Em 2015, o burburinho do Oscar trouxe consigo diversos questionamentos acerca da representatividade das mulheres na indústria cinematográfica americana. Campanhas como o #AskHerMore – apoiado por diversas atrizes cansadas de ver seus colegas homens receberem perguntas profundas sobre suas carreiras enquanto elas eram forçadas a falar de seus vestidos –, matérias sobre a predominância do homem branco na Academia e o discurso da premiada Patricia Arquette foram amplamente reproduzidos nas redes sociais, expondo o machismo em Hollywood. Muito tem se falado, portanto, da necessidade de criar-se um ambiente mais igualitário e representativo no cinema. Mas e na literatura, será que o caso é o mesmo?

Embora se fale muito menos nisso, a verdade é que a realidade misógina do cinema está presente também na literatura. Uma pesquisa [1] publicada em 2005 pela doutora da UNB Regina Dalcastagnè, na qual foram analisados 258 romances publicados pelas editoras Companhia da Letras, Record e Rocco entre 1990 e 2004, mostrou que, num universo de 165 autores, apenas 27,3% eram mulheres. Embora a disparidade seja alarmante, não é só no número de publicações que as autoras se veem em desvantagem.

Historicamente, as mulheres e sua literatura jamais tiveram o prestígio recebido pelos autores do sexo masculino. Marina Romanelli, formada em Produção Editorial pela UFRJ, cita como exemplo em sua monografia [2] o caso da Academia Brasileira de Letras. Inaugurada em 1897, a ABL começou sua atuação já negando uma cadeira à intelectual Julia Lopes, apesar de seu envolvimento direto nas movimentações que culminaram na criação da instituição. Foi apenas em 1977 que Rachel de Queiroz tornou-se a primeira mulher a ser eleita para a Academia – porém, como bem ressalta Marina, não se estava elegendo qualquer mulher, mas sim a prima de um presidente, o ditador Castello Branco. Até hoje, 118 anos após sua criação, apenas 6 mulheres fizeram parte da instituição.

Não é só a ABL que parece negar reconhecimento às mulheres, entretanto. Ainda segundo dados expostos na pesquisa de Marina, o Nobel – prêmio mais importante da literatura mundial, concedido anualmente desde 1901 – foi recebido por apenas 13 mulheres até hoje. Já dos 25 romances premiados entre 1990 e 2014 pelo Jabuti, prêmio de maior relevância no cenário brasileiro, apenas 16% foram escritos por mulheres, todas brancas e de classe média. A FLIP, maior festival literário do país, criado em 2003 pela editora inglesa Liz Calder e realizado anualmente, só homenageou uma mulher até hoje, a escritora Clarice Lispector. Marina diz ainda que dos 37 convidados da 1a edição, aproximadamente 19% eram mulheres, proporção que se manteve estável nos anos seguintes, à exceção de 2012, quando o índice de convidadas caiu para mais ou menos 11% – nenhuma sendo brasileira. O machismo dos grandes eventos, prêmios e instituições pode ir além dos números, contudo. Segundo Marina:

Mesmo dentro do festival, as mulheres convidadas não estão a salvo do sexismo, todo ano sendo eleita uma “musa” da Flip, que é citada em várias publicações jornalísticas. Mesmo quando a matéria é sobre uma situação específica, como uma das mesas do evento, o termo “musa” é sempre citado, e a aparência física da autora mencionada. Este é mais um mecanismo de desqualificação, pois, acima de tudo, a mulher é um objeto decorativo, sua função primordial é ser bela, e só depois ela é escritora. […] Já os convidados homens recebem um tratamento diferente: são chamados de galãs. Os galãs, como as musas, são objetos de admiração, mas, por outro lado, são protagonistas, agentes de ação. No ano de 2004, o escritor angolano José Eduardo Agualusa foi considerado o galã da Flip, mas, ao contrário das escritoras musas, a mídia não repetiu incessantemente esse “título”, tanto que, em uma busca pela internet, não se acha menção ao assunto, como se não tivesse acontecido. Já com as musas, uma simples busca rápida revela diversas matérias e reportagens. (ROMANELLI, 2014, pp. 40-41)

O número reduzido de autoras publicadas e o ínfimo prestígio por elas recebido não poderia levar a uma realidade outra que a de uma literatura que constrói poucas personagens femininas, calcadas em estereótipos. Voltando à pesquisa de Regina Dalcastagnè, vemos que as mulheres representam apenas 37,8% das personagens; 31,7% dos narradores e 28,9% dos protagonistas. As mulheres são sempre mais jovens que os homens, 25,1% são donas de casa e 9,6% não têm ocupação. Além disso, enquanto 35,9% das obras escritas por mulheres apresentaram protagonistas masculinos, em apenas 13,8% das obras o caso contrário foi verdadeiro.

A questão da representatividade se torna ainda mais grave quando lançamos um olhar sobre mulheres que fazem parte de outras minorias sociais: no universo de 258 obras analisado pela pesquisa de Regina, apenas 3 protagonistas e 1 narradora eram mulheres negras. Além disso, as negras eram geralmente representadas como empregadas domésticas. Na questão da autoria o cenário não é diferente: dos 165 autores, apenas 2,4% eram negros. Embora não se tenha feito uma junção dos recortes de raça e gênero nesse caso, pode-se deduzir que a proporção de autoras negras é ainda menor do que isso.

E o que dizer das lésbicas e bissexuais? Os números são simplesmente risíveis. As mulheres eram 20,8% das personagens homossexuais, que compunham 3,9% do total de personagens. Ou seja: apenas 0,8% das personagens eram lésbicas.  Já no caso das mulheres bissexuais, esse número cresce para 1,2%, pois, apesar de a proporção de personagens bis ser menor (2,4% do total), ela é dividida meio a meio entre homens e mulheres. Lancemos mão ainda de um exemplo: em 2013, foi publicado pela Galera Record o livro “Will & Will”, escrito por David Levithan e John Green e considerado o primeiro livro Young Adult gay lançado no Brasil. Desde então, Levithan publicou outros dois livros de temática similar por aqui, “Garoto Encontra Garoto” e “Dois Garotos se Beijando”. O fato interessante? Apesar de terem como protagonistas adolescentes homossexuais do sexo masculino, os três têm nas mulheres suas principais leitoras: elas compõem respectivamente 82%, 66% e 67% do público dessas obras no Skoob, maior rede social literária do país. Fica então a pergunta: por que não vimos ainda um “Garota Encontra Garota”? Se as jovens mulheres representam a maior parte do público do chamado YA gay, por que o YA gay não as representa?

A resposta é óbvia: por causa do machismo. As mulheres são hoje mais da metade dos leitores de todo o mundo e 57% do público leitor do Brasil [3]. Porém, como bem pontua Marina Romanelli, ainda vigora no mercado editorial a ideia de que a literatura produzida por mulheres não seria capaz de causar interesse no público masculino, ou seja, seria consumida unicamente por outras mulheres. Isso seria verdade independentemente do assunto sobre o qual escrevessem – vale lembrar o caso da escritora J.K. Rowling, que foi aconselhada a publicar “Harry Potter” usando as iniciais de seu nome para que o público não soubesse que a série era escrita por uma mulher.

Uma expressão máxima dessa premissa pode ser encontrada no lamentável termo escolhido para designar um gênero em que a mulher é o centro de todas as atenções: a literatura de mulherzinha. Ainda que o termo fosse um pouco mais aprazível – se, por exemplo, deixasse de lado o terrível diminutivo em tom de escárnio –, a ideia por trás dele ainda seria ruim. Ora, homens escrevem sobre homens o tempo todo, e nunca se inferiu que estivessem escrevendo apenas para seus pares. Então por que uma literatura com foco na mulher deve ser denominada de “mulherzinha”? E por que não existe uma literatura de “homenzinho”?

Porque toda a literatura já pertence aos homens. Se J.K. Rowling teve de esconder seu sexo, foi porque se acreditava que os homens não se interessariam pelos escritos de uma mulher. A mulher não seria capaz de escrever algo relevante o suficiente para ser levado a sério por eles. Elas não estão aptas a falar de qualquer coisa, a qualquer momento, e não serão lidas por todos. Mas eles sim, porque seu olhar, o olhar do macho, é o olhar neutro. 66 anos após o lançamento de “O Segundo Sexo”, de Simone De Beauvoir, as mulheres continuam a ser “o outro” cuja perspectiva não pode interessar a ninguém mais que elas mesmas.

Para além do termo que o designa, contudo, podemos pensar ainda em outros problemas desse gênero, como a propagação de diversos estereótipos de comportamentos e anseios femininos. Alguns exemplos dessas representações nocivas foram citados em uma matéria publicada esse ano pelo site Nó de oito, intitulada “6 estereótipos femininos que Hollywood precisa parar de usar”. É verdade que a matéria faz menção a filmes, não livros. Porém, o fato de que a grande maioria dos títulos citados são considerados chick-flicks, o equivalente cinematográfico da literatura de mulherzinha (em inglês, chick-lit) torna nosso paralelo bastante consistente. Inclusive, é válido lembrar que muitos dos filmes enquadrados como “de mulherzinha” são na verdade meras adaptações literárias, como é o caso de “O Diário de Bridget Jones”, “O Diário da Princesa”, “O Diabo Veste Prada” e tantos outros títulos.

Falando de representações nocivas, é impossível não citar o caso da literatura erótica, outro gênero associado ao público feminino. É inegável que o fato de cada vez mais mulheres estarem dispostas a conhecer e viver sua sexualidade sem embaraços é extremamente positivo. Porém, parece bastante sintomático que a explosão desse gênero tenha se dado a partir de uma obra tão problemática quanto “50 Tons de Cinza” – também adaptada para o cinema, vale lembrar. Afinal, o que a série de E.L. James faz, ainda que inadvertidamente, é mascarar e propagar a violência de gênero, vendendo o relacionamento extremamente abusivo entre Anastasia e Christian como um conto-de-fadas apimentado ao qual toda mulher moderna deve aspirar. Um gênero que poderia então ajudar a libertar a mulher das amarras sociais que limitam sua sexualidade e fazê-la entrar em contato com ela de forma mais sadia, acaba por difundir uma visão incrivelmente deturpada e perigosa do que deve ser um relacionamento sexual – o que pode causar efeitos muito mais desastrosos a curto prazo do que os dos estereótipos dos chick-lits.

Diante de tudo que foi dito, é engraçado que nos deparemos com uma chamada como a da matéria “14 personagens femininas inesquecíveis da literatura”, publicada pelo Homo Literatus, que nos diz que “Talvez até antes do que na sociedade, a mulher já havia conquistado seu lugar na literatura”. Esqueça tudo que esse texto lhe disse: para ter uma prova do erro nessa afirmação, basta continuar lendo a matéria. Afinal, das 14 personagens mencionadas, apenas 2 foram escritas por mulheres.

Embora nem sempre recebam a devida atenção, algumas iniciativas bem interessantes vêm sido criadas para pautar a questão da baixa – e má – representatividade da mulher na literatura. Dentre elas podemos citar a #readwomen2014, que incentiva as pessoas a priorizarem a leitura de obras escritas por mulheres; o KD Mulheres, um “hub de iniciativas voltadas à promoção da visibilidade e do empoderamento das mulheres no campo da escrita e da literatura” e a Editora Alpaca, que tem como objetivo divulgar textos e imagens criados por mulheres, seja online ou em formatos impressos.

Se iniciativas como as citadas acima parecem pequenas frente às inúmeras dificuldades enfrentadas pelas mulheres no mercado editorial, cabe a nós torná-las maiores e mais numerosas, lançando centelhas que tornem mais visíveis as nossas invisibilidades. Afinal, a conclusão a que chegamos é uma só: não há e nunca houve espaço para a mulher na literatura, uma arte, assim como o cinema, dominada por homens brancos. A mulher na literatura só é recebida com o diminutivo de deboche a tiracolo, através de poucas e porcas representações, que, produzidas na maior parte das vezes por homens carregados de privilégios, acabam por propagar estereótipos e mascarar opressões.

Quer ajudar a mudar esse cenário? Comece com um passo simples: leia mais mulheres.

Bruna de Lara

 

[1] DALCASTAGNÈ, Regina. A personagem no romance brasileiro contemporâneo: 1990-2004. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, nº 26, p. 13-71, jul./dez. 2005.

[2] ROMANELLI, Marina. A representatividade feminina na literatura brasileira contemporânea. Rio de Janeiro. Monografia [Graduação em Comunicação Social] – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Comunicação; 2014.

[3] FOLGUEIRA, Laura. Em defesa de uma festa literária inclusiva. Brasil Post. Disponível em: < http://www.brasilpost.com.br/laura-folgueira/flip-mulheres_b_5592363.html > Acesso em: 01 de maio de 2014.             

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