Quando, entre 1915 e 1923, ocorreu o genocídio armênio pelas mãos do Império Turco-Otomano, a maioria dos sobreviventes do massacre foram mulheres e crianças. Mesmo assim, a literatura histórica sobre o assunto por muitos anos excluiu os relatos, as experiências e a presença dessas mulheres tanto como sobreviventes do genocídio, quanto como a exclusão delas na reconstrução da identidade armênia. Dado esses fatores, esse texto é fruto de leituras de artigos que se propuseram a estudar e dar mais visibilidade ao papel da mulher em meio ao quadro socio-histórico da época.

O genocídio foi sentido de forma diferente por homens e mulheres armênios, pois cada gênero recebeu um tratamento distinto pelos turcos. Enquanto que o destino dos homens era a urgente deportação, em condições degradantes, para seu país natal, as mulheres, devido a alguns oficiais que burlaram a ordem de deportação, foram obrigadas a ficar no território Turco-Otomano para passarem por um violento processo de assimilação. Logo no estado inicial do genocídio, a intimidação sexual direcionada às mulheres armênias já expõe um vislumbre de como iria se estruturar a política do massacre para com elas. As ameaças que essas mulheres recebiam, ameaças que muitas vezes se concretizavam, eram direcionadas a violação de seus corpos por meio do estupro e/ou do abuso físico. Essa foi uma tática de desumanização utilizada pelos turcos como modo de demonstrar sua dominância sobre um grupo subordinado a eles, de forma que atacavam diretamente a integridade das armênias para, enfim, atacar a nação armênia. Mulheres que tinham familiares participando da resistência se tornaram alvos imediatos dos turcos, sendo frequentemente abusadas como forma de intimidar e tentar enfraquecer os grupos resistentes. Tanto que, caso fosse apanhada a esposa de algum líder, essa recebia penas mais duras quando condenada judicialmente. Esse ponto revela mais uma das faces do genocídio armênio, o envolvimento nítido de oficiais do governo na concretização do massacre.

 

magem do Instituto-Museu do Genocídio Armênio, na qual se vê um grupo de armênios enforcados pelas forças otomanas em junho de 1915.

 

Os estudos históricos deixam claro que o governo turco apoiou e, inclusive, foi impetuoso incentivador dos ataques aos armênios, e suas razões para tal vão além do ódio racista, pois esse episódio também foi usado como oportunidade de enriquecimento. Assim que os homens armênios eram deportados, os oficiais aproveitavam esse momento de fragilidade e saqueavam os bens das crianças e das mulheres que ficaram no território e, depois, as levavam com eles. As meninas e as mulheres armênias eram separadas em categorias, como “feia” e “bonita”, e vendidas para determinado fim de acordo com a classificação que recebiam: as “feias” eram destinadas ao trabalho escravo ou a prostituição, enquantos as “bonitas” eram destinadas a casamentos arranjados. Para eles e para a população do império Turco-Otomano, era mais interessante casar com uma armênia porque isso significava que eles ganhavam direito sobre todas as propriedades da família da mulher e não precisavam pagar o dote, hábito que é obrigatório em um casamento entre muçulmanos. Portanto, mais do que perpetuar a ideologia de assimilação, incorporar as armênias a nação turca era um meio de obter riqueza material. O relato abaixo oferece um vislumbre do que foi esse momento:

 

“Os soldados estavam empurrando na frente deles 300 ou 400 meninas e mulheres armênias nuas. Estas foram colocados em leilão e todo o lote vendido, alguns por dois, três e quatro francos. Apenas os maometanos podiam comprar. O vendedor não parava de exclamar: ‘Alegrai-vos, ó fiéis, pela vergonha dos cristãos’ ” (DERDERIAN, 2005 – tradução livre)

 

Além disso, o governo turco também praticava tortura psicológica nessas mulheres. Prometiam as esposas armênias que a família seria reunida novamente após o processo de deportação, porém, na verdade, os maridos eram mortos e ninguém as comunicava sobre isso. Essa promessa do reencontro resultou numa falta de articulação entre as armênias que as impediu de formarem uma resistência própria, pois acreditavam que logo estariam seguras com seus parentes. Ou seja, além de fragilizadas por terem sido recém-separadas de seus familiares, também estavam dispersas na questão de elaborar uma reação a esse momento, de modo que os turcos ganharam ainda mais força para prosseguirem (e realizarem) o genocídio e a assimilação forçada dessas mulheres. Tanto que as grávidas e/ou mães recentes eram vítimas de espancamentos com o intuito de causar abortos e debilitar o corpo da mãe, maneira que o império Turco-Otomano utilizava para impedir a continuidade da geração armênia em território turco.

 

 

Mas não foram apenas os turcos que contribuíram com o sofrimento dessas mulheres. É somente em 1917 que as famílias armênias foram em busca da repatriação de suas filhas, esposas, mães, irmãs, sobrinhas, etc, que ficaram para trás. Essa ideia de trazer as mulheres sobreviventes para a Armênia bate com o período ideológico da reconstrução da identidade nacional, que tem como uma de suas bases a exclusão de todo e qualquer elemento turco da cultura armênia. Então, a integração dos órfãos e das mulheres foi penosa, porque eles eram obrigados a passar pelo processo de “limpeza”, isto é, passar por um procedimento de retirada de influências turcas em seus modos de ser. Essa ação significou um arrefecimento no contexto de repatriação, pois uma de suas consequências foi o abandono das mulheres armênias de sua comunidade nacional, afinal muitas não se viam como “limpas” o suficiente para participarem da dinâmica social armênia por terem sido casadas e/ou terem filhos com turcos. Portanto, não era incomum que mulheres resgatadas optassem por continuar vivendo com sua família islâmica ao invés de serem repatriadas e os motivos eram diversos.

As autoridades da Síria não permitiam que os filhos de armênias nascidos na Turquia fossem repatriados, ou seja, obrigavam as mães a abandoná-los caso optassem por voltar para seu país natal. E a Armênia apoiou essa decisão, pois acreditava que esses filhos, na verdade, simbolizavam a perpetuação do genocídio e não os queriam em seu território. Isso leva a um outro fator de muitas não desejarem voltar: a colaboração da sociedade armênia, de certa forma, na marginalização da mulher repatriada. Várias tinham sido prostitutas ou casadas com islâmicos e, mesmo sendo condições que não ocorreram por escolhas delas, mas porque foram impostas pelos turcos, essas mulheres eram vista por um prisma negativo e excluídas de participar da reconstrução da identidade nacional da Armênia. E não era uma exclusão velada, era explícita. Muitos líderes que compunham bases de apoio à repatriação das mulheres concordavam que elas não tinham espaço na composição cultural da comunidade armênia e não faziam muitos esforços para que elas fossem reintegradas. Esse pensamento era declarado abertamente por quem concordava com tal postura:

“Se meninas e mulheres mais velhas quiserem vir, não há problema. Se eles não vierem, ainda não há problema: elas fazem bem em ficar onde estão. Elas não são úteis para nós e podem até ser prejudiciais. Tenho visto muitas que já são adultas e não vêm de boa vontade.”

(Com respeito aos esforços para recuperar as mulheres armênias de famílias muçulmanas na Síria, ele [Mikayel Natanian] escreve, em uma carta datada de junho de 1919) (tradução livre)

 

A grande maioria das meninas e das mulheres armênias já se sentiam envergonhadas pela vida que foram obrigadas a levar enquanto estavam a mercê do império Turco-Otomano, e o governo armênio, ao permitir tais declarações, reforça ainda mais o sentimento de vexame. Até porque, além dos motivos citados ao longo desse texto, a nova identidade armênia estava sendo construída em cima do estereótipo de que a mulher nacional ideal é aquela que pega em armas para defender seu país e se suicida antes de ser pega por um turco. Logo, não havia espaço na concepção identitária e nem na sociedade para a mulher armênia sobrevivente. O sofrimento, então, era duplo: de um lado, coisificadas e violentadas pelos muçulmanos, por outro lado abandonadas por seu país natal.

Concluindo, o presente texto deixa explícito que o genocídio armênio foi sentido e experienciado de modo diferente por cada gênero. O estudo dessa diferença se descobre como um elemento importantíssimo para entender o contexto histórico-social desse período, pois leva o estudante a refletir acerca de como a sociedade turca e a sociedade armênia lidaram com a questão das mulheres sobreviventes, de modo que muitos aspectos da cultura de cada um são revelados. Além disso, investigar a história dessas sobreviventes é uma forma de perpetuar e honrar suas memórias e seu legado humano que, por muito tempo, foram ignorados.

 

Referências bibliográficas

BEUKIAN, Sevan. Motherhood as Armenianness: Expressions of Femininity in the Making of Armenian National Identity. Studies In Ethnicity And Nationalism, Não Informado, v. 14, n. 2, p. 247-269, 2014.

DERDERIAN, K.. Common Fate, Different Experience: gender-specific aspects of the armenian genocide, 1915-1917. Gender-Specific Aspects of the Armenian Genocide, 1915-1917. Holocaust And Genocide Studies, [s.l.], v. 19, n. 1, p. 1-25, 1 mar. 2005. Oxford University Press (OUP). http://dx.doi.org/10.1093/hgs/dci001.

TACHJIAN, Vahé. Gender, nationalism, exclusion: the reintegration process of female survivors of the Armenian genocide. Asen/blackwell Publishing Ltd, Berlin, p. 60-80, 2009.

 

Letícia Saracini Duarte. Graduanda em Letras pela Universidade de São Paulo, revisora e eterna estudante.

 

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