a relação homem-mulher através de grandes períodos da história, incluído o nosso próprio.

Ainda, quando tentamos analisar as origens sociais da divisão sexual do trabalho, devemos deixar claro que nos referimos a essa relação assimétrica, hierárquica e de exploração, e não a uma simples divisão de tarefas entre  parceiros iguais.

A mesma lógica biológica ofuscante prevalece em relação ao conceito de família. Este conceito não apenas é utilizado e universalizado de uma maneira Eurocêntrica e não-histórica, apresentando o núcleo familiar como a estrutura básica e atemporal de toda institucionalização da relação homem-mulher, como também omite o fato de que a estrutura desta instituição é hierárquica e desigual.

Afirmações como ‘parceria ou democracia em família’ servem apenas para velar a verdadeira natureza da instituição familiar. Conceitos como família ‘biológica’ ou ‘natural’ estão relacionados ao particular conceito a-histórico de família, baseado na combinação compulsória de relação heterossexual e a procriação de uma prole consanguínea.

Essa breve discussão dos vieses biológicos inerentes em alguns importantes conceitos deixa clara a necessidade sistemática de exposição da função ideológica desses vieses que é obscurecer e mistificar relações sociais assimétricas e de exploração, particularmente aquelas entre homens e mulheres.

Em relação ao problema aqui apresentado, isto é a analise das origens sociais da divisão sexual do trabalho, significa que não estamos perguntando: quando a divisão do trabalho entre homens e mulheres surgiu? Nossa questão é: por quais razões a divisão do trabalho passou a ser uma relação de dominância e exploração, assimétrica e hierárquica? Essa questão ainda aparece em todas as discussões sobre a emancipação das mulheres.

 

Abordagem sugerida

 

O que podemos fazer para eliminar os vieses dos conceitos citados? Não utilizar tais conceitos, como algumas mulheres sugerem? Mas então ficaríamos sem uma linguagem específica para expressar nossas ideias. Inventar novos conceitos? Mas conceitos sintetizam praticas históricas e teorias e não podem ser voluntariamente inventados. Devemos aceitar que os conceitos básicos utilizados em nossa análise foram ‘ocupados’ – como territórios ou colônias – pela ideologia sexista dominante. Apesar de não podermos abandoná-los, podemos olhá-los ‘de baixo’, não do ponto de vista da ideologia dominante, mas do ponto de vista das experiências históricas das oprimidas, exploradas e subordinadas e sua luta pela emancipação.

Faz-se assim necessário, em relação ao conceito de produtividade do trabalho, rejeitar sua definição limitada e demonstrar que o trabalho só pode ser produtivo, no sentido de produção de excedente, desde que possa aproveitar extrair, explorar e apropriar o trabalho que é gasto na produção de vida ou produção de subsistência (Miles, 1980(b)), que é em grande parte trabalho não remunerado e realizado principalmente por mulheres. Como essa produção de subsistência é historicamente precondição perene de todas as outras formas de trabalho, incluindo-se o trabalho nas condições de acumulação do capital, ela deve ser definida como trabalho e não como uma atividade ‘natural’ inconsciente.

No que se segue, chamarei a atividade de produção subsistência de trabalho produtivo, no sentido amplo de produção de bens de uso para a satisfação das necessidades humanas. A separação e a superimposição do trabalho que produz excedente sobre o trabalho de subsistência é uma abstração que leva ao fato de que mulheres e seu trabalho são ‘definidos por natureza’.

Na discussão do processo de trabalho em O Capital, Vol. 1, Marx primeiramente utiliza a definição ampla de ‘trabalho produtivo’ na qual pela transformação de matéria prima é produzido um bem material para uso humano, ou seja, para a satisfação das necessidades humanas (O Capital, Vol. 1, 1974). Mas em uma nota de rodapé ele alerta para o fato de que esta definição, correta para o simples processo laboral, não é adequado para o processo produtivo capitalista, no qual o trabalho produtivo é reduzido a significar apenas a produção de excedente: ‘Apenas esse trabalhador é produtivo aquele que produz excedente para a realização do capital’ (O Capital, Vol. 1, 1974). Marx usa aqui o conceito restrito de trabalho produtivo, desenvolvido pro Adam Smith e outros economistas políticos (ver Grundrisse, p.212). Ele ainda critica o conceito no sentido em que afirma que ‘ser um trabalhador produtivo dentro do sistema capitalista não é boa sorte é má sorte’ (p.532), pois o trabalhador se torna um instrumento direto de avaliação do capital. Mas focando-se apenas no conceito capitalista de trabalho produtivo e universalizando-o no eclipse virtual do conceito mais geral e fundamental de trabalho produtivo – que inclui também o trabalho de subsistência das mulheres – Marx contribuiu teoricamente para a remoção de todo trabalho ‘não produtivo’ (ou seja, não remunerado, incluindo a maioria do trabalho de mulheres) da visibilidade pública. O conceito de ‘trabalho produtivo’ utilizado tanto pela burguesia quanto por teóricos Marxistas mantém a conotação capitalista e a nota de ressalva deixada por Marx há muito foi esquecida. Considero o limitado conceito capitalista de trabalho produtivo o obstáculo mais formidável para nossa luta para entender o trabalho das mulheres tanto no capitalismo quanto no socialismo existente.

É minha tese que essa produção de vida, ou produção de subsistência – realizada principalmente por meio de trabalho não remunerado de mulheres e outros trabalhadores não remunerados como escravos, trabalhadores contratados e camponeses nas colônias – constitui a base perene sob a qual o ‘trabalho produtivo capitalista’ pode ser construído e explorado. Sem a contínua produção de subsistência de trabalhadores não remunerados (principalmente mulheres) o trabalho remunerado não seria ‘produtivo’. Em oposição a Marx, considero que o processo produtivo capitalista abrange ambos: tanto a superexploração de trabalhadores não remunerados (mulheres, colônias, camponeses) quanto a então possível exploração de trabalhadores remunerados. Eu diferencio a exploração daqueles como superexploração, pois esta não é baseada na apropriação (pelo capitalismo) do tempo e do trabalho, além do ‘necessário’, do trabalho excedente, mas do tempo e do trabalho necessários para a própria sobrevivência ou subsistência dessas pessoas. Não é compensada com um salário, calculado sobre os custos de reprodução necessários do trabalhador, mas é determinada principalmente pela força ou instituições coercitivas. Essa é a principal razão para crescente pobreza e fome dos produtores do Terceiro Mundo. No caso deles, o princípio da troca de equivalentes subjacente à negociação salarial de trabalhadores no ocidente não se aplica.

A busca pelas origens da divisão sexual hierárquica do trabalho não deve estar limitada a busca do momento na história ou na pré-história em que ‘ocorreu a derrota, mundialmente histórica, do sexo feminino (Engels)’. Embora estudos sobre primatologia, arqueologia e pré-históricos sejam úteis e necessários para nossa busca, não devemos esperar que neles estejam a resposta para esta questão a não ser que sejamos capazes de desenvolver conceitos materiais, históricos e não-biológicos de homens e mulheres e de suas relações com a natureza e história. Como colocado por Roswitha Leukert: ‘ O inicio da história humana não é primordialmente um problema de fixação de uma determinada data, mas sim de encontrar um conceito materialista de homem [ser humano, M.M] e história’ (Leukert, 1976: 18, traduzido M.M).

Se utilizarmos esta abordagem, intimamente relacionada a motivações estratégicas mencionadas anteriormente, veremos que o desenvolvimento de uma relação vertical e desigual entre homens e mulheres não é uma questão do passado apenas.

Podemos aprender muito sobre a formação de uma hierarquia sexual se olharmos para a ‘história em construção’, ou seja, se estudarmos o que acontece com as mulheres sob o impacto do capitalismo tanto nos centros quanto nas periferias, onde camponeses pobres e sociedades tribais estão sendo ‘integrados’ na chamada nova divisão do trabalho nacional e internacional dentro das regras de acumulação de capital. Tanto nas metrópoles capitalistas quanto nas periferias, uma política sexista distinta foi e ainda é utilizada para subordinar sociedades e classes inteiras sob as relações de produção capitalistas.

Esta estratégia geralmente aparece disfarçada de leis de família progressistas ou liberais (por exemplo, a proibição da poligamia), de políticas de planejamento e desenvolvimento familiar. A demanda pela ‘integração das mulheres no desenvolvimento’, expressa primeiramente na Conferência Internacional de Mulheres no México em (1975), é amplamente utilizada em países do Terceiro Mundo para recrutar mulheres como a mão de obra mais barata, dócil e manipulável para processos de produção capitalistas, tanto no agronegócio e na indústria quanto no setor não organizado (Fröbel, Kreye, Heinrichs, 1977; Mies, 1982; Grossman, 1979; Elson/Pearson, 1980; Safa, 1980).

Isto também significa que não devemos mais olhar para a divisão sexual do trabalho como uma questão relacionada apenas a família, mas como um problema estrutural de toda a sociedade. A divisão hierárquica do trabalho entre homens e mulheres e sua dinâmica se formam e são partes integrais da relação de produção dominante, isto é, das relações de classe de uma época e sociedade particulares e das divisões nacionais e internacionais mais amplas de trabalho.

 

Apropriação da Natureza por Mulheres e por Homens

 

A busca por conceitos materialistas de homem/mulher e história, no entanto, significa a busca pela natureza humana de homens e de mulheres. Mas a natureza humana não é um dado fato. Ela evoluiu na história e não pode ser reduzida aos seus aspectos biológicos, mas a dimensão fisiológica dessa natureza está sempre ligada a sua dimensão social. Assim, a natureza humana não pode ser compreendida separando-se sua fisiologia de sua história. A natureza dos homens e das mulheres não evolui da biologia de forma linear, monocausal, mas é resultado da história das interações dos homens e mulheres com sua natureza e entre si. Seres humanos não apenas sobrevivem, animais sobrevivem. Seres humanos produzem suas vidas. Essa produção acontece em um processo histórico.

Diferentemente da evolução no mundo animal (história natural), a história humana é uma história social desde o princípio. Toda a história humana é caracterizada, de acordo com Marx e Engels, por ‘três momentos’ que existiram desde o inicio da humanidade e existem ainda hoje: 1. As pessoas devem viver para serem capazes de fazer história, elas devem produzir os meios para satisfazerem suas necessidades: comida, roupas, abrigo, etc; 2. A satisfação de necessidades gera novas necessidades. Eles desenvolvem novos instrumentos para satisfazer suas necessidades; 3. Homens que produzem sua vida diária devem fazer outros homens, ou seja, devem procriar – ‘a relação entre homens e mulheres, pais e filhos, a família’ (Marx/Engels, 1977: 31).

Mais tarde Marx utiliza o termo ‘apropriação da matéria prima’ para caracterizar trabalho em seu sentido mais amplo: trabalho como apropriação da natureza para satisfazer as necessidades humanas:

O trabalho é em primeiro lugar, um processo no qual ambos os homens e a natureza participam, e no qual o homem por conta própria inicia, regula e controla as relações materiais entre ele próprio e a natureza. Ele se opõe à natureza como uma de suas forças, colocando em movimento braços, pernas, cabeça e mãos, as forças naturais do seu corpo, para apropriar-se das produções da Natureza de uma forma adaptadas aos seus desejos. Assim, agindo no mundo externo e modificando-o, ele ao mesmo tempo muda sua própria natureza. (Marx, O Capital, vol. I: 173).

Devemos enfatizar que tal ‘apropriação da natureza’ é característica de toda a história humana, incluindo o mais antigo estágio primitivo.

Engels, fortemente influenciado pelo pensamento evolucionista, separa esse estágio primitivo como pré-história, de uma efetiva história humana, a qual de acordo com ele só começa com as civilizações. Isso significa que a história começa com relações de classe e patriarcais de pleno direito. Engels não é capaz de responder à questão de como a humanidade então pulou da pré-história para a história social; além disso ele não aplica o método dialético do materialismo histórico ao estudo destas sociedades primitivas que ‘ainda não adentraram na história’. Ele acredita que as leis evolutivas prevaleceram até o surgimento da propriedade privada, da família e do estado.

Nas duas primeiras sentenças de ‘A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado’, de 1984 ele enfatiza:

De acordo com a concepção materialista, o fator determinante na história é, em ultima instância, a produção e a reprodução da vida imediata. Mas isto apresenta dois lados. De um lado, a produção de meios de subsistência, de comida, roupas e abrigo e das ferramentas necessárias; de outro, a produção de seres humanos, a propagação da espécie. As instituições sociais sob as quais homens de uma determinada época e um determinado país vivem são condicionadas pelos ‘dois tipos de produção’ (ênfase minha): pelo estágio de desenvolvimento do trabalho, de um lado, e da família, do outro. (Marx, Engels, 1976: 191).

Enquanto, Anke Wolf-Graaf observa, feministas materialistas concordariam que a análise materialista deve lidar com os dois tipos de produção. Engels deixa de lado a concepção materialista imediatamente ao lidar com a ‘produção de seres humanos’ (cf. Wolf-Graaf, 1981: 114-121), o que, de acordo com ele, é determinado pelo ‘desenvolvimento da família’, enquanto a produção dos meios de subsistência é determinada pelo desenvolvimento do trabalho. Esta distinção não é acidental pois ao longo de todo o livro Engels segue essa linha de pensamento. Enquanto ele descreve o desenvolvimento de genes, tribo, família, Engels não aplica uma análise econômica, mas evolutiva, o que, por exemplo, explica a introdução do tabu do incesto e da monogamia pelo desejo ‘natural’ das mulheres por relações monogâmicas. Apenas ao tratar de propriedade privada e da família monogâmica patriarcal é que Engels apresenta explicações materialistas históricas: ‘com a família patriarcal adentramos a história escrita’ (Marx, Engels, 1976: 234). A família monogâmica patriarcal ‘foi o primeiro formato de família não baseada em condições naturais, mas econômicas, isto é, na vitória da propriedade privada sobre a original desenvolvida naturalmente propriedade comum’ (Marx, Engels, 1976: 239).

A distinção entre processos ‘naturais’ (ou seja, a-históricos) relacionados à ‘produção de seres humanos ou procriação’ e processos históricos relacionados ao desenvolvimento dos meios de produção e trabalho é essencialmente responsável pelo fato de dentro da teoria Marxista uma concepção materialista histórica da mulher e seu trabalho não ser possível. Este conceito idealista (naturalista, biológico) do trabalho da mulher na produção de seres humanos como ‘natural’ já é claramente enunciado no início da análise de Marx e Engels em ‘A ideologia alemã’. Apesar de Marx e Engels estarem ávido para estabelecer a historicidade e a base material dos ‘três momentos’ que constituem a vida humana, eles rapidamente excluem o ‘terceiro momento’, isto é, a produção de novas pessoas da esfera histórica. Eles ainda iniciam a discussão do ‘terceiro momento como se segue:

A terceira circunstância que, desde o inicio, entra no desenvolvimento histórico é que homens, que diariamente refazem a própria vida, começam a fazer  outros homens, para propagar sua espécie: a relação entre homem e mulher, pais e filhos, a família (ênfase original). A família, que a princípio é a única relação social, depois transforma-se, quando necessidades aumentadas criam novas relações sociais e o aumento populacional gera novas necessidades, uma subordinada… (Marx, Engels, 1977: 31).

Isto significa que a relação homem-mulher não é mais considerada a força condutora da história, mas a ‘indústria’. Eles continuam:

A produção de vida, tanto a sua própria no trabalho quanto a de novas vidas na procriação, agora aparecem como uma relação dupla: de um lado, a natural, e, do outro, a social. Por social entendemos a cooperação de vários indivíduos, não importa em que condições, de que maneira e com qual finalidade (Marx, Engels, 1977: 31).

Uma feminista esperaria agora que na sequencia da análise Marx e Engels continuariam a incluir a relação entre homens e mulheres na produção de novas vidas na categoria de ‘relação social’. Mas esse aspecto é prontamente esquecido quando eles continuam:

A partir disto certo modo de produção, ou estágio industrial é sempre combinado com certo modo de cooperação, ou estágio social, e este modo de cooperação é por si só a ‘força produtiva’. Além disso, a multidão de forças produtivas acessíveis  aos homens determinam a natureza da sociedade, que a ‘história da humanidade’ deve sempre ser estudada e tratada em relação à história da indústria e do troca (Marx, Engels, 1977: 31).

Que eles compreendem a ‘produção de uma nova vida’ como um fato ‘natural’ e não histórico torna-se ainda mais claro quando falam sobre o desenvolvimento da divisão do trabalho. Tal divisão do trabalho ‘que a princípio nada mais era que a divisão do trabalho no ato sexual’ (p. 33), ou ‘a natural divisão do trabalho na família’ (p. 34) apenas torna-se uma divisão real do trabalho ‘a partir do momento em que a divisão do material e do mental surge’. Antes deste estágio todas as atividades são meramente atividades animais ou ‘como uma consciência de rebanho ou tribal’. O que leva dessa existência ‘tipo rebanho’ (na qual as mulheres ainda se encontram hoje, de acordo com este conceito), a existência verdadeiramente humana, histórica e social é o aumento da produtividade do trabalho (dos homens) (p. 33), o aumento das necessidades e o crescimento populacional (p. 33). A cooperação do homem e da mulher no ato sexual e o trabalho de mulheres na criação e amamentação das crianças obviamente não pertencem ao reino das ‘forças produtivas, do ‘trabalho’, ‘indústria e troca’, mas à ‘natureza’ (Marx, Engels, 1977: 33, 34). Ao separar a produção de novas vidas da produção de necessidades diárias através do trabalho, ao elevar este ultimo ao reino da história e da humanidade e chamar o primeiro de ‘natural’ e o segundo de ‘social’ eles involuntariamente contribuíram para o determinismo biológico que ainda sofremos hoje. Em relação as mulheres e seu trabalho eles continuam tão idealistas quanto os ideólogos alemães que eles tanto criticaram.

Se quisermos encontrar um conceito materialista e histórico de mulheres e homens e suas histórias, devemos primeiramente analisar suas respectivas interações com a natureza e como, neste processo, eles constroem sua própria natureza humana e social. Se seguíssemos Engels, deveríamos relegar a interação de mulheres com a natureza na esfera evolutiva. (Isto tem de fato sido feito por funcionalistas e behavioristas por todo o mundo). Concluiríamos que as mulheres ainda não adentraram a história (como definida por Engels) e ainda pertencem basicamente ao mundo animal.

 

A apropriação por homens/mulheres de seus próprios corpos

 

O processo de trabalho em sua forma elementar é, de acordo com Marx, uma ação consciente com a visão para produzir valores de uso. Em um sentido amplo é a ‘apropriação de substâncias naturais para requisitos humanos’. Esta ‘troca de matérias’ (Stoffwechsel) ‘entre seres humanos e natureza’ é a condição eterna imposta pela natureza para a existência humana, ou ao menos comum a toda fase histórica (O Capital, Vol. I, 1979). Nesta ‘troca de matérias’ entre seres humanos e natureza, seres humanos, homens e mulheres, não apenas desenvolvem e mudam a natureza externa na qual se encontram confrontados, mas também sua própria natureza corporal.

A interação entre seres humanos e a natureza para produção de suas necessidades humanas requer, como toda produção, um instrumento ou meio de produção. Estes meios de produção com os quais seres humanos agem sobre a natureza são seus próprios corpos. Sendo também uma precondição eterna para todos os outros meios de produção. Mas o corpo não é apenas uma ferramenta com a qual seres humanos agem sobre a natureza, o corpo também é o objetivo da satisfação de necessidades. Seres humanos não apenas usam seu corpo para produzir valores de uso, mas também para manterem seu corpo vivo – no sentido mais amplo – através do consumo de seus produtos.

Nesta analise do processo de trabalho em seu sentido amplo como apropriação de substâncias naturais, Marx não diferencia homens e mulheres. Para nosso assunto, no entanto, é importante salientar que homens e mulheres atuam na natureza com corpos qualitativamente diferentes. Se desejamos alcançar clareza com relação a assimetria na divisão de trabalho entre gêneros, é necessário não falar sobre a apropriação da natureza pelo homem (o abstrato e genérico ser). Esta posição é baseada no pressuposto de que existe diferença no modo como homens e mulheres se apropriam da natureza. Esta diferença geralmente é confundida porque ‘humanidade’ é identificada com a ‘masculinidade’.

Masculinidade e feminilidade não são atributos biológicos, mas resultado de um longo processo histórico. Em cada momento histórico, a masculinidade e a feminilidade são definidos de maneiras diferentes. Estas definições dependem do principal modo de produção em cada época. Isto significa que as diferenças orgânicas entre homens e mulheres são diferentemente interpretadas e avaliadas, de acordo com a forma de apropriação de matéria natural para a satisfação das necessidades humanas dominante. Portanto, através da história, homens e mulheres desenvolveram relações qualitativamente diferentes com seus corpos. Assim, em sociedades matrísticas [matristic societies] a feminilidade era interpretada como o paradigma social de toda produtividade, como o principio ativo basilar na produção de vida. Todas as mulheres eram definidas como ‘mães’. Mas ‘mães’ significava algo totalmente diferente do que significa hoje. Sob condições capitalistas todas as mulheres são definidas como donas de casa (todos os homens como sustentadores de família), e a maternidade se tornou parte e parcela desta síndrome de dona de casa. A diferença entre a antiga definição matrística de feminilidade e a moderna é que esta foi esvaziada de todas as qualidades ativas, criativas (subjetiva), produtivas (ou seja, humana).

As diferenças qualitativas históricas na apropriação da natureza corporal masculina e feminina levaram também a ‘duas formas qualitativamente distintas de apropriação da natureza externa’, ou seja, formas qualitativamente distintas de relações com os objetos de apropriação, os objetos de atividade corporal sensível (Leukert, 1976: 41).

 

Relação de objeto de Mulheres e Homens com a natureza

 

Primeiro, devemos enfatizar a diferença entre relação de objeto animal e humana. A relação de objeto humana é a práxis, isto é, ação + reflexão; Ela se torna visível apenas no processo histórico, e implica interação ou cooperação social. O corpo humano não foi apenas o primeiro meio de produção, foi também a primeira força de produção. Isso significa que o corpo humano é experiente em poder produzir algo novo e, portanto, mudar a natureza externa e a humana. A relação de objeto humana com a natureza é, em contraste com a dos animais, produtiva. Na apropriação do corpo como força produtiva, a diferença entre a mulher e o homem teve grandes consequências.

O que caracteriza a relação de objeto das mulheres com a natureza, tanto para a sua própria como para a natureza externa? Primeiro, vemos que as mulheres podem experimentar todo o seu corpo como produtivo, não apenas suas mãos ou suas cabeças. Fora de seu corpo elas produzem novas crianças, bem como o primeiro alimento para essas crianças. É de importância crucial para nosso assunto que a atividade das mulheres na produção de crianças e leite seja entendida como uma atividade verdadeiramente humana, ou seja, consciente e social. As mulheres se apropriaram de sua natureza, sua capacidade de parto e de produzir leite da mesma maneira que os homens se apropriaram de sua própria natureza corporal, no sentido de que suas mãos, cabeça, etc., adquiriram habilidades através do trabalho e reflexão para criar e manusear ferramentas. Nesse sentido, a atividade das mulheres em gerar e criar crianças deve ser entendida como trabalho. É um dos maiores obstáculos para a libertação das mulheres, isto é, a humanização, que essas atividades ainda são interpretadas como funções puramente fisiológicas, comparáveis as de outros mamíferos, e ficando fora da esfera de influência humana consciente. Essa visão de que a produtividade do corpo feminino é idêntica à fertilidade animal – uma visão que atualmente é propagada e popularizada pelo mundo por demógrafos e planejadores de população – deve ser entendida como resultado da divisão de trabalho patriarcal e capitalista e não como sua pré-condição.

Ao longo de sua história, as mulheres observaram as mudanças em seus próprios corpos e adquiriram através da observação e experimentação um vasto conhecimento empírico sobre as funções de seus corpos, sobre os ritmos da menstruação, sobre gravidez e parto. Essa apropriação se sua própria natureza corporal esteve intimamente relacionada com a aquisição de conhecimento sobre as forças geradoras da natureza externa, sobre plantas, animais, terra, água e ar.

Assim, elas não simplesmente geravam crianças como vacas, mas se apropriaram de suas próprias forças geradoras e produtivas, analisaram e refletiram sobre suas experiências próprias e anteriores e passaram-nas para suas filhas. Isso significa que elas não eram vítimas indefesas das forças geradoras de seus corpos, mas aprenderam a influenciá-los, incluindo o número de crianças que queriam ter.

Hoje em dia possuímos evidências suficientes para concluir que as mulheres nas sociedades pré-patriarcais sabiam melhor como regular o número de seus filhos e a frequência de nascimentos do que as mulheres modernas, que perderam esse conhecimento através da sua submissão ao processo civilizador patriarcal capitalista (Elias, 1978).

Entre os coletores e os caçadores e outros grupos primitivos, existiam vários métodos – e ainda existem ainda hoje – para limitar o número de nascimentos e de crianças. Afora o infanticídio, provavelmente o método mais antigo (Fisher, 1979: 202), as mulheres em muitas sociedades usavam várias plantas e ervas como contraceptivos ou para induzir abortos. As índias Ute usavam o litho-spermium, as mulheres Bororo no Brasil usavam uma planta que as tornava temporariamente estéreis. Os missionários persuadiram as mulheres a não usar mais a planta (Fisher, 1979: 204). Elisabeth Fisher nos conta sobre os métodos utilizados pelas mulheres entre os aborígenes australianos, certas tribos na Oceania e até mesmo no Egito, que eram predecessores dos anticoncepcionais modernos. As mulheres no Egito usavam uma esponja vaginal, mergulhada em mel, para reduzir a mobilidade dos espermatozoides. Havia também o uso de pontas de acácia que continham um ácido espermicida (Fisher, 1979: 205).

Outro método de controle de natalidade utilizado amplamente entre coletores e caçadores contemporâneos é um período prolongado de amamentação. Robert M. May relata estudos que demonstram que ‘em quase todas as sociedades primitivas de coletores e caçadores, a fertilidade é menor do que nas sociedades civilizadas modernas. Através da lactação prolongada, a ovulação é reduzida, o que leva a intervalos mais longos entre os nascimentos’. Ele também observou que essas mulheres atingiam a puberdade em uma idade muito posterior do que as mulheres civilizadas. Ele atribui o crescimento da população muito mais equilibrado, que pode ser observado hoje entre muitas tribos, desde que não sejam integradas na sociedade civilizada, às ‘práticas culturais que inconscientemente contribuem para a redução da fertilidade’ (May, 1978: 491). Embora critique corretamente aqueles que pensam que a baixa taxa de crescimento da população em tais sociedades seja resultado de uma luta brutal pela sobrevivência, ele ainda não concebe essa situação como resultante da apropriação consciente das mulheres de suas forças geradoras. Pesquisas feministas recentes revelaram que, antes da caça às bruxas, as mulheres na Europa tinham um conhecimento muito maior de seus corpos e contraceptivos do que hoje (Ehrenreich & English, 1973, 1979).

A produção feminina de nova vida, de novas mulheres e homens, está inseparavelmente ligada à produção dos meios de subsistência para esta nova vida. As mães que dão à luz crianças e as amamentam necessariamente devem providenciar comida para si e para os filhos. Assim, a apropriação de sua natureza corporal, o fato de que elas produzem crianças e leite, as tornam também as primeiras provedoras do alimento diário, seja como coletoras, que simplesmente coletam o que acham na natureza, plantas, pequenos animais, peixes, etc., ou como agricultoras. A primeira divisão do trabalho por gênero, a saber, entre as atividades de coleta das mulheres e a caça esporádica dos homens, tem sua origem, provavelmente, no fato de as mulheres serem necessariamente responsáveis pela produção da subsistência diária. A coleta de plantas, raízes, frutas, cogumelos, castanhas, pequenos animais, etc., foi desde o início uma atividade coletiva das mulheres.

Assume-se que a necessidade de fornecer o alimento diário e a longa experiência com plantas e vida vegetal levou à invenção do cultivo regular de grãos e tubérculos. De acordo com Gordon Childe, esta invenção ocorreu na Era Neolítica, particularmente na Eurásia, onde os grãos selvagens foram cultivados pela primeira vez. Ele e muitos outros estudiosos atribuem esta invenção às mulheres, que também foram inventoras das primeiras ferramentas necessárias para este novo modo de produção: a vara de escavação – que já era utilizada para cavar raízes e tubérculos selvagens – e a enxada (Childe, 1976; Reed, 1975; Bornemann, 1975; Thomson, 1965; Chattopadhyaya, 1973; Ehrenfels, 1941; Briffault, 1952).

O cultivo regular de plantas alimentícias, principalmente tubérculos e grãos, significou um novo estágio e um enorme aumento na produtividade do trabalho feminino que, segundo a maioria dos autores, possibilitou a produção de um excedente pela primeira vez na história. Childe, portanto, chama essa transformação de revolução neolítica, que ele atribui ao cultivo regular de grãos. Com base em descobertas arqueológicas recentes no Irã e na Turquia, Elisabeth Fisher, no entanto, argumenta que as pessoas eram capazes de coletar um excedente de grãos e castanhas já no estágio de coleta. A pré-condição tecnológica para a coleta de um excedente foi a invenção de recipientes, cestas de folhas e fibras vegetais e frascos. Parece plausível que a tecnologia de preservação tenha precedido a nova tecnologia agrícola e fosse igualmente necessária para a produção de um excedente.

A diferença entre os dois modos de produção é, portanto, não tanto a existência de um excedente, mas sim que as mulheres desenvolveram a primeira relação verdadeiramente produtiva com a natureza. Enquanto os coletores ainda viviam em uma sociedade de apropriação simples, com a invenção do cultivo de plantas, podemos falar pela primeira vez de uma ‘sociedade de produção’ (Sohn-Rethel, 1970). As mulheres não só coletavam e consumiam o que crescia na natureza, mas elas faziam crescer as coisas.

A relação de objeto das mulheres com a natureza não era apenas produtiva, também era, desde o começo, de produção social. Em contraste com os homens, que podiam coletar e caçar apenas para si, as mulheres tinham que compartilhar seus produtos pelo menos com seus filhos pequenos. Isto significa que a relação de objeto específica com a natureza (tanto com a natureza corporal como com a natureza externa), ou seja, para poder crescer e fazer crescer as fez também inventoras das primeiras relações sociais, as relações entre mães e crianças.

Muitos autores chegaram à conclusão de que unidades mães–crianças foram as primeiras unidades sociais. Não eram apenas unidades de consumo, mas também unidades de produção. Mães e crianças trabalhavam juntas como coletoras e no início do cultivo com enxada. Esses autores são da opinião que os homens adultos eram apenas temporariamente e perifericamente integrados ou socializados nessas unidades matricêntricas ou matrísticas iniciais (Briffault, 1952; Reed, 1975; Thomson, 1965).

Martin e Voorhies argumentam que essas unidades matricêntricas coincidiram com uma fase vegetariana na evolução dos hominídeos. ‘Os machos adultos não mantinham nenhum vínculo permanente com essas unidades mãe-filho, exceto com a unidade de seu nascimento (Martin & Voorhies, 1975: 174). Isso significa que a integração permanente dos machos nessas unidades deve ser vista como resultado da história social. As fontes produtivas desenvolvidas nessas primeiras unidades sociais não eram apenas de natureza tecnológica, mas acima de tudo a capacidade de cooperação humana, e refletiam a capacidade de ‘planejar para o futuro’, antecipar o futuro, aprender um com o outro, passar este conhecimento de uma geração para outra e aprender com experiências passadas ou, em outras palavras, constituir a história.

Para resumir a relação de objeto da mulher com a natureza historicamente desenvolvida, podemos afirmar o seguinte:

a. Sua interação com a natureza, com a sua própria natureza, bem como com a natureza externa, foi um processo recíproco. Eles conceberam seus próprios corpos como sendo produtivos e criativos da mesma maneira que conceberam a natureza externa como produtiva e criativa.

b. Embora elas apropriem da natureza, essa apropriação não constitui uma relação de domínio ou uma relação de propriedade. Elas não são proprietárias de seus próprios corpos ou da terra, mas elas cooperam com seus corpos e com a terra para ‘deixar crescer e fazer crescer’.

c. Como produtoras de nova vida, elas também se tornaram as primeiras produtoras de subsistência e inventoras da primeira economia produtiva. Isso implica, desde o início, a produção social e a criação de relações sociais, ou seja, da sociedade e da história.

 

Relação de objeto dos Homens com a natureza

 

A relação de objeto dos homens com a natureza, como a das mulheres, tem tanto uma dimensão fisiológica quanto histórica. O lado fisiológico dessa relação – que existe em todos os momentos enquanto viverem homens e mulheres – significa que os homens se apropriam da natureza através de um corpo qualitativamente diferente do que as mulheres.

Eles não podem experimentar seus próprios corpos como sendo produtivos do mesmo modo que as mulheres podem. A produtividade corporal masculina não pode aparecer como tal sem a mediação de meios externos, de ferramentas, enquanto a produtividade da mulher pode. A contribuição dos homens para a produção de uma nova vida, embora necessária em todos os momentos, torna-se visível somente após um longo processo histórico de ação dos homens sobre a natureza externa por meio de ferramentas e sua reflexão sobre esse processo. A concepção que os homens têm de sua própria natureza corporal e as imagens que usam para refletir sobre si são influenciadas por diferentes formas históricas de interação com a natureza externa e os instrumentos utilizados neste processo de trabalho. Portanto, a autoconcepção masculina como humana, isto é, como produtiva, está intimamente ligada à invenção e ao controle da tecnologia. Sem ferramentas o homem não é um HOMEM.

Ao longo da história, o reflexo dos homens sobre a relação sua relação de objeto com a natureza externa se expressou nos símbolos com os quais eles descreveram seus próprios órgãos do corpo. É interessante que o primeiro órgão masculino que ganhou proeminência como símbolo da produtividade masculina foi o falo, não a mão, embora a mão fosse o principal instrumento para a fabricação de ferramentas. Isso deve ter acontecido no estágio em que o arado substituiu o bastão de escavação ou a enxada dos primeiros cultivos femininos. Em algumas línguas Indianas existe uma analogia entre arado e pênis. Na gíria Bengali, o pênis é chamado de ‘ferramenta’ (yantra). Este simbolismo é claro, não apenas expressa uma relação instrumental com a natureza externa, mas também com as mulheres. Nas línguas norte-indianas, as palavras para ‘trabalho’ e ‘coito’ são as mesmas, a saber, ‘kam’. Este simbolismo também implica que as mulheres se tornaram ‘natureza externa’ para os homens. Elas são a terra, o campo, o sulco (sita) sobre o qual os homens semeiam suas sementes (sêmen).

Mas essas analogias de pênis e arado, sementes e sêmen, campo e mulheres não são apenas expressões linguísticas de uma relação de objeto instrumental dos homens com a natureza e as mulheres, mas também indicam que essa relação já se caracteriza pela dominância. As mulheres já são definidas como parte das condições físicas da produção (masculina).

Não sabemos muito sobre lutas históricas que ocorreram antes que a relação de objeto dos homens fosse estabelecida como uma produtividade superior à das mulheres. Mas, a partir das batalhas ideológicas encontradas na literatura indiana antiga durante vários séculos sobre a questão, se a natureza do ‘produto’ (grãos, crianças) era determinada pelo campo (mulher) ou pela semente (homem), temos a ideia de que a submissão da produtividade feminina não foi um processo pacífico, mas parte integrante das lutas de classes e do estabelecimento de relações de propriedade patriarcal sobre terra, gado e mulheres (Karve, 1963).

Seria revelador estudar as analogias entre as palavras para os órgãos sexuais dos homens e as ferramentas que os eles inventaram em diferentes épocas históricas e para diferentes modos de produção. Não é acidental que, no nosso tempo, os homens chamem seu pênis de ‘a chave de fenda’ (eles ‘aparafusam’ uma mulher), o ‘martelo’, a ‘raspadeira’, a ‘arma’, etc. No porto de Roterdã, um porto comercial, os órgãos sexuais masculinos são chamados de ‘o comércio’. Esta terminologia nos diz muito sobre como os homens definem sua relação com a natureza, mas também com as mulheres e seus próprios corpos. É uma indicação do vínculo nas mentes dos homens entre seus instrumentos de trabalho e seu processo de trabalho e a autoconcepção de seus próprios corpos.

No entanto, antes que os homens pudessem conceber não apenas seus corpos mais produtivos do que as mulheres, mas também estabelecer uma relação de domínio sobre as mulheres e a natureza externa, eles tiveram que desenvolver primeiro um tipo de produtividade que, pelo menos, parecia independente e superior à produtividade das mulheres. Como já vimos, a aparência da produtividade masculina estava intimamente ligada à invenção das ferramentas. No entanto, alguns homens poderiam devolver uma produtividade (aparentemente) independente de mulheres apenas com base na produtividade feminina desenvolvida.

 

Produtividade Feminina como precondição para a produtividade Masculina

 

Se considerarmos que a ‘produtividade’ significa a capacidade específica dos seres humanos para produzir e reproduzir a vida em um processo histórico, podemos formular para nossa análise posterior a tese de que a produtividade feminina é a condição prévia para a produtividade masculina e para todo o desenvolvimento histórico mundial. Esta afirmação tem uma dimensão material atemporal e também histórica.

O primeiro consiste no fato de que as mulheres em todos os tempos serão produtoras de novas mulheres e novos homens, e que, sem essa produção, todas as outras formas e modos de produção perdem o sentido. Isso parece trivial, mas isso nos lembra do objetivo de toda a história humana. O segundo significado da afirmação acima está no fato de que as várias formas de produtividade que os homens desenvolveram ao longo da história não poderiam ter surgido se não pudessem ter usado e subordinado as várias formas históricas da produtividade feminina.

A seguir, tentarei usar a tese acima como um princípio orientador para a análise da divisão assimétrica do trabalho entre os sexos durante algumas das principais fases da história humana. Isso nos ajudará a desmistificar alguns dos mitos comuns que se colocam para explicar a desigualdade social entre mulheres e homens como dado pela natureza.

 

O mito do homem-caçador

 

A produtividade das mulheres é a condição prévia de toda produtividade humana, não só no sentido de serem sempre produtoras de novos homens e mulheres, mas também no sentido de que a primeira divisão social do trabalho, entre as mulheres coletoras (mais tarde também cultivadoras) e predominantemente homens caçadores, ocorreu apenas com base em uma produtividade feminina desenvolvida.

A produtividade feminina consistia, acima de tudo, na capacidade de proporcionar subsistência diária, a garantia de sobrevivência, para os membros do clã ou bando. As mulheres necessariamente tinham que garantir o ‘pão diário’, não só para si e para seus filhos, mas também para os homens, caso eles não tivessem sorte em suas expedições de caça, porque a caça é ‘uma economia de risco’.

Foi provado de forma conclusiva, particularmente pela pesquisa crítica de estudiosas feministas, que a sobrevivência da humanidade se deve muito mais à ‘mulher-coletora’ do que ao ‘homem-caçador’ em contraste com o que o Darwinismo-social, antigo ou novo, prega. Mesmo entre os caçadores e coletores existentes, as mulheres fornecem até 80 por cento do alimento diário, enquanto os homens contribuem apenas com uma pequena porção (Lee & de Vore, 1976, citado por Fisher, 1979: 48). Por uma análise secundária de uma amostra de caçadores e coletores do Atlas Etnográfico de Murdock, Martin & de Vore provaram que 58 por cento da subsistência dessas sociedades era obtida pela coleta, 25 por cento pela caça e o resto pela caça e coleta juntos (1975: 181). As mulheres Tiwi, na Austrália, que são caçadoras e coletoras, obtinham 50 por cento de seus alimentos coletando, 30 por cento pela caça e 20 por cento pescando. Jane Goodale, que estudou as mulheres Tiwi, disse que a caça e coleta era a atividade produtiva mais importante: .

.. A mulher não só podia, mas fornecia o maior suprimento diário de uma variedade de alimentos aos membros do seu campo… A caça masculina requeria muita habilidade e força, mas os pássaros, morcegos, crocodilos, dugongos e tartarugas contribuíam para a os agregados familiares eram itens de luxo em vez de grampos (Goodale, 1971: 169).

É óbvio, a partir desses exemplos, que, entre os caçadores e coletores existentes, a caça não tem, de modo algum, a importância econômica que geralmente é atribuída a ela e que as mulheres são as fornecedoras da maior parte do alimento básico diário. Na verdade, todos os caçadores de grande jogo dependiam do abastecimento de suas mulheres de alimentos que não eram produzidas pela caça, se quisessem fazer uma expedição de caça. Esta é a razão pela qual as mulheres Iroquesas tinham voz na tomada de decisão sobre expedições de guerra e caça. Se elas se recusassem a dar aos homens o suprimento necessário de alimentos para suas aventuras, os homens tinham que ficar em casa (Leacock, 1978; Brown, 1970).

Elisabeth Fisher nos dá mais exemplos de povos que ainda são forrageadores, entre os quais as mulheres são as principais provedoras de alimentos diários, particularmente nas zonas temperadas e do sul. Mas ela também argumenta que a coleta de alimentos vegetais era mais importante para nossos antepassados iniciais do que a caça. Ela refere-se ao estudo dos coprólitos, excremento fóssil, que revela que os grupos que viveram 200.000 anos atrás no sul da costa francesa sobreviviam principalmente em uma dieta de mariscos, mexilhões e grãos, e não carne. Coprólitos de doze mil anos de idade, do México sugerem que o milheto era o principal alimento básico nessa área (Fisher, 1979: 57-58).

Embora seja evidente a partir desses exemplos, bem como do senso comum, que a humanidade não teria sobrevivido se a produtividade do homem-caçador tivesse sido a base para a subsistência diária das sociedades iniciais, a noção de que o homem-caçador foi o inventor das primeiras ferramentas, o provedor de alimentos, o inventor da sociedade humana e o protetor de mulheres e crianças, persiste não apenas na literatura e nos filmes populares, mas também entre cientistas sociais sérios e até mesmo entre estudiosos marxistas.

A hipótese do homem-caçador foi popularizada por antropólogos e behavioristas e recentemente por sociobiologistas que seguem a linha do pensamento evolucionista desenvolvido por Raymond Dart, um antropólogo sul-africano, que sustentou que os primeiros hominídeos tinham feito suas primeiras ferramentas de ossos de membros mortos de sua própria espécie (Fisher, 49-50). Seguindo essa hipótese, Konrad Lorez (1963), Robert Ardrey (1966, 1976), Lionel Tiger e Robin Fox (1971) argumentam que a caça era o motor do desenvolvimento humano e que a relação existente de dominância entre mulheres e homens se origina na ‘infraestrutura biológica’ dos caçadores da idade da pedra (Tiger & Fox, 1971). De acordo com esses autores, o caçador (masculino) não é apenas o inventor das primeiras ferramentas – que, claro, são armas -, mas também da marcha ereta, porque o homem-caçador precisava libertar as mãos para o lançamento de projéteis. De acordo com eles, ele também é o suporte de família, o protetor das mulheres fracas e dependentes, o engenheiro social, o inventor das normas e dos sistemas hierárquicos que têm apenas um objetivo, isto é, restringir a agressividade biologicamente programada dos machos em sua luta pelo controle sobre a sexualidade das fêmeas. Eles desenham uma linha direta do comportamento observado de alguns dos primatas que se esforçam para chegar ao topo da hierarquia masculina, a fim de poder submeter às fêmeas à sua própria satisfação sexual.

Os esforços do primata humano para chegar ao topo da hierarquia masculina, que aparentemente é apenas um pouco, mas de fato fundamentalmente diferente da dos macacos, visam ganhar controle sobre as mulheres membros de seu próprio grupo para trocar com as mulheres de outro grupo (ênfase Tiger & Fox). Assim, ele obtém satisfação sexual e vantagens políticas (Tiger & Fox, 1971).

A conquista ‘cultural’ desses caçadores-primatas humanos parece ser que eles aumentaram (ou ‘evoluíram’) do estágio de Estupro para o estágio de Troca de Mulheres. A relação de dominação exploratória entre homens e mulheres está enraizada na ‘infraestrutura biológica’ do comportamento de caça: os homens são fornecedores de carne, pelas quais as mulheres têm um desejo. Portanto, os caçadores foram capazes de sujeitar e subordinar as mulheres permanentemente como objetos sexuais e abelhas operárias. O que deu aos caçadores essa tremenda vantagem sobre as mulheres foi, segundo esses autores, ‘o princípio do vínculo’, que evoluiu da caça em grupos. Tiger já apresentava a ideia do princípio do ‘vínculo masculino’ como causa raiz da supremacia masculina em seu livro Men in Groups (1969), quando os EUA estavam no meio de outra aventura do homem-caçador, a Guerra do Vietnã. Embora ele soubesse, como observa Evelyn Reed, que o consumo de carne constituía apenas uma pequena porção da dieta dos babuínos, ele afirma que a caça e o consumo de carne foram um fator decisivo na evolução pré-humana dos primatas e que os padrões do vínculo masculino refletem e surgem a partir da história do homem como caçador.

Assim, na situação de caça, foi o grupo de caça – homem+homem+homem – que garantiu a sobrevivência de toda a comunidade produtiva. Assim, o vínculo homem-homem foi importante para fins de caça, assim como o vínculo homem-mulher foi importante para fins produtivos, e essa é a base para a divisão do trabalho por sexo (Tiger, 1969: 122-126).

O modelo do homem-caçador como o paradigma da evolução humana tem sido a base de inúmeros trabalhos científicos nas áreas de humanidades e tem sido popularizado pela mídia moderna. Isso influenciou o pensamento de milhões de pessoas, e ainda está constantemente avançando para explicar as causas das desigualdades sociais. Estudiosas feministas desafiaram a validade desse modelo com base em sua própria pesquisa e na de outros. Desmascarando este modelo, incluindo as premissas básicas do princípio do vínculo masculino, a importância da carne como alimento, etc., como uma projeção sexista das relações sociais modernas, capitalistas e imperialistas na pré-história e na história antiga. Esta projeção serve para legitimar as relações existentes de exploração e dominação entre homens e mulheres, classes e povos como universais, atemporais e naturais. Evelyn Reed denunciou com razão a orientação fascista escondida por trás desse modelo, particularmente na escrita de Tiger e sua glorificação da guerra (Reed, 1978).

Embora possamos desmistificar a hipótese do homem-caçador e demonstrar que os grandes caçadores não poderiam ter sobrevivido se não fosse a produção diária de subsistência das mulheres, ainda estamos diante da questão de saber por que as mulheres, apesar disso da sua produtividade econômica superior como coletoras e primeiras agricultoras, não conseguiram impedir o estabelecimento de uma relação hierárquica e exploradora entre os sexos.

Se fizermos essa pergunta dessa maneira, assumimos que o poder político emerge automaticamente do poder econômico. A discussão anterior mostrou que tal suposição não pode ser mantida, porque a supremacia masculina não surgiu de sua contribuição econômica superior.

A seguir, tentarei encontrar uma resposta para a questão acima, examinando mais de perto as várias ferramentas inventadas e usadas por mulheres e homens.

 

Ferramentas de Mulheres, ferramentas de Homens

 

O modelo do homem-caçador é, de fato, a versão mais recente do modelo do homem-fabricante de ferramentas. À luz deste modelo, as ferramentas são acima de tudo armas, ferramentas para matar.

As primeiras ferramentas da humanidade, as machadinhas de pedra, raspadores e lâminas possuíam um caráter ambivalente. Elas podiam ser usadas ​​para moer, esmagar e pulverizar grãos e outros alimentos vegetais, e cavar raízes, mas também podiam ser usadas ​​para matar pequenos animais, e podemos assumir que elas eram usadas ​​por homens e mulheres para os dois fins. No entanto, a invenção das armas propriamente ditas, dos projéteis, do arco e da flecha, indica que a matança de animais se tornou uma grande especialidade de uma parte da sociedade, principalmente dos homens. Os adeptos da hipótese do caçador são de opinião que as primeiras ferramentas foram inventadas pelos homens. Eles ignoram a invenção das mulheres relacionadas com sua produção de subsistência. Mas, como discutido anteriormente, as primeiras invenções foram provavelmente recipientes e cestas de folhas, cascas e fibras e posteriormente jarros. O bastão de escavação e a enxada foram as principais ferramentas para a coleta, bem como para a agricultura inicial. As mulheres devem ter continuado com sua tecnologia, enquanto alguns homens desenvolveram ferramentas especializadas para a caça.

O importante aqui é notar que a tecnologia das mulheres permaneceu produtiva no verdadeiro sentido da palavra: produziram algo novo. A tecnologia de caça, por outro lado, não é produtiva, isto é, o equipamento próprio para caça não pode ser usado para qualquer outra atividade produtiva – ao contrário da machadinha de pedra. O arco, a flecha e as lanças são basicamente meios de destruição. Sua significância está no fato de que eles podem ser usados para matar animais, mas também podem ser usados para matar seres humanos. É essa a característica das ferramentas de caça que as tornaram decisivas no desenvolvimento da produtividade masculina, bem como nas relações sociais desiguais e exploradoras, e não o fato de que os caçadores como fornecedores de carne pudessem elevar o padrão de nutrição da comunidade.

Por isso, concluímos que o significado da caça não está na sua produtividade econômica como tal, como é erroneamente assumido por muitos teóricos, mas na relação particular de objeto com a natureza que constitui. A relação de objeto com a natureza do homem-caçador é distintamente diferente da mulher-coletora ou cultivadora. As características desta relação são as seguintes:

a. As principais ferramentas dos caçadores não eram instrumentos para produzir vida, mas para destruir a vida. Suas ferramentas não eram meios de produção, mas meios de destruição, e podiam ser utilizados como meios de coerção também contra outros seres humanos.

b. Isso dá aos caçadores um poder sobre os seres vivos, tanto os animais como os seres humanos, que não resulta de seu próprio trabalho produtivo. Eles podem se apropriar não apenas de frutas e plantas (como os coletores) e animais, mas também outros produtores (femininos) em virtude de armas.

c. A relação de objeto mediada por armas, portanto, é basicamente predatória ou exploratória: caçadores podem se apropriar de vidas, mas não podem produzir a vida. É uma relação antagônica e não recíproca. Todas as relações exploradoras posteriores dentre produção e apropriação são, em última análise, defendidas pelas armas como meio de coerção.

d. A relação de objeto com a natureza mediada através das armas constituiu uma relação de domínio e não de cooperação. Essa relação de domínio tornou-se um elemento integral em todas as demais relações de produção que os homens estabeleceram. Tornou-se, de fato, o principal paradigma de sua produtividade. Sem dominar e controlar a natureza, os homens não podem se conceber como produtivos.

e. A ‘apropriação de substâncias naturais’ (Marx) agora se torna um processo de apropriação unilateral, no sentido de estabelecer relações de propriedade, não no sentido da humanização, mas no sentido de exploração da natureza.

f. Por meio de armas, os caçadores não só podiam caçar animais, mas também podiam saquear as comunidades de outros produtores de subsistência, sequestrar seus jovens e mulheres não armados e apropriá-los. Pode-se supor que as primeiras formas de propriedade privada não eram gado ou outros alimentos, mas escravas que haviam sido sequestradas (Meilassoux, 1975; Bornemann, 1975).

Neste ponto, é importante ressaltar que não é a tecnologia de caça como tal responsável pela constituição de uma relação de dominação e exploradora entre homem e natureza, entre homem e homem, homem e mulher. Estudos recentes sobre sociedades de caça existentes mostraram que os caçadores não têm relações agressivas com os animais que caçam. Os pigmeus, por exemplo, parecem ser pessoas extremamente pacíficas que não conhecem a guerra, nem as brigas, nem a feitiçaria (Turnbull, 1961). Suas expedições de caça não são agressivas, mas são acompanhadas por sentimentos de compaixão pelos animais que eles têm que matar (Fisher, 1979: 53).

Isso significa que o surgimento de uma tecnologia de caça especializada apenas implica a possibilidade de estabelecer relações de exploração e domínio. Parece que, enquanto os caçadores permanecessem confinados ao seu limitado contexto de caça, eles não conseguiam perceber o potencial de exploração de seu modo de produção predatório. Sua contribuição econômica não era suficiente; eles continuaram dependentes para sua sobrevivência da produção de subsistência das mulheres.

 

Pastores

 

Embora houvesse desigualdade entre homens e mulheres, os caçadores não conseguiram estabelecer um sistema de dominação de pleno direito. As forças produtivas dos caçadores só puderam ser liberadas quando os nômades pastorais, que domesticavam gado e mulheres, invadiram as comunidades agrícolas. Isso significa que a plena realização da capacidade produtiva deste modo de produção predatório pressupõe a existência de outros modos realmente produtivos, como a agricultura.

Elisabeth Fisher é da opinião que uma relação de dominância entre homens e mulheres só pode ser estabelecida depois que os homens descobriram suas próprias capacidades geradoras. Esta descoberta, de acordo com ela, foi de mãos dadas com a domesticação – e particularmente a reprodução – de animais como um novo modo de produção. Os pastores descobriram que um touro poderia emprenhar muitas vacas, o que pode ter levado à castração e à eliminação de animais mais fracos. O touro principal era então utilizado nos períodos em que os pastores nômades consideravam os mais apropriados para emprenhar as vacas. As fêmeas eram submetidas à coerção sexual. Isso significa que a sexualidade livre dos animais selvagens foi submetida a uma economia coercitiva, baseada na reprodução, com o objetivo de aumentar os rebanhos. É plausível que o estabelecimento de haréns, o sequestro e estupro de mulheres, o estabelecimento de linhas patriarcais de descendência e herança fizesse parte desse novo modo de produção. As mulheres também foram submetidas à mesma lógica econômica e se tornaram parte da propriedade móvel; Eles se tornaram bens móveis.

Este novo modo de produção, no entanto, foi possível por duas coisas: o monopólio dos homens sobre armas e a longa observação do comportamento reprodutivo dos animais. À medida que os homens começavam a manipular o comportamento reprodutivo dos animais, descobriram suas próprias funções generativas. Isso levou a uma mudança em sua relação com a natureza, bem como a uma mudança na divisão sexual do trabalho. Para os pastores nômades, as mulheres não eram mais importantes como produtoras ou coletoras de alimentos, como era o caso entre os caçadores. Elas são necessárias como criadoras de crianças, particularmente de filhos. A sua produtividade agora está reduzida à sua ‘fertilidade’ que foi apropriada e controlada pelos homens (ver Fisher, 1979: 248).

Em contraste com a economia de caçadores e coletores, que é majoritariamente apropriativa, a economia dos pastores nômades é uma ‘economia produtiva’ (Sohn-Rethel). Mas é óbvio que esse modo de produção pressupõe a existência de meios de coerção para a manipulação de animais e seres humanos, e para a extensão de território.

 

Agricultores

 

É, portanto, muito correto dizer que os pastores nômades foram os pais de todas as relações de dominância, particularmente a dos homens sobre as mulheres. Mas há dados suficientes que sugerem que as relações de exploração entre homens e mulheres também existiram entre os agricultores, não só após a introdução do arado, como acredita Esther Boserup (1970), mas também entre os cultivadores de enxada na África, onde ainda hoje a agricultura é feita principalmente por mulheres. Meillassoux (1974) ressalta que em tais sociedades, que ele caracteriza como ‘économies domestiques’, os homens mais velhos estavam em condições de estabelecer uma relação de domínio sobre homens e mulheres mais jovens porque poderiam adquirir mais esposas para trabalhar para eles. O sistema de casamento era o mecanismo pelo qual eles acumulavam mulheres e riqueza, que de fato estavam intimamente relacionados. Meillassoux, seguindo Lévi-Strauss, presume a existência de um sistema desigual de troca de mulheres e menciona apenas de passagem as prováveis ​​raízes deste sistema, ou seja, o fato de que, devido à produção de subsistência em curso das mulheres, os homens eram livres para irem de vez em quando a expedições de caça. A caça era para os homens nessas economias domésticas uma atividade esportiva e política e não uma atividade econômica. Em tais expedições, os homens também sequestravam mulheres coletoras isoladas e homens jovens de outras vilas ou tribos.

Em um estudo recente sobre a escravidão na África pré-colonial, editado por Meillassoux, encontramos vários exemplos que mostram que esses caçadores não apenas sequestravam e se apropriavam de pessoas que surpreendiam na selva, mas também organizavam razias [invasão de território] regulares em outras aldeias para sequestrar mulheres. As mulheres apropriadas não se tornavam membros da comunidade, mas geralmente eram apropriadas pelo líder da expedição, que as usava como escravas para trabalhar para ele, ou para vendê-las como noivas para outras aldeias. Essas mulheres sequestradas tornavam-se assim uma fonte direta para a acumulação de propriedade privada.

A escravidão, portanto, obviamente não surgiu a partir do comércio, mas a partir do monopólio masculino sobre as armas. Antes que os escravos pudessem ser comprados e vendidos, eles tinham que ser capturados, eles deviam ser apropriados por um mestre pela força das armas. Esta forma predatória de aquisição da força de trabalho, tanto para o trabalho em um cenário ‘privado’ quanto para venda, foi considerada a atividade mais ‘produtiva’ desses guerreiros-caçadores, que, deve ser mantido em mente, já não eram caçadores e coletores, mas viviam em um sistema econômico baseado no trabalho produtivo de mulheres agricultoras; Eles eram os ‘maridos’ das agricultoras. Sua produtividade foi descrita por um homem Samo, da antiga Republica de Alto Volta, como a produtividade do arco e da flecha, pela qual todos os outros produtos – milho, feijão, etc., e mulheres – poderiam ser obtidos:

Nossos antepassados nasceram com sua enxada, seu machado, seu arco e sua flecha. Sem um arco você não pode trabalhar na selva. Com o arco, você adquire o mel, os amendoins, os feijões e, em seguida, uma mulher, depois crianças e, finalmente, você pode comprar animais domésticos, cabras, ovelhas, burros e cavalos. Estas eram as riquezas dos antigos. Você trabalhava com arco e flecha na selva, porque poderia haver sempre alguém que pudesse surpreender e matar você.

De acordo com este homem, havia grupos ‘milicianos’ de cinco ou seis homens que vagavam pela selva tentando surpreender e sequestrar mulheres e homens que estavam sozinhos. Os sequestrados eram vendidos (Heritier in Meillassoux, 1975: 491).

Esta passagem mostra claramente que os homens Samo concebiam sua própria produtividade em termos de armas, que surpreendiam os coletores solitários na selva para vendê-los. A razão para isso era: o que era capturado de surpresa na selva era apropriado (propriedade privada). Esta propriedade privada foi apropriada pela linhagem hereditária do chefe (anteriormente a linhagem do criador da chuva), que então vendia esses cativos a outras linhagens, fosse como esposas (neste caso, por contas de cobre como dinheiro), ou como escravas para o trabalho agrícola, ou eram devolvidas pelo dinheiro do resgate para sua própria aldeia. Essas invasões eram assim um meio para alguns homens acumularem mais riqueza do que outros homens.

As escravas eram preferidas e obtidas a um preço mais elevado porque eram produtivas de duas maneiras: eram trabalhadoras agrícolas e podiam produzir mais escravos. Os Samo geralmente matavam os homens nessas incursões porque eles não tinham utilidade econômica para eles. Mas mulheres e crianças eram capturadas, feitas escravas e vendidas.

Jean Bazin, que estudou guerra e escravidão entre os Segu, chama a captura de escravos pelos guerreiros da atividade ‘mais produtiva’ dos homens desta tribo.

A produção de escravos é de fato uma produção… em toda a atividade predatória, esta é a única atividade que é efetivamente produtiva, porque a pilhagem dos bens é apenas uma mudança de mão e lugar. O momento dominante desta produção é o exercício da violência contra o indivíduo para cortá-lo das redes locais e sociais (idade, sexo, parentes, alianças, linhagens, clientela, vila) (Bazin in Meillassoux, 1975: 142).

Com base nos seus estudos entre os Touareg, Pierre Bonte conclui que a escravidão foi a condição prévia para a expansão das ‘économies domestiques’ em uma economia mais diversificada, onde existia uma grande demanda por mão-de-obra. Ele vê a escravidão como o ‘resultado e os meios de troca desigual’ (Bonte in Meillassoux, 1975: 54).

Os exemplos da África pré-colonial deixam claro que o modo predatório de produção dos homens, baseado no monopólio das armas, só poderia se tornar ‘produtivo’ quando existiam outras economias de produção, principalmente femininas, que poderiam ser atacadas. Pode ser caracterizado como produção não produtiva. Eles também mostram a ligação entre a pilhagem, o saque e o roubo, por um lado, e o comercio de outro. O que foi negociado e trocado por dinheiro (conchas, contas) não foi o excedente produzido além das exigências da comunidade; mas o que foi roubado e apropriado por meios de armas foi, de fato, definido como ‘excedente’.

Em última análise, podemos atribuir a divisão assimétrica do trabalho entre mulheres e homens a esse modo de produção predatório, ou melhor, apropriação, que se baseia no monopólio masculino sobre os meios de coerção, isto é, armas e violência direta por meio das quais relações permanentes de exploração e dominância entre os sexos foram criadas e mantidas.

Este conceito de excedente ultrapassa o conceito de excedente desenvolvido por Marx e Engels. A existência de um excedente constitui, segundo eles, a pré-condição material-histórica crucial para o desenvolvimento das relações sociais exploradoras, para as relações de classe. Eles atribuem esse surgimento de um excedente ao desenvolvimento de meios de produção mais ‘produtivos’. Nas sociedades que poderiam produzir mais do que precisavam para sua própria subsistência, alguns grupos de pessoas poderiam apropriar-se desse excedente e assim estabelecer relações de classe duradouras, baseadas em relações de propriedade. O que permanece sem resposta neste conceito é a questão de saber como e por que meios essa apropriação do excedente ocorreu. Nós temos evidências empíricas de fontes etnológicas para demonstrar que a existência de excedente per se não leva a uma apropriação unilateral de um grupo ou classe de pessoas (ver o potlatch [cerimônia indígena] ou sacrifícios). Obviamente, a definição do que é necessário e o que é excedente não é uma questão puramente econômica, mas política e/ou cultural.

Da mesma forma, a ‘exploração’, na sequência desta análise, não é apenas apropriação unilateral do excedente produzido além dos requisitos necessários de uma comunidade, mas também o roubo, a pilhagem e o saque dos requisitos necessários de outras comunidades. Esse conceito de exploração, portanto, sempre implica uma relação criada e sustentada em última instância por coerção ou violência.

A partir disso, o estabelecimento de classes, baseado na apropriação unilateral do ‘excedente’ (como eu o defini), está intrinsecamente entrelaçada com o estabelecimento do controle patriarcal sobre as mulheres, como as principais ‘produtoras da vida’ em dois aspectos.

Este modo de apropriação não produtivo e predatório tornou-se o paradigma de todas as relações históricas de exploração entre seres humanos. Seu principal mecanismo é transformar produtores humanos autônomos em condições de produção para outros, ou defini-los como ‘recursos naturais’ para outros. É importante enfatizar a especificidade histórica deste paradigma patriarcal. O Patriarcado não foi desenvolvido universalmente em todo o mundo, mas por sociedades patriarcais distintas. Elas incluem os judeus, os arianos (índios e europeus), os árabes, os chineses e os suas respectivas grandes religiões. O surgimento e a universalização de todas essas civilizações, mas particularmente o judeu europeu, é baseado na conquista e na guerra.A Europa não foi invadida pelos africanos, mas a África foi invadida por predadores europeus. Isso também significa que o conceito de um processo unilinear e universal de história que evoluiu em estádios sucessivos em todo o mundo, do comunismo primitivo, sobre a barbárie, o feudalismo, o capitalismo ao socialismo e ao comunismo pode ter que ser abandonado em nossa análise do patriarcado.

 

O Homem-caçador sob o feudalismo e o capitalismo

 

Todo o potencial do modo predatório só poderia ser realizado sob o feudalismo e o capitalismo.

O modo patriarcal predatório de apropriação de produtores, produtos e meios de produção por não produtores, não foi totalmente abolido quando novos e mais ‘pacíficos’ modos de produção substituíram os mais antigos. Em vez disso, foi transformado e preservado dialeticamente, no sentido de que reapareceu em novas formas de controle do trabalho.

Do mesmo modo, as novas formas de divisão sexual do trabalho até agora não substituíram as formas antigas, mas apenas as transformaram, de acordo com os requisitos dos novos modos de produção. Nenhum dos modos de produção que surgiram mais tarde na história, eliminou o modo predatório e a aquisição violenta de  não-produtores por produtores, meios de produção e produtos. As relações de produção posteriores têm a mesma estrutura básica de ser, assimétrica e exploradora. Apenas as formas de dominância e apropriação mudaram. Assim, ao invés de usar ataques violentos e escravidão para adquirir mais mulheres como trabalhadoras e produtoras do que nasceram em uma comunidade, evoluíram sistemas de hipergamia, o que garante que os GRANDES HOMENS possam ter acesso não só a mais mulheres de sua própria comunidade ou classe, mas também as mulheres dos Pequenos Homens. As mulheres se tornaram uma mercadoria em um mercado de casamento assimétrico ou desigual, porque o controle de mais mulheres significava acumulação de riqueza (Meillassoux, 1975). Os GRANDES HOMENS (o Estado) tornaram-se, então, os gerentes da reprodução social, bem como da produção. Em todas as civilizações patriarcais, a relação entre homens e mulheres manteve seu caráter de coerção e apropriação.A divisão assimétrica do trabalho de acordo com o sexo, uma vez estabelecida por meio da violência, foi defendida por instituições como a família e o Estado e também por meio de poderosos sistemas ideológicos, acima de tudo pelas religiões patriarcais, leis, medicina, que definiram as mulheres como parte da natureza que tem que ser controlada e dominada pelo homem.

O modo predatório de aquisição viu um renascimento durante o período do feudalismo europeu. O feudalisismo como modo de produção específico baseado na propriedade da terra foi construído com uso extensivo de violência e guerra. De fato, os processos endógenos de diferenciação de classes nas sociedades camponesas por si só não teriam dado lugar ao feudalismo, pelo menos não em sua versão europeia que figura como o ‘modelo’ do feudalismo. A forma predatória de aquisição de novas terras e o uso em larga escala de pilhagens e saques pela classe feudal armada constituiu uma parte inseparável e uma pré-condição para o aumento e manutenção desse modo de produção (Elias, 1978; Wallerstein, 1974).

Mais tarde, não só as terras novas assim adquiridas, mas com as terras os meios ou condições de produção – os camponeses – também foram apropriados e ligados ao senhor feudal em uma relação de produção específica que não lhes permitia se afastar dessa terra. Eles eram vistos como parte da terra. Assim, não só as mulheres desses camponeses, mas os próprios camponeses foram ‘definidos na natureza’, isto é, para o senhor feudal eles tinham um status semelhante ao das mulheres, seus corpos já não pertenciam a si mesmos, mas ao senhor, como a terra. Esta relação é preservada exatamente no termo alemão com o qual o servo é descrito, ele é Leibeigener , ou seja, alguém cujo corpo (Leib) é a propriedade (Eigentum) de outra pessoa. Mas, apesar dessa passagem da aquisição violenta direta da terra e dos camponeses que trabalhavam nela, a uma relação ‘pacífica’ da violência estrutural ou, o que é o mesmo, a uma relação de dominação entre senhor e servo, o senhor feudal nunca desistiu de seus braços ou seu poder militar para expandir e defender suas terras e suas riquezas, não só contra os inimigos externos, mas também contra rebeliões de dentro. Isto significa que, embora houvesse mecanismos ‘pacíficos’ de controle do trabalho eficaz, durante o feudalismo estas relações de produção foram estabelecidas e mantidas através do monopólio sobre os meios de coerção pela classe dominante. O paradigma social do homem-caçador/guerreiro permaneceu a base e último recurso deste modo de produção.

O mesmo pode ser dito do capitalismo. Quando a acumulação do capital se tornou o motor dominante da atividade produtiva em contraste com a produção de subsistência, o trabalho assalariado se tornou a forma dominante de controle do trabalho. No entanto, essas relações ‘pacíficas’ de produção, com base em mecanismos de coerção econômica (violência estrutural), poderiam ser construídas apenas na base de uma tremenda expansão do modo predatório de aquisição. A aquisição direta e violenta de ouro e prata e outros produtos, principalmente na América hispânica, e de produtores – primeiro os índios da América Latina e mais tarde escravos africanos – provaram ser a atividade mais ‘produtiva’ no que foi descrito como o período de acumulação primitiva.

Assim, o capitalismo não eliminou as antigas formas selvagens de controle sobre a capacidade produtiva humana, mas sim as reforçou e generalizou-as: “A escravidão em grande escala ou o trabalho forçado para a produção do valor do câmbio é uma instituição capitalista proeminente, orientada para o início dos estádios pré-industriais de uma economia mundial capitalista”(Wallerstein, 1974: 88).

Esta instituição também se baseou no monopólio de armas efetivas e na existência de terrenos de criação de ‘gado humano’ suficiente que poderiam ser caçados, apropriados e subjugados. Isso envolve uma redefinição da relação da crescente burguesia europeia à natureza e às mulheres. Enquanto nas relações de produção pré-capitalistas baseavam-se na propriedade da terra, as mulheres e os camponeses eram definidos como ‘terra’ ou partes da Terra, a natureza é identificada com a Mãe Terra e suas plantas, sob o capitalismo inicial, os escravos eram definidos como ‘gado’ e As mulheres como ‘reprodutoras’ deste gado. Vimos que os pastores nômades também definiam as mulheres principalmente como reprodutoras, não de poder de trabalho, mas de herdeiros homens principalmente. Mas o que, fundamentalmente, distingue os patriarcas pastorais anteriores dos primeiros patriarcas capitalistas é o fato de que estes não se preocupam nenhum pouco com a produção da força de trabalho e as ‘criadoras’ dessa força de trabalho. Em primeiro lugar, o capitalista não é um produtor, mas um apropriador, que segue o paradigma da aquisição predatória, a pré-condição para o desenvolvimento das forças de produção capitalistas. Considerando que as classes dominantes entre os pastores e os senhores feudais ainda estavam conscientes de sua própria dependência da natureza, incluindo mulheres (a quem, portanto, tentaram influenciar por magia e religião), a classe capitalista viu-se desde o início como dono e senhor sobre a natureza (cf. Merchant, 1983). Somente agora surge um conceito de natureza que generaliza a relação de dominação do homem-caçador com a natureza. A divisão do mundo que se seguiu definiu certas partes do mundo como ‘natureza’, isto é, selvagem, descontrolada e, portanto, aberta à exploração e aos esforços civilizatórios, e outras como ‘humanas’, ou seja, já controlados e domesticados. Os primeiros capitalistas só estavam interessados ​​no poder muscular dos escravos, sua energia para o trabalho. A natureza para eles era um reservatório de matéria-prima, e as mulheres africanas uma reserva aparentemente inesgotável de energia humana.

A transição das relações de produção baseadas em um padrão de mestre-servidor para um caráter contratual entre capital e trabalho assalariado não teria sido possível sem o uso de violência em grande escala e a ‘definição como natureza explorável’ de vastas áreas do globo e seus habitantes. Isso permitiu que os capitalistas ‘decolassem’ e dessem concessões aos trabalhadores europeus a partir dos saques às colônias e da exploração dos escravos.

De fato, pode-se dizer, no mesmo grau que os trabalhadores do centro europeu adquiriram sua humanidade, isto é, eram ‘humanizados’, ou ‘civilizados’, os trabalhadores – homens e mulheres – das periferias, isto é, Europa Oriental e as colônias, foram ‘naturalizados’.

A ‘pacificação’ dos trabalhadores europeus, o estabelecimento de uma nova forma de controle do trabalho por meio da relação salário, a transformação da violência direta em violência estrutural ou de coerção extra-econômica em coerção econômica, no entanto, necessitava não apenas concessões econômicas especiais, mas também concessões políticas.

Essas concessões políticas não eram, como a maioria das pessoas pensam, a participação do trabalhador masculino no processo democrático, sua ascensão ao status de ‘cidadão’, mas sua participação no paradigma social da classe dominante, ou seja, o modelo caçador/guerreiro. Sua ‘colônia’ ou ‘natureza’, no entanto, não era a África ou a Ásia, mas as mulheres de sua própria classe. E dentro dessa parte da ‘natureza’, cujos limites são definidos pelo casamento e leis de família, ele tem o monopólio sobre os meios de coerção, de violência direta, que, ao nível do estado, as classes dominantes investiram em seus representantes, isto é, o rei e mais tarde os representantes eleitos.

O processo de ‘naturalização’, no entanto, afetou não apenas as colônias como um todo e as mulheres da classe trabalhadora, mas também as mulheres da burguesia foram definidas na natureza como meras criadoras dos herdeiros da classe capitalista. Em contraste com as mulheres africanas, que faziam parte da natureza ‘selvagem’, as mulheres burguesas eram vistas como natureza ‘domesticada’. Sua sexualidade, seus poderes generativos, bem como toda a sua autonomia produtiva, foram suprimidos e estritamente controlados pelos homens de sua classe a quem se tornaram dependentes para sua subsistência. A domesticação das mulheres burguesas, sua transformação em donas de casa, dependentes da renda do marido, tornou-se o modelo da divisão sexual do trabalho sob o capitalismo. Isso era necessário para que se ganhasse controle sobre as capacidades reprodutivas das mulheres, de todas as mulheres. O processo de proletariarização dos homens foi, portanto, acompanhado por um processo de domesticação das mulheres.

Neste processo, a esfera em que a força de trabalho foi reproduzida, a casa e a família, foram ‘definidas na natureza’, mas a natureza privada, domesticada e a fábrica tornou-se o local, para o produção social (‘humana’) e pública.

Assim como o processo de ‘naturalização’ das colônias baseava-se no uso em larga escala da violência direta e da coerção, o processo de domesticação das mulheres europeias (e mais tarde da América do Norte) não era um caso pacífico e idílico. As mulheres não entregaram voluntariamente o controle sobre sua produtividade, sua sexualidade e suas capacidades generativas para seus maridos e para os GRANDES HOMENS (Igreja, Estado). Somente após séculos de ataques mais brutais contra sua autonomia sexual e produtiva, as mulheres europeias se tornaram as donas de casa, domésticas dependentes que hoje são em princípio. A contrapartida das invasões de escravos na África foi a caça às bruxas na Europa. Os dois parecem estar conectados através do mesmo dilema que enfrenta a versão capitalista do homem-caçador: por mais que ele possa tentar reduzir as mulheres a uma condição de produção, à natureza, a ser apropriada e explorada, ele não pode produzir seres humanos, força de trabalho, sem mulheres. As armas dão-lhe a possibilidade de um modo de produção exclusivamente masculino, ou seja, escravidão (ou guerra), que Meilliassoux considera ser o equivalente masculino da reprodução dentro de um sistema de parentesco (Meillassoux 1978: 7), um esforço dos homens de uma certa sociedade para se tornar independente da reprodução das mulheres. Mas esse modo masculino de produção tem suas limitações naturais, particularmente quando os campos de caça para o gado humano se esgotam. Era, portanto, necessário submeter as forças generativas e produtivas das mulheres europeias ao controle patriarcal. Entre os séculos XIV e XVIII, associações de homens e a crescente burguesia urbana conseguiram empurrar artesãs para fora da esfera de produção (Rowbotham 1974, O’Faolain e Martines, 1973). Além disso, durante séculos, milhões de mulheres, principalmente de origem camponesa pobre ou urbana pobre, foram perseguidas, torturadas e finalmente queimadas como bruxas, porque tentaram manter uma certa autonomia sobre seus corpos, especialmente suas forças generativas. O ataque da igreja e do Estado às bruxas visava não só a subordinação da sexualidade feminina como tal, embora isso tenha desempenhado um papel importante, mas contra suas práticas como abortistas e parteiras. A literatura feminista que aparece nos últimos anos dá ampla evidência desta política (Rowbotham, 1974; Becker-Bovenschen-Brackert, 1977; Dross, 1978; Honegger, 1978; Ehrenreich and English, 1973, 1979). Não só eram mulheres artesãs empurradas para fora de seus empregos e suas propriedades confiscadas pelas autoridades da cidade, do estado e da igreja, mas o controle das mulheres sobre a produção de uma nova vida – isto é, sua decisão de dar a luz a uma criança ou de abortar – teve que ser esmagado. Esta guerra contra as mulheres atravessou a Europa durante pelo menos três séculos (Becker-Bovenschen-Brackert, 1977).

A caça às bruxas não só teve o efeito disciplinar direto de controlar o comportamento sexual e reprodutivo das mulheres, mas também estabeleceu a superioridade da produtividade masculina sobre a produtividade feminina. Esses dois processos estão intimamente conectados. Os ideólogos da caça às bruxas não se cansaram de denunciar a natureza feminina como pecadora (o ‘pecado’ é sinônimo de ‘natureza’), sexualmente incontrolável, insaciável e sempre preparada para seduzir o homem virtuoso. É interessante notar que as mulheres ainda não eram vistas como sexualmente passivas ou mesmo como seres assexuais, como foi o caso mais tarde, nos séculos dezenove e vinte. Pelo contrário, sua atividade sexual era vista como uma ameaça para o homem virtuoso, isto é, o homem que quer controlar a pureza de sua prole, os herdeiros de sua propriedade. Portanto, era obrigação do homem garantir a castidade de suas filhas e sua esposa. Como ela é ‘natureza’, ‘pecado’, ela deve estar permanentemente sob sua tutela, ela se tornou uma menor permanente.

Somente os homens são capazes de se tornar adultos no verdadeiro sentido. Para controlar a sexualidade de suas próprias mulheres, os homens foram aconselhados a recorrer a espancamentos e outros dispositivos violentos (Bauer, 1917). Mas todos os ataques diretos e ideológicos sobre a natureza pecaminosa das mulheres também serviram ao propósito de roubar as mulheres de sua autonomia em relação a outras funções economicamente produtivas e estabelecer a hegemonia masculina na maioria das esferas econômica, política e cultural.

A autonomia sexual está intimamente ligada à autonomia econômica. O caso da profissionalização de médicos do sexo masculino, que expulsaram e denunciaram curandeiras e parteiras como bruxas, é a melhor documentação desse ataque na atividade produtiva feminina. A nova classe capitalista aumentou a submissão das mulheres (Rowbotham, 1974; Ehrenreich e English, 1979).

No final deste ‘processo civilizador’, temos as mulheres que são disciplinadas o suficiente para trabalhar como donas de casa para um homem, ou como trabalhadoras assalariadas para um capitalista, ou como ambos. Elas aprenderam a transformar a violência real que foi utilizada por séculos com elas por outros contra si mesmas, e internalizá-la; elas definiram como voluntariedade, como amor, a necessária mistificação ideológica de sua própria auto-repressão (Bock/Duden, 1977). Os  adereços institucionais e ideológicos necessários para manter essa auto-repressão foram fornecidos pela igreja, o Estado e pela família. As mulheres foram confinadas a esta instituição pela organização do processo trabalhista (divisão de agregados familiares do local de trabalho), por lei, e pela dependência econômica do homem como o chamado ‘provedor da família‘.

Seria uma ilusão, no entanto, pensar que com o pleno desenvolvimento do capitalismo os traços bárbaros de seus começos sangrentos desapareceriam, e que as relações de produção capitalistas plenamente desenvolvidas significariam o fim do paradigma social do homem-caçador/guerreiro e a transformação da coerção extra-econômica em coerção econômica.

Pelo contrário, para a manutenção de uma divisão de trabalho assimétrica e exploradora em um plano nacional e internacional – os dois estão interligados -, o capitalismo de pleno direito precisa de uma maquinaria estatal sempre crescente de repressão e de uma concentração assustadora de meios de destruição e coerção. Nenhum dos estados capitalistas acabou com a polícia ou com os militares; Eles são, como entre os caçadores, guerreiros e nômades guerreiros, ainda os setores mais ‘produtivos’, porque através do monopólio da violência agora legalizada, esses estados são capazes de conter efetivamente qualquer rebelião entre os trabalhadores dentro de sua órbita e também forçar produtores de subsistência e áreas periféricas inteiras a produzir para um processo de acumulação globalmente interligado. Embora a exploração para o lucro do trabalho humano em escala mundial assumiu principalmente a forma ‘racional’ do intercâmbio desigual, a manutenção da relação desigual é garantida em todos os lugares, em última análise, por meio de coerção direta, pelas armas.

Para resumir, podemos dizer que as várias formas de divisões hierárquicas assimétricas do trabalho que se desenvolveram ao longo da história até a fase em que o mundo inteiro está  estruturado agora, em um sistema desigual de divisão do trabalho sob os ditames da acumulação de capital, são baseados no paradigma social do caçador/guerreiro predatório, que, sem produzir, é capaz, por meio de armas, de apropriar-se e subordinar outros produtores, suas forças produtivas e seus produtos.

Essa relação extrativista, não recíproca, exploradora e de objeto com a natureza, primeiramente estabelecida entre homens e mulheres e homens e natureza, permaneceu como modelo para todos os outros modos de produção patriarcais, incluindo o capitalismo, que o desenvolveu à sua forma mais geral e sofisticada. A característica desse modelo é que aqueles que controlam o processo de produção e os produtos são eles próprios não produtores, mas apropriadores.

A sua chamada produtividade pressupõe a existência e a submissão de outras, e, em última análise, das mulheres produtoras. Como Wallerstein diz: “…grosseiramente, aqueles que criam mão-de-obra sustentam aqueles que cultivam alimentos que sustentam aqueles que cultivam outras matérias-primas que sustentam os envolvidos na produção industrial” (Wallerstein 1977: 86). O que Wallerstein se esquece de mencionar, é que todos estes sustentam os não-produtores, que controlam todo esse processo em última análise por meio de armas, porque no coração deste paradigma reside o fato de que os não-produtores se apropriam e consomem (ou investem) o que os outros produziram. O Homem-caçador é basicamente um parasita, não um produtor.

MIES, Maria. Social Origins of the Sexual Division of Labour. In: Patriarchy and Accumulation on a World Scale: Women in the International Division of Labour. London: Zed Books, 1986. 

*Artigo revisado por Bruna Rangel

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