Em comparação com o Brasil, a interrupção da gravidez na Alemanha é muito mais acessível, pois está descriminalizada em diversos casos. No entanto, o aborto ainda é crime em algumas situações. Segundo a legislação alemã, a prática pode ser punida com pena de prisão da mulher grávida ou do médico, como veremos mais adiante. Isso está disposto nos parágrafos 218-220 do Código Penal alemão (Strafgesetzbuch), onde se localizam os “Crimes contra a vida”, como assassinato e homicídio. Essa ordem tem razões históricas.

 

Descriminalização: graças ao trabalho feminista

 

No início da década de 1970, houve um forte debate sobre o parágrafo 218 do Código Penal alemão, que penalizou o crime de aborto com prisão na Alemanha Ocidental. Abortos só eram despenalizados em casos de necessidade médica. Fora isso, o direito de abortar não era garantido nem em casos de estupro nem por escolha da mulher grávida. Sobre as discussões da época, vale destacar o artigo da revista semanal Stern intitulado “Fizemos um aborto”. Nele, 374 mulheres, inclusive mulheres famosas, confessaram ter abortado. A ideia surgiu de uma ação similar realizada na França.

Como resultado dessas ações, em 1976 o aborto foi descriminalizado em casos específicos. Ou seja: embora a proibição para a prática permaneça, é excluída a ilicitude do ato caso tenha sido realizado por indicação médica, razões éticas, sociais ou quando a gestação resulta de estupro. Na mesma época, na República Democrática Alemã (RDA), mulheres tinham o direito de escolher se queriam abortar ou não até a décima semana de gravidez.

Em 1992, após a reunificação, foram combinadas as regulamentações, com a insistência das mulheres da RDA. A partir dessa época, foi garantido por lei o direito da mulher grávida de poder escolher se quer abortar até a décima semana de gravidez. Depois desse período, ainda é possível realizar o procedimento, se houver indicação médica.

A conclusão geral é de que o direito atual foi, em grande medida, um sucesso conquistado pelas lutas feministas.

 

A crítica feminista da situação atual: quais os obstáculos para fazer um aborto?

 

Hoje, realizar um aborto na Alemanha não é considerado crime nas condições citadas anteriormente. A lei também dispõe de algumas obrigações para que ele seja realizado. Assim, o aborto tem que ser feito até a décima segunda semana de gestação e as gestantes devem passar por um aconselhamento com uma pessoa ou entidade – que não pode ser a mesma que efetua o procedimento de realização do aborto. A consulta deve ocorrer três dias antes do procedimento desejado do aborto.

Uma das críticas à regulamentação atual é que essas obrigações limitam o acesso ao aborto, por vezes impossibilitando-o. O texto da lei alemã estabelece que:

“O aconselhamento serve para proteger a vida por nascer. Tem que ser guiado por um esforço para encorajar a mulher a continuar a gravidez e para abrir suas perspectivas para uma vida com a criança; ele deve ajudá-la a chegar a uma decisão responsável e consciente”.

Assim, o “esforço para encorajar a mulher a continuar a gravidez” pode se traduzir, na prática, em assédio por parte dos profissionais de saúde. A ativista Sarah Diehl, em seu livro “Deproduktion” (= “Deprodução”), relata que a mulher que deseja fazer um aborto na Alemanha precisa preencher um formulário na consulta obrigatória, três dias antes do procedimento. No documento, entre outras perguntas, deve necessariamente afirmar o motivo pelo qual quer realizar o aborto. Segundo Sarah, todas as opções do formulário remetem à impossibilidade de criar um filho, como falta de condições financeiras. Não existe a opção de marcar “porque eu não quero ser mãe”, “porque não quero levar adiante essa gestação” ou “porque eu quero fazer o aborto”.  A ativista vê nisso uma forma de deslegitimar o direito de escolha da mulher, pois o pleno desejo de recusar a gravidez não está sendo afirmado pelo questionário.

 

Fotografia de Sarah, uma mulher branca de franja e cabelos ondulados. Ela usa uma blusa preta e uma calça marrom e está sentada em um banco de madeira, ao fundo uma árvore e um arbusto.

Imagem: Sarah Diehl, ativista e autora do livro “Deproduktion”

 

Embora o aborto seja juridicamente permitido na Alemanha, nem sempre é acessível a todas as mulheres que desejam fazê-lo. Algumas clínicas, por exemplo, se recusam a realizar o procedimento. É o caso do hospital distrital de Schaumburg, onde mulheres só podem conduzir um aborto quando o procedimento é considerado medicamente necessário.

Na cidade de Colônia, em 2012, uma vítima de estupro de 25 anos foi expulsa de uma clínica católica quando queria fazer um aborto. Em Dannenberg, em 2017, o médico-chefe de Ginecologia da única clínica que realizava o procedimento na região de Lüchow-Dannenberg afirmou que não iria mais fazê-lo por causa de sua fé. Somente após longas discussões, o operador do hospital conseguiu reverter a situação.

Em alguns municípios alemães, as mulheres precisam viajar até 150 quilômetros para realizar um aborto – uma distância longa no país, que tem quase a mesma extensão territorial do Mato Grosso do Sul.

“Sem carro, elas têm que se sentar por horas no trem, antes e depois da cirurgia. Algumas mudam de lugar várias vezes ou tomam um táxi para os últimos quilômetros, porque não há ônibus. Para muitas pessoas, este é um problema financeiro: as mulheres de baixa renda obtêm o direito de abortar e o governo assume o reembolso do procedimento, mas não dos custos de viagem”, afirma a jornalista Eiken Bruhn em um artigo para o jornal “taz”.

A acessibilidade insuficiente também está sendo criticada pelas blogueiras de Mädchenmannschaft: “Sob a atual estrutura legal do acesso ao aborto: é sempre precária, [o aborto é] sempre inseguro, pois, o regulamento atual e a consulta obrigatória também criam barreiras que servem, principalmente, à má-fé”, escreve a blogueira Charlott Schönwetter.

Além disso, o aborto custa de 350 a 590 euros (1290-2180 reais). Mulheres com renda baixa podem ser reembolsadas pelo próprio plano de saúde, mas precisam fazer a solicitação antes do procedimento médico e têm que ter capacidade financeira para o pagamento antecipado. Assim, apesar de poderem ter os 350 euros reembolsados, muitas mulheres não tem como arcar com esse valor.

Na Alemanha, ter um plano de saúde é obrigatório, mas é estimado que, dos 81 milhões de habitantes do país, até 800 mil pessoas não tenham isso assegurado. No seu livro §218: perspectivas feministas sobre o debate do aborto na Alemanha, a pesquisadora Katja Krolznik-Matthei afirma que o acesso à informação é mais difícil para mulheres que não falam alemão e/ou que estão em situação ilegal no país (como, por exemplo, mulheres migrantes que procuram asilo).

Criminalização do aborto

 

Em 2015, um total de 102 denúncias foram recebidas pela polícia alemã, na forma do §218 do Código Penal. As denúncias recebidas são relativas ou a médicos que realizaram o procedimento ou a mulheres que abortaram e que, em ambos casos,  não seguiram a lei.

De todas essas denúncias, sete acabaram em julgamentos. Das sete pessoas julgadas, cinco são homens. Quatro foram condenados, sendo que uma pessoa foi condenada em 2015 devido ao anúncio de abortos que é regularizado num outro parágrafo do Código Penal (§219).

Até a finalização deste artigo, nem o Instituto Federal da Polícia (Bundeskriminalamt) nem o Instituto Federal de Estatística da Alemanha deram informações mais profundas sobre os casos à Não Me Kahlo. Especialmente, não foi respondido a pergunta sobre quantos dos casos punidos condenaram mulheres que abortaram.

No entanto, a professora de Direito e Gênero da FernUniversität Hagen, Prof. Dr. Ulrike Lembke, nos forneceu algumas informações adicionais sobre alguns casos ocorridos no país. Ela afirma que já houveram repetidos atos de violência contra mulheres grávidas que resultaram em abortos involuntários, como “em 2015, quando quatro cúmplices mataram uma mulher que engravidou de um dos sujeitos”, conta, “eles foram condenados por assassinato, sequestro e também por aborto na forma do §218”.

Quanto à condenação de médicos, a professora afirma que “em geral, eu suponho que não há quase nenhuma condenação de médicos”. Ela lembra, por exemplo, de uma decisão do Tribunal Tribunal Regional Superior de Oldenburg que, em 2013, condenou um médico por “auxílio proibido aborto” por ter indicado a página virtual de uma clínica holandesa – onde o aborto é completamente legalizado – à uma paciente grávida de 17 semanas que desejava realizar o procedimento.

“Abortos são praticados ilegalmente em condições inimagináveis – isto é, felizmente, muito raro, mas ainda acontece”, diz. “A condenação de uma mulher grávida não me é conhecido, pelo menos, nos últimos quinze anos“, conclui.

 

Iniciativas internacionais na Alemanha

 

Além da crítica feminista ao acesso limitado ao aborto na Alemanha, há várias iniciativas internacionais que facilitam a interrupção da gravidez. Em particular, oferecem apoio às mulheres grávidas em países onde o aborto é menos acessível do que na Alemanha, como Polônia, Malta e Irlanda.

Exemplos são as Ciocia Basia, um grupo ativista que ajuda mulheres grávidas do país vizinho, Polônia, a realizar abortos em Berlim. Elas oferecem assistência social confidencial e sem julgamentos, traduções e, se necessário, lugares para dormir. Há também a Rede de Solidariedade Berlim-Irlanda, que organiza atos e se solidariza com as mulheres involuntariamente grávidas na Irlanda.

Além das ativistas na Alemanha, existem, na União Europeia, as organizações não governamentais Women on Web e Women help Women que oferecem acesso a pílulas e aconselhamento virtual. Ambas ajudam mulheres grávidas que procuram abortos e vivem em países onde a prática é criminalizada.

 

Ameaça da Direita

 

A situação jurídica do aborto na Alemanha é ameaçada pelo crescimento das organizações e dos partidos de direita. Em 2013, foi fundado o partido de direita populista “Alternative für Deutschland” (AfD), que declarou-se antifeminista. A presidente da entidade, Frauke Petry, exigiu, em 2014, que houvesse uma votação popular sobre a lei do aborto.

Fotografia de Frauke, uma mulher branca de olhos verdes, cabelos bem curtos, vestida de terno e blusa social.

Imagem: Frauke Petry, presidente do partido “Alternativa para Alemanha”

 

O AfD já tem 147 de 1.855 assentos nos parlamentos estaduais alemães. Nas projeções para a eleição federal, a ser realizada em setembro de 2017, ele alcança de 7,5% a 10% dos votos. A “Marcha pela Vida”, uma passeata contra o aborto, tem sido realizada desde 2002, em Berlim, e desde 2008 ocorre anualmente. Em 2016, 6.000 pessoas participaram, segundo os cálculos da polícia local. A Marcha foi acompanhada por manifestações feministas. Não apenas em Berlim isso ocorre, outras cidades alemãs têm suas próprias “Marchas pela Vida”. A adesão a esses atos ocorre pois o AfD e movimentos extraparlamentares que também têm um posicionamento antifeminista vivenciam ascensão no país.

O aborto descriminalizado na Alemanha foi conquistado por lutas feministas mas, apesar de a situação na Alemanha ser privilegiada se comparada à de outros países, ainda não existe acesso ao aborto para todas as mulheres que desejam realizá-lo dentro do país. Em tempos do crescimento global de pensamentos de direita, não é um direito que está seguro e sua fragilidade está constantemente exposta.

 

*Caren Miesenberger é jornalista freelancer e geógrafa. Mora em Hamburgo e no Rio de Janeiro.

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