Conforme novas percepções sobre esses assuntos se desenvolveram, uma nova terminologia também foi necessária. Ao longo dos últimos trinta anos, gender se tornou comum em discussões em língua inglesa para descrever todo um campo. O termo foi emprestado da gramática. Em última instância, vem de um radical que significa “produzir” (generate/gerar) e que deu origem a palavras que significam “tipo” ou “classe” (genus) em diversas línguas. Na gramática, o “gênero” se tornou uma referência à distinção específica entre classes de substantivos “que correspondem mais ou menos” – como o Oxford English dictionary do século XIX primeiramente notou – “as distinções de sexo (e ausência de sexo) nos objetos de que se trata”.

A gramática sugere como tais distinções permeiam as culturas. Nas línguas indo-europeias e semitas, os substantivos, adjetivos e pronomes podem se diferenciar como femininos, masculinos, neutros ou de gênero comum.. Não apenas as palavras para espécies que se reproduzem sexualmente podem ser generificadas, mas também as palavras para objetos, conceitos e estados mentais. O inglês é uma língua relativamente não generificada, mas os falantes ainda usam o pronome “ela” para se referir a um navio ou a um poço de petróleo (“ela vai explodir!”) e, frequentemente, tratam abstrações no masculino (“direitos do homem”).

A língua importa, mas não fornece um arcabouço consistente para compreendermos o gênero. O alemão, por exemplo, tem die Frau (a mulher) com o artigo definido feminino, mas ao dizer das Mädched (a garota), é utilizado o artigo neutro, porque todas as palavras com diminutivo são neutras. O “terror” é feminino em francês (la terreur), mas masculino em alemão (der Terror). Outras línguas, incluindo chinês, japonês e iorubá, não fazem nenhum tipo de distinção de gênero na forma das palavras. Muito disso depende de como a língua é usada. Uma língua relativamente não generificada ainda pode ser utilizada para nomear posições de gênero e expressar opiniões sobre questões relativas ao gênero. Ao mesmo tempo, há comunidades em que certas palavras ou tons de voz são vistos como pertencendo específica e, às vezes, exclusivamente a homens ou mulheres, ou como forma de expressar a masculinidade ou feminilidade do falante.

A maioria das discussões sobre gênero na sociedade enfatiza uma dicotomia. Ao começar a partir de uma divisão biológica entre homens e mulheres, define-se gênero como diferenças sociais ou psicológicas que correspondem a essa divisão, sendo constituídas sobre ela ou causadas por ela.

Em seu uso mais comum, então, o termo “gênero” significa a diferença cultural entre mulheres e homens, baseada na divisão entre fêmeas e machos. A dicotomia e a diferença são a substância dessa ideia. Os homens são de Mate e as mulheres são de Vênus.

Há objeções decisivas sobre essa definição de gênero:

  • A vida humana não se divide apenas em duas esferas, nem o caráter humano se divide apenas em dois tipos. Nossas imagens de gênero são quase sempre dicotômicas, mas a realidade não o é. As evidências disso são abundantes e as veremos ao longo deste livro.
  • Uma definição em termos de diferença significa que onde não vemos diferença, não vemos gênero. Com uma definição como essa, não poderíamos reconhecer o caráter generificado do desejo lésbico ou homossexual em geral (baseado na similaridade de gênero). Seríamos lançados a uma total confusão por uma pesquisa que descobriu diferenças psicológicas muito pequenas entre homens e mulheres, o que parece sugerir que o gênero teria evaporado (veja capítulo 3).
  • Uma definição baseada em dicotomia exclui as diferenças entre mulheres e entre homens do conceito de gênero. Mas diferenças internas a cada grupo podem ser altamente relevantes para os padrões de relações entre mulheres e homens e entre homens e mulheres: por exemplo, as diferenças entre masculinidades violentas e masculinidades não violentas (veja capítulo 6).
  • Qualquer definição em termos de características pessoais exclui processos que estão para além do indivíduo. Processos sociais de grandes dimensões baseiam-se na capacidade compartilhada de homens e mulheres, mais do que em suas diferenças. A criação de bens e serviços numa economia moderna se baseia em capacidades compartilhadas e trabalho cooperativo – mesmo assim, seus produtos são quase sempre fortemente generificados (por exemplo, o que fica em promoção numa loja de brinquedos), e a riqueza gerada por ela é distribuída de maneira altamente generificada. Os problemas ambientais estão ligados a padrões globais intensificados de produção e consumo que, por sua vez, têm dimensões generificadas.

 

As ciências sociais fornecem uma solução para essas dificuldades. A chave é mudar o foco, parando de enfocar diferenças rumo a um enfoque nas relações. Acima de tudo, o gênero é uma questão de relações sociais dentro das quais indivíduos e grupos atuam.

A manutenção de padrões amplamente difundidos entre relações sociais é o que a teoria social chama de “estrutura”. Nesse sentido, o gênero deve ser entendido como uma estrutura social. Não é uma expressão da biologia, nem uma dicotomia fixa na vida ou no caráter humano. É um padrão em nossos arranjos sociais, e as atividades do cotidiano são formatadas por esse padrão.

O gênero é uma estrutura social de um tipo particular – envolve uma relação específica com os corpos. Esse aspecto é reconhecido no senso comum que define gênero como uma expressão das diferenças naturais entre homens e mulheres. Somos uma das espécies que se reproduzem sexual, e não vegetativamente como as bactérias (embora a clonagem possa mudar isso em breve!). Alguns aspectos da nossa anatomia são especiais para esse propósito, e muitos processos biológicos em nossos corpos são afetados por isso (veja capítulo 3). O que está errado com a definição do senso comum não é a atenção aos corpos, nem a preocupação com a reprodução sexual, mas a tentativa de inserir a complexidade biológica e sua adaptabilidade numa dicotomia rígida, e a ideia de que os padrões culturais apenas expressariam diferenças corporais.

Às vezes, os padrões culturais, de fato, expressam diferenças corporais, por exemplo, quando se celebra a primeira menstruação para distinguir uma menina de uma mulher. Mas frequentemente, fazem mais do que isso – ou menos. Às vezes, as práticas sociais exageram a distinção entre mulheres e homens (por exemplo, no caso das “roupas para a maternidade”), negam essa distinção (como em diversas práticas empregatícias), mitificam-nas (como em videogames) e complicam-nas (como em culturas que têm um terceiro gênero). Não podemos dizer, portanto, que os arranjos sociais simplesmente “expressam” diferenças biológicas.

Podemos dizer, porém, que em todos esses casos a sociedade procura dar conta dos corpos e lida com processos reprodutivos e diferenças corporais. Não há uma base biológica fixa para o processo social do gênero. Em vez disso, o que há é uma arena em que os corpos são trazidos para processos sociais, em que nossa conduta social faz alguma coisa sobre diferenças reprodutivas. Este livro chama isso de “arena reprodutiva”, o que será mais bem discutido no capítulo 3.

Agora nos é possível definir “gênero” de forma a resolver paradoxos sobre a “diferença”. O gênero é a estrutura de relações sociais que se centra sobre a arena reprodutiva e o conjunto de práticas que trazem as distinções reprodutivas sobre os corpos para o seio dos processos sociais.

De maneira informal, gênero diz respeito ao jeito com que as sociedades humanas lidam com os corpos humanos e sua continuidade e com as consequências desse “lidar” para nossas vidas pessoais e nosso destino coletivo. Os termos usados nessa definição são mais bem explicados nos capítulos 4 e 5.

Essa definição produz importantes consequências. Entre elas: o gênero, como outras estruturas sociais, é multidimensional. Não diz respeito apenas à identidade, nem apenas ao trabalho, nem apenas ao poder, nem apenas à sexualidade, mas a tudo isso ao mesmo tempo. Padrões de gênero podem ser radicalmente diferentes entre contextos culturais distintos, e há certamente muita variedade entre as maneiras de pensá-los, mas ainda é possível pensar (e agir) entre culturas em relação ao gênero. O poder das estruturas na formação da ação individual faz com que o gênero quase sempre pareça não se transformar. No entanto, os arranjos de gênero estão sempre mudando, conforme as práticas humanas criam novas situações e as estruturas se desenvolvem tendendo a crises. Por fim, o gênero teve um começo e pode ter um fim. Cada um desses pontos será explorado mais adiante neste livro.

Este é um trecho do capítulo 1 do livro “Gênero: uma perspectiva global” de Raewyn Connel e Rebecca Pearse. Publicamos também uma resenha do livro neste link.

 

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