Os primórdios da luta pela emancipação feminina, hoje generalizadamente denominada enquanto Movimento Feminista, são geralmente associadosàs mobilizações de grupos de mulheres no Reino Unido em fins do século XVIII e início do XIX que, por meio de uma luta legalista, buscavam a possibilidade de existirem política e socialmente por meio do sufrágio. A luta das sufragistas, como se convencionou chamá-las, tornou-se então o primeiro marco da história das movimentações que visavam a ampliação dos direitos femininos.

Sufragistas segurando um cartaz escrito: "votes for women"

Annie Kenney e Christabel Pankhurst

É conhecido, no entanto, que o Movimento Feminista em seu caráter de atuação social e político, sempre esteve longe de se caracterizar pela homogeneidade, com as diferentes teorias, pautas e desejos que nele existem ou, muito menos, pelo alcance universal de mulheres. Em contrapartida, o recorte racial e de classe proposto atualmente sobretudo pelos feminismos negro e marxista busca aproximar e integrar ao debates promovidos pelo movimento questões que compreendam as vivências de mulheres em situações de maior vulnerabilidade social, uma vez que não “levar em conta elementos como raça, classe, renda ou orientação sexual, seria silenciar (…) a multiplicidade de experiências específicas que compõem a condição feminina”[1].

Se é possível, portanto, afirmar que o feminismo de outrora foi indubitavelmente composto, em larga escala, por mulheres brancas pertencentes a classes sociais privilegiadas, o que o presente ensaio buscará refletir é justamente o porquê mulheres ocupantes de camadas marginalizadas da sociedade – aqui, especialmente as mulheres negras – esperaram tanto para alcançarem a legitimidade não só no âmbito das lutas sociais mas em grande parte dos espaços que elas pretenderam integrar.

Sabe-se que a cólera da população negra não se iniciou com a emergência da ideia de “raça”. No entanto, como apresenta a historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, a ascensão dos conceitos raciais serviu para naturalizar, em termos biológicos, as diferenças. Dessa forma, é importante pensar como o processo teórico que resultou na utilização do conceito de raça como uma espécie de hierarquização dos povos durante o século XIX (e seus reflexos que se perpetuaram apesar da ação do tempo) atuou enquanto retardador nesse processo constante que é a busca pela emancipação da mulher negra e o reconhecimento de suas intelectualidades e moralidades. Nesse sentido, pensar-se-á, ainda, a proeminência do trabalho da escritora e ativista nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie (1977 – hoje) num contexto de difusão das ideias de representatividade para pensar como sua obra poderia atuar no que a pedagoga brasileira Nilma Lino Gomes chamará de “descolonização dos currículos”.

 

Fotografia da escritora Chimamanda Ngozi Adichie, ela é uma mulher negra jovem, está com os cabelos trançados presos em um coque e as mãos cruzadas apoiam seu rosto.

Chimamanda Ngozi Adichie

 

Como apresenta o Prof. Dr. Kabengele Munanga (USP) em seu texto Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia, o ser humano parece ter desenvolvido uma “aptidão cognitiva de classificação” que aplicou-se, inclusive, para classificar a diversidade humana. Essas divisões, por sua vez, foram estabelecidas a partir de alguns critérios baseados na relação diferença-semelhança e, dessa forma, “no século XVIII, a cor da pele foi considerada como um critério fundamental e divisor d’água entre as chamadas raças”[2]. Apesar das contribuições de disciplinas como a antropologia, biologia e sociologia em meados de 1950 apontarem para a inexistência de “raças” e, portanto, as mesmas estarem na imaginação dos seres humanos e não na cor da pele[3], se faz necessário, aqui, transferir-se para um contexto onde teorias defendiam mais do que a pura divisão, mas a hierarquização das pessoas de acordo com suas “raças”. Ao ocuparem lugares de destaque, as referidas teorias não só influenciavam as mentalidades no âmbito epistemológico, mas possuíam papéis proeminentes nos campos sociais e políticos.

Nesse sentido, Lilia Moritz Schwarcz em seu livro O Espetáculo das Raças irá afirmar que os pensamentos que nascem no seio do século das Luzes, isto é, no século XVIII e que pregavam a unidade da humanidade, serão contrapostos pelas teorias raciais do século XIX[4]. Será no início do século XIX, portanto, que irá se delinear

certa reorientação intelectual, uma reação ao Iluminismo em sua visão unitária da humanidade (…). O discurso racial surgia como variante sobre a cidadania, já que no interior desses novos modelos discorria-se mais sobre as determinações do grupo biológico do que sobre o arbítrio do indivíduo entendido como “um resultado, uma reificação dos atributos específicos da sua raça”[5].

Segundo Munanga, uma das formas de definição do racismo é justamente a partir da tendência que consiste em entender as características intelectuais e morais de um determinado grupo enquanto consequências diretas de suas características físicas ou biológicas[6]. Nesse sentido, os negros, assim como os ameríndios, por exemplo, estariam determinados a uma posição inferior não só no âmbito social, mas, por conta de suas “raças”, estariam fadados a uma degeneração intelectual e moral. Degeneração esta responsável pela teórica incapacidade de produção de conhecimento e de participação política dos negros em movimentos sociais, o que transforma toda luta política e social dessas populações, bem como suas produções artísticas, culturais e intelectuais, em ações marginais.

Dessa maneira, a suposta falha no intelecto utilizada para compreender o retardamento da inserção da mulher negra como protagonista de suas lutas só pode ser assumida junto à uma série de outros fatores como, por exemplo, as condições materiais de vida reservadas a essas mulheres, marcadas, sobretudo, pela segregação, marginalidade e estratificação social. É importante lembrar que esses aspectos periféricos eram legitimados pelas teorias racistas do século XIX e, com isso, observa-se que teoria e realidade se cruzam constantemente de forma a, entre outros objetivos, manter o status quo de um sistema patriarcal e segregatório.

É curioso, por outro lado, perceber que as reivindicações e necessidades das mulheres negras não eram invisibilizadas somente no âmbito de um sistema hegemônico. De acordo com Luis Felipe Miguel (2014), mesmo dentro do movimento negro estadunidense, desde o século XIX com a luta pelo exercício do voto pelos negros, as mulheres ficaram de fora, apesar de ações como as de Elizabeth Cady Staton que “acreditava que a causa do sufrágio universal seria enfraquecida e instou as lideranças negras a recusar o voto enquanto as mulheres não fossem contempladas”[7]. A situação não se mostrou diferente no seio do movimento negro que surge também nos Estados Unidos em meados do século XX que, de maneira geral, além de não considerarem significativamente as pautas das mulheres negras, compartilhavam, ainda, um machismo explícito. Dessa forma, percebe-se que mesmo os espaços que poderiam ser imaginados como propensos a adesão das reivindicações das mulheres negras, como o movimento feminista ou o movimento negro, não o faz de maneira eficaz em determinados momentos da história. Muitas vezes, portanto, as mulheres negras se encontraram numa espécie de cruzada entre racismo e machismo e precisaram se organizar sozinhas em prol das próprias demandas e sistemas de ideias.

Sendo assim, é interessante quando, na contramão de todo racismo e misoginia, surgem mulheres que subvertem os estigmas sociais e estereótipos construídos historicamente, tornando-se referências naquilo que se propuseram fazer. Ao lado de tantas teóricas e militantes negras, pode-se pensar atualmente na escritora feminista Chimamanda Ngozi Adichie como um expoente na luta pela difusão da causa feminista. Seus livros como Sejamos Todos Feministas ou Para Educar Crianças Feministas destacam-se pela linguagem acessível e as ideias transmitidas de forma simples, com a pretensão de atrair a leitura do maior número possível de pessoas.

É possível pensar na obra de uma escritora nigeriana como a Chimamanda Ngozi Adichie como um ponto vital na fomentação do que a pedagoga brasileira Nilma Lino Gomes chamará de “descolonização dos currículos”. Nesse sentido, é curioso observar que o sucesso dos trabalhos de Chimamanda, enquanto romancista ou palestrante, por si só, representam a desconstrução da ideia preconceituosa que nem mulheres e nem negros seriam capazes de obterem êxito naquilo que se propõem fazer, sobretudo nos âmbitos artísticos e intelectuais. Além disso, supondo que um dos trabalhos da escritora fossem adotados enquanto leitura obrigatória em escolas brasileiras, essa adoção seria uma forma singela de rompimento com os laços eurocêntricos e ocidentais que os currículos nacionais ainda estão estruturalmente ancorados. Justamente pelo caráter estrutural, somente a adoção de determinados livros como os da nigeriana, não seria capaz de, sozinha, “descolonizar os currículos”, mas, ainda assim, transgrediria o eixo tradicional de referências.

As referências pessoais, sendo as lentes com as quais os seres humanos enxergam o mundo, surgem inconscientemente nos discursos proferidos pelos mesmos. Chimamanda Ngozi Adichie, por exemplo, ao apresentar à sua amiga sugestões para educar sua criança como feminista, partirá de parâmetros diferentes dos que comumente partiriam aqueles pertencentes à uma cultura ocidentalizada. Para fins de exemplificação, a autora aconselhará sua colega na carta que deu origem ao manifesto Para Educar Crianças Feministas, a dizer para cunhada que uma família que possui dupla fonte de renda, advinda de ambos os/as integrantes do casal, “constitui a verdadeira tradição igbo, não só porque as mães plantavam e comercializavam antes do colonialismo britânico, mas também porque o comércio era uma atividade exclusivamente feminina em algumas partes da Igbolândia”[8].

Por último, é exatamente sobre as referências – e a importância de diversificá-las -, que os debates sobre a construção de novos paradigmas pedagógicos devem se pautar. Citando a pesquisadora Maria Paula Menezes, Nilma Lino Gomes apresentará que

“a ligação indelével entre os conceitos de bárbaro e de civilizado produziu um mapa moderno do mundo onde a humanidade é comparada em função de uma referência única, considerada universal. (…) A organização do mundo em torno desses conceitos espaciais é parte central da forma como hoje percebemos o mundo, o que justifica plenamente o seu significado histórico – o poder para moldar a história”. [9]

A visualização popular dos aspectos supracitados são primordiais para a falência total da visão de mulheres negras ou qualquer tipo de integrante de grupos sociais historicamente marginalizados pela sociedade não serem capazes, por conta de propensões biológicas estigmatizadas ou suas “raças”, a produzirem com excelência qualquer tipo de atividade que se propuserem realizar. Para tanto, é vital entender a diversificação das referências como ampliadora do entendimento do mundo e, dessa forma, ferramenta para o extermínio dos reflexos das teorias que subjulgaram o valor moral e intelectual de determinados grupos étnicos.

 

Ana Clara Pecis é carioca e estuda História na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Já estagiou em escola, em arquivo e atualmente tem se dedicado na produção de conteúdos online sobre História, Literatura e Atualidades no Portal História Guardada.

 

BIBLIOGRAFIA

 

ADICHIE, C. N. Para Educar Crianças Feministas: um manifesto. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

DAFLON, Verônica Toste. Mestiçagem, cores e raças. Tão longe, tão perto: identidades, discriminação e estereótipos de pretos e pardos no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X, 2017.

GOMES, N. L. Relações Étnico-raciais, educação, e descolonização dos currículos. Currículo sem Fronteiras, v. 12, n.1, pp. 98-109, 2012.

MIGUEL, Luis Felipe. A Identidade e a Diferença. In: BIROLI, F. & MIGUEL L. F. Feminismo e Política: uma introdução. São Paulo: Boitempo, 2014.

MUNANGA, K. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. In: 3º Seminário Nacional Relações Raciais e Educação. Rio de Janeiro, 2003.

PINTO, C. R. J. Feminismo, História e Poder. Revista de Sociologia e Política, v. 18, nº 36, pp. 15-23, 2010.

SCHWARCZ, Lilia Moritz Schwarcz. Uma história de “diferenças e desigualdades”: as doutrinas raciais do século XIX. O espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870 – 1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

 

[1] MIGUEL, 2014, p. 89.

[2] MUNANGA, 2003, p. 2.

[3] DAFLON, 2017, p. 25.

[4] SCHWARCZ, 1993, p. 58.

[5] SCHWARCZ, 1993, p. 63.

[6] MUNANGA, 2003, p. 5.

[7] MIGUEL, 2014, p. 88.

[8] CHIMAMANDA, 2017, p. 8.

[9] GOMES, 2012,  p. 106.

 

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