Uma da tarde, meu celular vibra. Um número internacional me liga. Atendo e a voz de minha amiga árabe chega no Brasil, “Ana, habib”, ela me fala de um jeito trêmulo. Paro tudo que estou fazendo e me concentro em escutá-la. Aisha (vou dar a ela esse título anônimo pra preservar sua identidade) me conta que seu ex, depois de tê-la bloqueado por dois anos após o término, ressurgido em 2020 só pra em seguida desaparecer de novo – dessa vez por um ano-, enviou ontem mensagem pra ela, algo bem casual, um simples “ei, tudo bem?”. E dessa vez, quando ela tentou conversar com ele de sua chateação, de como ele a magoou, as respostas  dele eram superficiais, evasivas. Minha amiga conta de sua aflição. Ela guarda carinho por ele do passado que compartilharam e fica agoniada por não conseguir entender como ele fez tudo isso com ela: “Ele não me amava, Ana, me sinto idiota por ter acreditado que sim. Ele mentiu pra mim quando disse isso. Isso nunca foi amor, não é? Você acha que ele já se importou?”

Sou teletransportada para um passado de quando me peguei sofrendo assim por alguém também. Uns anos atrás vivi uma daquelas paixões que você não consegue se controlar e quer contar pra todo mundo sobre a pessoa. Que noite após noite quer estar junto. E então um dia eu viajo a convite dele pra cidade onde a sua família mora. O plano era passar um tempinho. Ele oferece pra eu ficar na casa com ele, mas acabo alugando um quarto de hotel por segurança. Chego na cidade animada e rápido ele me busca pra que eu conhecesse os parentes. Na primeira noite durmo na casa dele, e lá acabamos tendo uma discussão. Na manhã seguinte ele me deixa no hotel com a desculpa de que tinha planos com amigos. Só reaparece dois dias depois pra se despedir antes de eu ir embora…

Não estou aqui pra fazer juízo de valor. O tempo passou e anos depois consegui passar isso à limpo com ele. A questão é, nossa história foi tão rápida e tão intensa, e  vivemos tão distante um do outro, que quando essa situação em particular aconteceu, eu não consegui processá-la de cara. Não tive tempo de entender tudo. E a partir desse momento eu entrei na grande dor de cabeça: ele gostou ou não de mim?. Meus amigos cansaram de analisar essa situação comigo e cada um me deu uma resposta diferente. Minhas amigas do interior onde nasci diziam: “ele jamais te valorizou, senão não teria feito isso”. Minha prima mais velha me deu certeza que ele não gostou de mim, pois isso não é atitude de quem gosta.eus amigos homens cis e héteros da faculdade disseram “ele não é homem de verdade, senão não teria feito isso”, minha avó (sim, eu busquei até os conselhos da minha avó) me repetia que ele com certeza tinha gostado de mim, só era muito novinho pra ter cabeça no lugar e que homens amadurecem muito depois… Sinceramente, eu devo ter gastado um semestre nessa cruzada em busca de interpretações. Na minha busca por sentido, estava desesperada por tentar entender se ele tinha ou não gostado de mim.

Não ajuda o fato de que crescemos com a ideia do amor dos contos de fadas. O sentimento mais puro do mundo. A razão pela qual os seres humanos se arriscam, se movem, se desenvolvem de uma forma cheia de abnegação. Vemos filmes em que pessoas quase perdem a vida por amor, desde os infantis como “Bela Adormecida” com o príncipe enfrentando um dragão pela sua amada, “Crepúsculo” com Bella e Edward fazendo de tudo um pelo o outro, até “Titanic” em que, bem, nesse o cara de fato morreu por amor ao abdicar de seu espaço no bote. Ou aqueles em que a revelação desse sentimento vem acompanhada de um grande gesto romântico. Acho que nem preciso citar títulos aqui, pois são basicamente todos os filmes desse gênero. Como muitas amigas, eu cresci consumindo filmes românticos em que o enredo envolvia a mocinha perfeita e perfeccionista  que torna-se o objeto de desejo de um cara que de início tenta resistir, mas depois fica tão loucamente apaixonado por ela que não poupa mais esforços para conquistá-la e fazê-la feliz. E assim pensamos, “é isso o amor”. E desejamos exatamente isso pra nossa vida. Ter alguém que faça de tudo por nós.

Eis que um dia chega alguém que diz nos amar, mas faz tudo diferente do que vimos na tela. Nossa cabeça se embola e tentamos entender em que fase do enredo estamos. “Será que ele ainda vai mudar? Será que eu insisto mais pois daqui a pouco vem o grande gesto romântico? Afinal, ele diz que me ama”. Cá entre nós, sentir-se  amada é tudo de bom.  É justamente esta uma das mensagens mais direcionadas para o público feminino no audiovisual. Com filmes e mais filmes em que a grande virada pra protagonista é ter seu par perfeito.

Entender esse sentimento, por outro lado, é complicado. Segundo o filósofo Sponville o amor tem como uma de suas definições a busca por aquilo que nos falta, é carência, e, portanto, vem junto com sofrimento e obsessão. Para Aristóteles, na “Ética a Nicômaco”, o amor está associado à vontade de compartilhar a companhia um do outro, a amizade entre os bons e virtuosos. O poeta Rilke fala sobre o encontro entre as solidões. Já na famosa ópera Carmen há um trecho que diz: Se eu te amo, tome cuidado comigo.

Posso, por fim, te dar mais várias e várias definições de amor. Você mesma, se pesquisar, vai encontrar outras tantas. Mas enquanto buscamos entender se a razão do outro nos magoar foi falta de afeto, esquecemos do principal.

Diego Rivera dizia-se apaixonado por Frida Kahlo. Eles se casaram e é possível encontrar retratos lindos do casal espalhados pela internet. Ainda assim, pelo que a história conta, ela parece ter sofrido bastante durante o relacionamento – ele a teria traído até com a irmã dela. Em reportagem ao El País há uma declaração do pintorem que diz “(…) percebi que a parte mais maravilhosa da minha vida tinha sido meu amor por Frida, embora realmente não pudesse dizer que, se tivesse outra oportunidade, eu me comportaria com ela de maneira diferente”.

É muito difícil interpretar os sentimentos das pessoas, pois nossa estrutura psicológica é complexa demais para que se consiga sozinho preencher todo o quebra-cabeça da totalidade do outro. Cada um entende e age no mundo de uma forma, processa sentimentos e emoções de um modo bem particular. Compartilhando uma última definição do amor, volto à Aristóteles: “O amor é o sentimento dos seres imperfeitos”.

Hoje, vejo o que me aconteceu e tenho outra perspectiva. Honestamente, o meu grande medo naquela época era que ele nunca tivesse se apaixonado por mim. Uma amiga, conversando com a psicóloga sobre o mesmo dilema, escutou: “quando uma relação acaba, o que você tem de concreto é a sua parte. O que você fez no relacionamento”. O que percebi com o tempo é que ter uma resposta dele quanto a sentimentos, não seria capaz de alterar em nada as ações do passado e nem como me senti. Nem todos os finais vão ser ou precisam ser uma conclusão redondinha que vemos no cinema. Não precisamos de todas as respostas que desejamos sobre as atitudes da pessoa com quem nos envolvemos  para ficarmos bem.

Gastamos tanta energia tentando interpretar o comportamento do outro na busca pela garantia de sermos apreciadas, principalmente nós mulheres – que por muito tempo fomos colocadas apenas como o sujeito desejado e não como o desejante -, que esquecemos de nos perguntar: “e eu com tudo isso?”; “como eu me sinto agora em relação a essa pessoa depois de tudo o que aconteceu?” O que disse pra minha amiga, que ligou de muito longe mas com um problema tão próximo, é que muita gente vai entrar na nossa vida com a melhor das intenções. Muita gente vai dizer que nos ama, e de fato sentir isso. O amor, no entanto, não é o suficiente para estar em uma relação. É preciso muito, muito mais. Quando nos vemos em uma situação em que fomos magoadas, e nos sentimos desrespeitadas, penso que a reflexão não deveria se concentrar em tentar decifrar se aquela pessoa está mentindo quando nos fala de seus sentimentos. Mas sim, buscar entender qual o tipo de amor que queremos viver. E como queremos ser amadas e amar.

 

Editado por Bruna Rangel e revisado por Julia Zacour. Photo by Kelly Sikkema on Unsplash

 

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