Sabe quando começou a minha luta para se amar? Desde o ventre materno. Não fui a criança esperada a vir ao mundo. A mãe tentou, por três vezes, o aborto. Resisti! O pai, então, arrastou a mãe, pelos cabelos, de dentro de casa até a rua, para todo mundo testemunhar a minha negação. Não o bastante, ele me chutava, até a  morte, e dizia, para todo mundo ouvir, que não me queria. Mesmo assim eu resisti! Chegada a hora do parto, outra luta. Além de estar com o cordão umbilical enrolado no pescoço, foi preciso utilizar o fórceps obstétrico. Eu resisti! Em 23 de dezembro de 1989, eu nascia na marra; nascia lutando; e já sentia as dores e a rejeição do mundo (familiar).

30 anos se passaram – retorno de Saturno – e só agora, eu consegui entender porque nunca tive uma boa coluna vertebral.  Meus passos nunca foram de um esqueleto firme. Sempre me curvei. Sempre andei curvada, como quem pede licença por tudo. Por existir. Por está ali. Por ter vergonha de existir. Por não me merecer. Os elos frágeis da minha coluna me colocaram sempre em relações abusivas, subservientes e de migalhas. E, claro, de total negação e anulamento do meu ser. Eu não existia. Se a coluna vertebral é a árvore da vida, eu precisava, então, reencontrar o meu eixo, a minha raiz, o meu lugar no mundo. Era preciso podar todos os galhos que nunca me deixaram florir. Cortei com foice amolada as memórias negativas do passado; as relações tóxicas, destrutivas e estorquiadoras; as carências maternais e paternais transferidas para os meus relacionamentos afetivos/sexuais. E cá estou: transmutando, florindo. Recuperando os meus reinados. Tomando para mim o poder da palavra  Potencializando a minha escrevivência.

Essa Quarentena tem sido uma (auto) gestação. Estou me gestando; me cuidando; me amando; me curando. Apenas, sou-me! E quando o parto chegar, quando colocar o meu rosto ao sol, não haverá mais vergonha, dor, escravidão. Sentirei orgulho das minhas veredas, irei admirar as minhas queloides e vou lembrar do dia de hoje.

Estou em carne viva. Todo o sangue que me escorre, por debaixo destes pulsos, toda as minhas feridas expostas, são partos do meu Renascimento. E depois disso, não permitirei mais que ninguém me puxe para trás. Que diga-me que sou uma privilegiada. Que esvazie a minha história. A minha luta. A minha resistência. É preciso fazer doer. É preciso deixar doer. É preciso aprender a  ficar submerso por algum tempo. Estou imersa em mim, – e logo mais num banho de ervas – até estancar, cicatrizar. E seguir forte como sou.

-R.existir.

 

Referências

 

EVARISTO, Conceição (2007). Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita. In: Alexandre, Marcos A. (org.) Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições, p. 16-21.

LEÃO, Ryane. Jamais peço desculpas por me derramar: Poemas de temporal e mansidão. 1°ed. SP: editora Planeta Brasil, 2019.

LELOUP, Jean-Yves. O Corpo e Seus Símbolos – Uma Antropologia Essencial – 20ª Ed. SP: editora Vozes, 2012.

LISPECTOR, Clarice. Água Viva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.

 

Cláudia Kathyuscia Bispo de Jesus. Mulher negra lésbica em estado de transmutação. Socióloga. Professora de sociologia numa cidadezinha, onde Orixá faz morada.

 

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