A insegurança e vulnerabilidade marcam a forma com que a maioria das mulheres vivencia as cidades atualmente, ao ponto em que o percentual de mulheres nos espaços públicos seja utilizado como indicador de segurança – não pela presença delas tornar o espaço mais seguro, mas porque um lugar seguro é capaz de atrair mais mulheres.

 

A produção da cidade reflete as dinâmicas culturais e as ideologias da sociedade ao longo do tempo. Historicamente, o acesso à vida urbana pelos homens e pelas mulheres nunca ocorreu da mesma maneira. Representações, valores e símbolos instituídos ao longo da história compõem o imaginário coletivo de diversas culturas, atuando como artifícios modeladores de comportamento que segregam e confinam as mulheres no espaço doméstico. Segundo a filósofa existencialista Simone Beauvoir, a ideologia patriarcal tornou hegemônica uma dicotomia entre os espaços masculino e feminino através do estabelecimento de papéis específicos para cada gênero. O homem deteve o papel de produtor ativo do espaço na medida em que a mulher foi relegada a uma postura passiva de ocupante. A relação binária entre essas esferas contribuiu para a segregação entre o público e o privado, a cidade e a casa.  Apesar das alterações das relações e papéis de gênero e o aumento do debate em relação ao feminismo que vêm ocorrendo nas últimas décadas, o desenvolvimento das cidades permanece sendo permeado por esta ideologia patriarcal. A insegurança e vulnerabilidade marcam a forma com que a maioria das mulheres vivencia as cidades atualmente, ao ponto em que o percentual de mulheres nos espaços públicos seja utilizado como indicador de segurança – não pela presença delas tornar o espaço mais seguro, mas porque um lugar seguro é capaz de atrair mais mulheres.

Diversas pesquisas vêm sendo realizadas com o objetivo de estudar o acesso e circulação das mulheres na cidade. Entretanto, o pleno direito à cidade, em uma perspectiva Lefebvriana, não se limita apenas ao acesso e circulação, mas inclui também como um aspecto fundamental o usufruto dos espaços urbanos através da apropriação e permanência. Dessa maneira, esses espaços não devem ser concebidos apenas como um caminho, mas também como uma destinação final. Com o objetivo de investigar a permanência das mulheres nos espaços públicos, foi realizada uma pesquisa empírica quali-quantitativa em quatro ruas comerciais na área central de Belo Horizonte. Ao todo foram analisados 16 quarteirões que contornam a Praça Diogo de Vasconcelos, no coração da Savassi, uma importante centralidade belorinzontina. Levantamentos de campo foram realizados para mapear os atributos físicos da área de estudo, como as calçadas, fachadas de edifícios, mobiliários urbanos e arborização. Através de análises visuais, a dinâmica da área de estudo foi constantemente monitorada, e foram registradas mudanças de uso das edificações e a presença de mobiliários móveis, assentos comerciais, mostruários e demais elementos não fixos nas calçadas.

Praça Savassi, Belo Horizonte, Minas Gerais

 

Como estratégia para identificação o padrão de comportamento das mulheres no espaço ao longo do dia, 320 sessões de observação sistemática e 320 sessões de contagens de pedestres foram realizadas na área de estudo de 9 às 21 horas, durante a semana e o final de semana, entre agosto de 2017 e abril de 2018. Durante as sessões de observação sistemática, cada quarteirão da área de estudo foi percorrido pelos pesquisadores em dias e horários definidos, e foram mapeadas todas as pessoas desenvolvendo algum tipo de atividade estacionária no espaço público, como: conversar, observar vitrines, comer ou beber, comprar e vender. Associado a cada pessoa, também foram registradas características relativas ao gênero, faixa etária, atividade desenvolvida, e se a pessoa estava sozinha ou em grupo. As contagens de pedestre tiveram 15 minutos de duração e ocorreram após as sessões de observação sistemática. Durante as contagens, foi registrado o número de mulheres e o número de homens em movimento que passaram pelo quarteirão estudado. Foram também realizadas entrevistas com o intuito de compreender melhor a perspectiva das mulheres em relação ao espaço público. No total, 12.428 pessoas foram registradas durante as sessões de mapeamento e de contagem e 70 pessoas foram entrevistadas, 35 mulheres e 35 homens.

 

Gráfico 2

Gráfico 3

 

Apesar de as mulheres representarem 51,4% das pessoas em movimento na área de estudo, constituíram apenas 36,9% das pessoas desenvolvendo atividades estacionárias. Ou seja, o número de mulheres e de homens que passaram pela área de estudo é praticamente equivalente, mas o número de homens que desenvolveram atividades estacionárias no espaço público foi quase o dobro do que o de mulheres (1,7 vezes maior). O mapeamento comportamental evidenciou ainda uma maior tendência de prática de atividades sociais do que individuais nos espaços públicos: 56,8% do total das pessoas mapeadas estavam desenvolvendo atividades em grupo. Entretanto, essa prática se mostrou mais recorrente entre as mulheres (62,4%) do que entre os homens (53,5%).

Ao longo do dia, a prática de atividades estacionárias se relacionou positivamente com a variação do fluxo de pedestres. O horário de almoço foi o que apresentou uma maior concentração de pessoas na rua e o início da manhã, a menor concentração. Essa dinâmica reflete teorias amplamente difundidas no âmbito acadêmico, como os Olhos da Rua, de Jane Jacobs. Em seu icônico livro, a autora defende que os usuários das ruas formam uma rede inconsciente que monitora o comportamento das pessoas na rua. Quanto maior o número de pessoas, ou olhos, nas ruas, maior é a sensação de segurança e as pessoas se sentem mais confortáveis em utilizar o espaço público.

Arquitetura

 

Ao comparar os dados comportamentais coletados com os atributos físicos da área de estudo, fica evidente uma forte tendência de concentração de atividades estacionárias em locais com fachadas mais permeáveis, com edifícios mais articulados com a calçada e com alta diversidade de usos. Um dos quarteirões da área de estudo chamou atenção por não ter tido nenhuma mulher registrada desenvolvendo atividades estacionárias, apesar de apresentar um fluxo considerável de pessoas ao longo do dia. Este quarteirão apresenta três quartos das fachadas de seus edifícios impermeáveis, constituídas por um longos muros cegos, e possui apenas dois usos: um estacionamento e uma loja de sapatos. Em contraposição, o quarteirão que apresentou a maior quantidade de mulheres apresenta uma rica diversidade de usos, vitrines, fachadas permeáveis, restaurantes e lanchonetes, assentos comerciais e um alto índice de apropriação da calçada pelos comerciantes, que disponibilizam assentos móveis e expõem seus produtos. Esse resultado aponta para o papel fundamental desempenhado pelo ambiente construído ao produzir uma arquitetura que emoldura as práticas cotidianas, podendo favorecer ou não a permanência das pessoas nos espaços públicos.

 

 

Perspectiva delas

 

Entrevistas e questionários foram aplicados de modo a compreender melhor a perspectiva das usuárias e usuários da área de estudo. Foram perguntadas questões relativas à frequência com que iam à área de estudo, o motivo e o que mudariam e o que não mudariam naquele espaço. A análise qualitativa das respostas apontou que as palavras mais mencionadas nas respostas pelas mulheres durante toda a entrevista foram “segurança” e “sensação”. A deficiência da iluminação pública foi apontada pela maioria como um empecilho de utilização da área. Além disso, ângulos de visada se mostraram extremamente importantes para sensação de segurança e consequente permanência das mulheres nos espaços públicos.

 

 

Os aspectos físicos do espaço público que as mulheres mais mudariam são as calçadas e iluminação. Os homens por sua vez mudariam os estacionamentos, acrescentariam árvores e melhorariam a iluminação. Em relação aos aspectos que gostariam que fossem mantidos, ambos os gêneros apontaram as pracinhas, que ficam entre os quarteirões internos, e os comércios antigos da região. Isso evidencia a existência de pontos e espaços significativos na vida urbana, que contribuem para a leitura e entendimento da cidade, possuindo um significado importante para a população. Esses pontos na área de estudo corresponderam a pequenos comércios, estabelecimentos antigos, principalmente bares, restaurantes e livrarias. Entretanto, eventos temporários, como a Feira da Savassi, que ocorre semanalmente na área de estudo e a exposição de produtos que pequenos comércios usualmente fazem durante o final de semana nas calçadas, também foram citados. Este aspecto encontrado corrobora teorias amplamente discutidas na literatura urbanística mundial, que apontam a importância de marcos, pontos nodais e espaços significativos para a vida urbana, como Kevin Lynch discute em seu livro “A Imagem da Cidade”.

Os resultados apontam que a permanência das mulheres nos espaços públicos é ainda limitada, principalmente pela sensação de insegurança. Nesse contexto, certas características do desenho urbano e da arquitetura, aliadas à diversidade de usos e a uma boa manutenção do espaço público, promovem situações favoráveis para a atração e permanência de mulheres. A cidade é produzida por um conjunto de atores, e cada um tem contribuições e ações específicas que podem ser realizadas para atingir esse objetivo. Ao promover fachadas mais permeáveis, uma maior articulação do edifício com a rua e amplos ângulos de visada, a arquitetura pode contribuir para uma maior sensação de segurança das mulheres nesses espaços. O incentivo à diversidade de usos e mobiliários fixos e móveis nas calçadas são ações que podem ser desenvolvidas pelo poder público. Os comerciantes também são atores importantes nesse processo. O fornecimento de assentos e mobiliários e a articulação do estabelecimento com a rua é essencial.  É importante que políticas, projetos e planos urbanos reconheçam a existência da segregação de gênero e sempre que possível balizem suas decisões de maneira a promover o acesso das mulheres às cidades. Desta maneira, além de criar medidas que atendam a necessidade de circulação das mulheres na cidade, é imprescindível a instituição de medidas que favoreçam a permanência delas no espaço público para a produção de uma cidade mais sustentável e acessível a todas e todos.

 

Agradecimentos: 
Agradeço à Paula Barros por orientar e coordenar o projeto, e por encorajar a análise de dados além do objetivo principal, e ao Thiago Lima, parceiro nos mapeamentos e levantamentos.

 

Carolina Amaral Guimarães de Lima Souza. Mulher, arquiteta e designer. Apaixonada por pessoas, o que pensam, como se comportam. Acredito que a inovação move o mundo e que podemos impactar positivamente as pessoas através dela. Sinta-se a vontade para conversarmos 🙂

 

REFERÊNCIAS

BEAUVOIR, Simone de. The Second Sex. 1949. Trans. HM Parshley. Harmondsworth: Penguin, 1972.

COURB. Mulheres no Espaço Urbano: como fazer cidades melhores para elas?. Disponível em: <http://www.courb.org/pt/mulheres-no-espaco-urbano-como-fazer-cidades-melhores-para-elas/>. 2016. Acesso em
nov. 2018.

JACOBS, Jane. The death and life of American cities. 1961.

LEFEBVRE, Henri; NICHOLSON-SMITH, Donald. The production of space. Blackwell: Oxford, 1991.

LYNCH, Kevin. The image of the city. MIT press, 1960.

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