E eu, mulher com deficiência, não sou uma mulher? Inspirada por um dos títulos mais famosos da escritora e feminista negra bell hooks, proponho este questionamento para quem me lê mas, também, para quem me observa na rua em pé esperando o sinal abrir.

Você que chegou agora já deve saber, ou intuir, que a mulher por trás das letras é uma mulher com deficiência: displasia óssea e catarata congênita.

Explico logo qual o meu lugar corpóreo dando nome aos bois, ou qualificando as deficiências, porque minha experiência de vida ensina que isto é o que as pessoas querem saber. Me faltam dedos nas mãos para contar quantas vezes ouvi “nossa, o que você tem?” ou “nossa, mas isso aí não tem cura, não?”. Não querem saber meu signo ou ascendente, tampouco se interessam em saber se eu prefiro sorvete ou picolé. Querem saber qual a tragédia mirabolante que me transformou na pessoa que eu sou hoje: mulher com deficiência física.

Mas a curiosidade não passa com esta explicação curta e direta sobre coisas que não são da conta de ninguém. O segundo ponto que mais interessa é como alguém como eu consegue ter uma vida como a minha. E olha que fantástica é minha vida: estudo, trabalho, me relaciono, fim… Parece uma vida extraordinária para vocês? Faço esta afirmação correndo risco de que me vejam como alguém “cheia de mimimi”, mas você já parou para pensar no estrago que é ser identificada por suas limitações e não pela sua substância? Faço terapia há mais de oito anos, portanto já tenho o equivalente a duas faculdades sobre mim mesma, e ainda assim não arrumei toda a bagunça que a sociedade deixou dentro do meu coração. Talvez este seja um trabalho para vida toda, afinal.  A verdade é que quem me observa na faixa de pedestre já sabe que eu tenho alguma deficiência só de me olhar. E eu nunca tenho sequer a chance de me defender das suposições maldosas porque uma hora o sinal abre.

Não sei se você sabe, mas a palavra matrimônio tem uma relação bem íntima com outra palavra: patrimônio. As duas falam sobre propriedades em relações comerciais vantajosas para andas as partes, menos para a mulher que ocupa o centro de tudo. No caso de pessoas sem deficiência, significa ganho para o homem que recebe a mulher em matrimônio e ganho para o pai que oferta a mulher em matrimônio, mas as mulheres com deficiência não participam dessa lógica porque são consideradas “mercadorias imperfeitas”. E também não damos lucro algum já que não somos apreciadas. Se o casamento servia para ratificar negócios, como oferecer para um homem de bem algo que já nasceu estragado e sem possibilidade de troca ou devolução? Não oferecendo, oras. Então, se não sou apta ao matrimônio… eu sou uma mulher?

O provérbio africano diz que para uma criança nascer é preciso uma mulher, mas para que esta criança seja educada é necessário uma vila inteira. Desde a antiguidade, mulheres são retratadas como grávidas com as tetas inchadas de tanto leite. O ápice da fertilidade! Existem, inclusive, culturas que entendem mulher aquelas que podem gerar e parir enquanto as outras que não carregam esta capacidade são, é claro, homens. Mas, e se eu não conseguir gerar, conceber e educar apenas por ser eu quem eu sou? Não posso ganhar minha carteirinha de mulher?

Você, se tiver um pezinho consciente no feminismo, deve estar pensando que casamento e filhos não é definidor para que uma mulher seja mulher, certo? Você está certa. Contudo, ainda que eu esteja passando por um imenso processo de desconstrução, é importante colocar que estes são definidores do gênero feminino que são passados de geração por geração há anos. A criança mulher ganha dos pais uma boneca e dos tios jogos de panela antes mesmo de conseguir falar seu nome. Eu, como mulher, achava que estas obrigações um dia também seriam transferidas para mim. Essa passagem de bastão do feminino, por assim dizer, se daria de maneira velada, como é com todas. Então eu esperei, mas nada disso aconteceu. De mim não se espera nada. As próprias mulheres também não esperam muito de mim e se eu desse um passo era repreendida porque eu poderia me machucar. As mulheres reproduziam papeis de gênero e exercitavam suas diversas mulheridades enquanto eu tentava entender qual a parte que me cabia nisso tudo. Sinceramente? Ainda não sei qual parte é essa ainda que os saberes continuassem circulando ao meu redor.

Mas… eles não chegavam para mim, porque de mim nunca se esperou absolutamente nada. Se eu passasse a tarde reclamando da minha vida com deficiência esta seria uma reação esperada por eu ser quem eu sou. Correr atrás de uma vida mais plena e digna não era uma possibilidade visível.

Devo correr para as montanhas onde minha vergonha ficará escondida de todos? Ou, devo tentar fazer outras coisas, como projetos ou estudos, ainda que isto me consuma por dentro dia após dia?

Mulheres com deficiência tentam compensar suas faltas assim, fazendo o melhor que conseguem, ainda que isto custe a saúde mental. Mulheres se cobram, eu me cobro em dobro. Mulheres tentam fazer mil coisas ao mesmo tempo, eu tento fazer mil e uma coisas, mulheres querem tudo brilhando, eu quero tudo reluzindo de tão perfeito. Ah… eu estou exausta!

Pensando em toda essa nossa conversa anterior e em tudo que eu digo, volto novamente ao título de belll hooks pensando o seguinte: se a perfeição do ser mulher no século XXI evoca beleza, potência e presteza, todas essas características em modo avançado, então eu não sou uma mulher? Se eu não sou uma mulher por não me encaixar em nenhum desses lugares, o que eu sou? Viver minha vida realmente vale a pena ou é só um tempo que eu gasto entre o nascer e o morrer?

Hoje eu consigo dizer que, por mais que a mulher que eu sou tenha sido arrancada de mim há muito tempo, vale a pena viver minha vida. Por mais que eu não tenha ganhado esses papéis lá atrás, vale a pena viver a vida que eu inventei pra mim.

Sobre essa vida que eu criei, uma vida diferente daquela onde nada se espera, eu sonhei com muitas coisas: um apartamento com sol, um gato gordo na cozinha, um antúrio na sala, livros e uma amor para chamar de meu… Eu sonhei com um mundo onde o feminismo puxe uma cadeira para que se sente uma mulher com deficiência. Sonhei também com um mundo onde uma mulher que nasceu com perfeições e imperfeições possa se sentar na mesa onde as conversas importantes são mantidas. Eu também sonhei com um mundo onde eu possa existir sendo quem sou. Nem mais, nem menos.

Há alguns anos era tudo utopia, verdade. Mas não porque esse futuro não fosse existir, mas sim porque nem eu esperava construir tudo isso. Como nada me era esperado eu comecei a me acostumar com a ideia de que nada eu deveria esperar de mim também. Mas um dia, um belo dia, eu fiquei cansada de olhar o mundo pelas grades da minha janela e resolve contemplar o céu do lado de fora. E foi preciso que eu me convencesse de que só eu mesma poderia me salvar da torre da desesperança onde me colocaram.

Nesse dia, eu arrumei uma mala e saí. A partir do momento em que eu me lancei em busca da mulher possível que mora aqui dentro, na casa da alma, ela me sorriu de volta e contou que a caminhada seria longa. Demos as mãos e estamos aqui hoje, contando esta história.

Desde então, eu sigo. Não estou completamente curada da desesperança generaliza que sofri durante tanto tempo, mas estou em constante melhora. Cada passo é uma cura e hoje eu espero bastante da mulher que me tornei. Espero muito da vida que criei pra mim. Espero uma casa maior, talvez filhos, um cachorro no quintal e amigos para almoçar no domingo.

Espero um mundo mais gentil para quem é diferente da norma, também espero um ambiente mais respeitoso para os que pensam diferente e agem diferente. Inclusive para os que discordam de mim.

Portanto, hoje, se me perguntarem “e eu não sou uma mulher?” a resposta é: sou, a mulher que eu sempre esperei.

 

Mariana Silva é mulher com deficiência, jornalista, bruxa, mestre em comunicação social e adora comer uns lanches veganos ao ar livre.
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