Logradouro da infância: “moro na rua marginal, do bairro final de linha”. O endereço em que vivi por cerca de duas décadas foi interiorizado na minha trajetória acadêmica.

Na graduação, sentava nas cadeiras finais da minha turma de ciências sociais. Ocupava, ali, o lugar socialmente destinado a estar.

Cresci nos entornos da Universidade Federal de Sergipe, mas não encontrava a minha vizinhança dentro das salas de aula. Ela estava do lado de fora. Era o vigilante, o jardineiro, a cozinheira do restaurante universitário, e em grande massa as mulheres que limpavam a sala de aula em que eu estava.

Elas não me viam. E eu não as enxergavam. A gente só se olhava – e se identificava – quando cruzava a mesma estrada de terra que, cortando caminho, chegava mais rápido no conjunto Eduardo Gomes.

Voltava para o meu bairro e me sentia estranha por não ter tido o mesmo rumo que a juventude periférica, que eu cresci, teve. Por anos vivenciei uma segregação espacial e de relações sociais entre o viver universitário e o viver suburbano. Haviam cercas simbólicas para delimitar as distinções desses espaços.

Essa cartografia imaginária me fez acreditar que deveria sempre ocupar o “entorno”. Isto é, estar “em volta” de um grupo de pesquisa; no “entorno” de uma orientação acadêmica e, sobretudo, se avizinhar de um conhecimento científico.

Essa geografia de pertença da inferioridade levou a castração da minha potencialidade. A sabotagem intelectual produziu em mim uma negação cognitiva de possibilidades de fomentações teóricas e de ousadias de produção científica. Me coloquei no “beirar” da posse do conhecimento.

Isso porque me via no lugar da infância, da rua marginal, do final de linha.

Chegar a pós-graduação foi muito mais que comemorar esse espaço ocupado, pois não me via merecedora de estar ali. A meritocracia nunca amorteceu meu ego porque não compreendia egoicamente que era mérito. Mas sim um acidente vitimado pela ideia de “deixe a coitada aí”. Então, continuei sentando no final da fila das turmas de mestrado e do doutorado.

Ao começar a receber dinheiro pelo meu trabalho intelectual, e precisar cada vez mais de tempo abstrato para a produção dessa “mais-valia”, foi aí que o adoecimento psíquico deu sinais de urgência.

A inaptidão teórica e o bloqueio da escrita foram os primeiros sintomas detectados. Sentia vergonha do que escrevia. Não conseguia me ler, me admirar e, principalmente, acreditar na consistência reflexiva do meu pensamento.

Esses efeitos patológicos da interiorização do racismo, do gênero e da classe só se tornaram lúcidos a partir do momento em que comecei a ler mulheres negras. Conhecer as suas trajetórias foram medicamentosos para o meu sofrimento (silencioso) no campo acadêmico.

Ler, por exemplo, a Beatriz Nascimento e tomar para mim as suas dores, me fez perceber que não estava só. E que era preciso falar sobre isso. Colocar para fora – assim como fez a Audre Lorde ao teorizar suas experiências subjetivas – e dar poder erótico a sua existência.

Se hoje torno essa dor em um escrito é porque outras mulheres negras ancestrais assentaram esse caminho para que eu pudesse chegar e escre-viver. Devo essa libertação a Conceição Evaristo e tantas outras inomináveis.

Ao tirar essas máscaras brancas, que ora me impuseram a usar; ora eu as acionei para poder “ser notada”, começo a enxergar minha pele negra no campo intelectual. Mesmo sabendo racional e emocionalmente que nesse lugar há uma pertença do não-ser, onde uma pessoa negra se encontra.

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