Uma lei que criminaliza o discurso de ódio contra homossexuais, lésbicas, transexuais e travestis está ferindo a liberdade de expressão de um indivíduo? A liberdade de expressão abarca discursos discriminatórios, como o racismo? Temos liberdade de expressão para discriminar imigrantes? Palavras, expressões ou atitudes consideradas ofensivas a minorias e grupos historicamente explorados e vitimizados deveriam ser proibidas ou permitidas? Esse tema não é novo entre os debates jurídicos, mas é um caso difícil que divide opiniões.

Liberdade de expressão, entendida como o direito de expressar, expor suas ideias e opiniões, sempre foi considerado essencial à própria noção de democracia, afinal, regimes autoritários sempre tiveram como forte característica a restrição a esse tipo de liberdade, pela censura a ideias, opiniões políticas ou qualquer outra forma de manifestação que não fosse aprovada por quem estava no poder. Por termos diversas experiências históricas nesse sentido, depositamos no direito à liberdade de expressão um sentimento de grande relevância. No entanto, a proteção intensa a esse direito mostra outra faceta, no qual esse direito entra em aparente conflito com outros de igual importância à democracia, como os direitos à igualdade e dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, a liberdade de expressão foi e ainda tem sido muito utilizada como argumento jurídico para legitimar discursos discriminatórios.

Ronald Dworkin escreveu especificamente sobre esse tema em uma introdução a um livro chamado Extreme Speech and Democracy, no qual ele aborda o papel da liberdade de expressão em uma democracia e a relação entre liberdade de expressão e legitimidade. Jeremy Waldron faz uma crítica à Dworkin em seu livro The Harm in Hate Speech que é respondida por Dworkin em um breve artigo publicado no livro The Content and Context of Hate Speech. Analisaremos, então, o debate entre esses dois autores, e tentaremos responder: a liberdade de expressão, essencial à democracia, abarca discursos discriminatórios?

 

Dworkin, Liberdade de Expressão e Legitimidade

 

Se a restrição a qualquer liberdade é motivo de discussão (e deve ser), a discussão acerca da liberdade de expressão ganha uma conotação diferente considerando que o discurso livre é inerente à própria noção de democracia, conforme dito anteriormente. Existe, portanto, uma posição contrária a leis que criminalizam o discurso de ódio por um receio de que isso possa comprometer o próprio processo democrático. Um dos principais defensores desse argumento é Dworkin, que vê a liberdade de expressão como um direito universal e irrestrito (ou quase irrestrito).

Dworkin argumenta que a liberdade de expressão não é somente instrumental à democracia, mas constitutiva à democracia[2] e, mesmo à parte da relação íntima entre liberdade de expressão e a democracia, é um direito humano universal. Segundo ele, se o discurso é tão fundamental quanto seus defensores supunham no passado, nós devemos protegê-lo mesmo que tenha consequências indesejáveis[3], ou seja, devemos proteger até mesmo os discursos que discriminam, mesmo sabendo que tais discursos prejudicam determinado grupo social e que sejam abomináveis. Para Dworkin, a proteção à liberdade de expressão é uma questão de princípio:

É ilegítimo o governo impor uma decisão coletiva ou oficial a indivíduos dissidentes, usando os poderes coercitivos do Estado, a menos que essa decisão tenha sido tomada de tal maneira que respeite o status de cada indivíduo de um membro livre e igual da comunidade[4].

Dworkin argumenta que para um processo democrático ser legítimo, ele não precisa somente respeitar a vontade majoritária, mas também o que ele chama de “democratic background”, que é o direto de cada cidadão de participar no processo pelos quais decisões coletivas são tomadas. Essa participação se dá em todo o ambiente público de organização social, onde experiências, informações, opiniões são trocadas e expostas. O processo democrático, segundo Dworkin, somente é legítimo pois o “democratic background” é assegurado em toda a sua liberdade.

Dworkin não é contra leis que protegem minorias de agressões baseadas em atos discriminatórios, o que não é novidade nem se poderia esperar o contrário. Portanto, ele acredita que todos devem obedecer tais leis. Ocorre que, para que isso aconteça, não podemos intervir no que ele se refere como “further upstream”[5], ou seja, no início da elaboração da lei, sob a pena de afetar a própria legitimidade da lei (pois queremos que racistas, homofóbicos, também as cumpram). O argumento central de Dworkin é relacionar o direito à liberdade de expressão com legitimidade da lei. Ele afirma que uma lei somente será legítima se permitirmos um debate amplo sobre o assunto, inclusive permitindo o discurso de ódio.

Grande parte dos opositores de uma determinada lei não verá a necessidade de expressar essa oposição na forma de um discurso de ódio. No entanto, para alguns, a difamação de um grupo faz parte da essência da sua oposição. Dworkin diz que devemos permitir que eles sejam também ouvidos, mesmo que essa forma de expressão seja reprovável. Assim, quando o assunto for votado, a lei será mais legítima, pois passou por cima desse tipo de oposição.

 

Balanceamento de Direitos ou Questão de Princípio?

 

Jeremy Waldron, em sua obra The Harm in Hate Speech, analisa o dano social provocado pelo discurso de ódio e, depois, o propósito substancial das legislações que suprimem esse tipo de discurso. Ele discorre sobre o tipo de sociedade que queremos construir e como discursos discriminatórios não tem lugar nela. Esse não é foco do argumento de Dworkin, que não se importa sobre os efeitos de um discurso discriminatório, mas Waldron reserva, mesmo assim, um capítulo para argumentar sobre as colocações de Dworkin. É essa parte que efetivamente nos interessa.

Ele diz que, segundo Dworkin, a difamação, os discursos discriminatórios, o discurso de ódio é o preço que pagamos para que possamos legitimamente obrigar certas leis que racistas, homofóbicos, misandricos, etc. se opõe. A posição de Dworkin é de que se intervirmos no início da elaboração da lei restringindo certos discursos, o processo democrático de torna menos legítimo, pois alguns não poderão se opor àquela lei livremente, uma vez que sua liberdade de expressão está restringida. Segundo Waldron, essa legitimidade seria afetada em algum grau, mas que não destruiria completamente a legitimidade da lei. Se esse grau for mínimo, “então, pode não gerar um caso convincente contra as leis de discurso de ódio quando os riscos do outro lado (os danos que tais leis podem evitar) são muito altas” (tradução livre) [6].  Assim, somente expressões muito ofensivas seriam vetadas, o que não afetaria a legitimidade sobremaneira. Waldron diz, ainda, que essa restrição não é fundamentada no sentimento pessoal de determinada ofensa, mas seria justificada para proteger “a posição social básica – a dignidade elementar, como afirmei – de membros de grupos vulneráveis, e de manter a segurança de que precisam para seguir suas vidas de maneira segura e digna” (tradução livre) [7].

Aqui, Waldron peca em sua argumentação. Não se trata de um embate entre liberdade de expressão e direito à igualdade, e, sopesando os direitos, a igualdade se sobressai em alguns casos e a liberdade de expressão em outros. Dworkin percebe essa falha e está certo quando afirma que Waldron parece aceitar que alguma legitimidade é sim afetada por normas proibitivas do discurso de ódio:

Waldron parece aceitar, pelo menos neste ensaio, que é de fato um defeito na legitimidade impor uma legislação contra aqueles que não foram autorizados a falar em oposição durante o processo político que produziu aquela legislação, que isso “estraga” o pedigree democrático. da legislação em algum grau. Se a legislação em questão exigisse que todos tivessem seguro de saúde, por exemplo, então a supressão de dissidentes até mesmo “vituperativos” colocaria a legitimidade dessa lei “em questão” (tradução livre) [8].

 

Dworkin explica melhor sua posição em resposta breve às críticas de Jeremy Waldron. Ele afirma que Waldron parece pressupor que o governo tem a obrigação de tratar com igual respeito e consideração todos os membros da comunidade política porque todos esses membros também têm essa obrigação individualmente. Por outro lado, “o governo compromete a legitimidade – não consegue tratar os racistas com o tipo de respeito que qualquer justificativa da democracia assume – quando obstrui sua participação, em seus próprios termos, no processo democrático” (tradução livre) [9]. Então, ao colocar isso numa balança, o que a norma proibitiva do discurso de ódio faz seria justificar a censura a algumas formas de discurso de ódio porque o dano que tais discursos fazem aos grupos alvos é maior que o dano que a lei fará aos racistas ao comprometer seus direitos democráticos. Dworkin diz que “o ‘princípio abstrato’ que supostamente sustenta este argumento é equivocado” (tradução livre) [10]. Ele aponta que existe diferença entre direitos e responsabilidades do governo (nossa responsabilidade quando agimos coletivamente e coercivamente na política) e nossa responsabilidade como indivíduos operando dentro da estrutura coercitiva da lei:

O governo deve tratar o destino de cada cidadão como de igual importância. Mas eu não preciso: não devo a você ou aos seus filhos a preocupação, quando eu atuo como um indivíduo empregando meus próprios recursos, que dou aos meus próprios filhos ou a mim mesmo. O governo não pode adotar nenhuma convicção ética – qualquer opinião sobre a verdadeira base da dignidade humana – e impor essa opinião contra os cidadãos dissidentes. Deve reconhecer um direito de independência ética. Mas reconhecer esse direito significa que nenhum cidadão individual pode ser forçado a aceitar qualquer convicção ética oficial ou ser impedido de expressar suas próprias convicções dissidentes. É uma visão popular, por exemplo, que os ateus não podem ser confiáveis ​​porque não têm crenças que possam fundamentar um compromisso moral. Acho essa opinião profundamente ofensiva porque nega meu status de agente moral, e a agência moral é uma questão que, como coloca Waldron, “as pessoas confiam de forma abrangente e difusa em quase todos os aspectos de suas relações com os outros”. Nenhuma lei seria aceitável, por mais popular que se apoiasse nessa opinião ética. Mas não tenho o direito de que os outros, que acreditam que não têm essa dignidade básica, não mantenham ou expressem essa convicção como indivíduos. Viver numa sociedade justa – uma sociedade cujo governo respeita a dignidade humana – significa que devo aceitar o direito dos outros de me desprezar (tradução livre) [11].

 

E qual é a resposta para a questão, afinal?

 

Para Dworkin, regular o hate speech não é uma questão de balanceamento de direitos, pois o cidadão tem o direito à independência ética de um governo. Uma pessoa pode achar que certa questão é correta e as outras erradas, mas governo não tem o poder de identificar e impor a verdade. Nesse ponto Dworkin está certo: não é uma questão de balanceamento de direitos. E, aqui, ousamos discordar de Dworkin e de certa forma de Waldron também ao afirmar que uma lei criminalizadora do discurso de ódio não afeta a legitimidade de outras leis, inclusive, dá mais legitimidade a qualquer decisão submetida a um processo deliberativo.

Imaginemos que o Congresso estará votando uma lei contra a violência doméstica, como a Lei Maria da Penha. No processo de discussão política em sociedade, existe um sujeito que se opõe à lei dizendo que mulheres devem mesmo apanhar, inclusive, diz que irá demonstrar em um vídeo como você deve bater em uma mulher. Isso não seria permitido, acreditamos que é seguro dizer. Esse homem, então, foi impedido de bater em sua mulher pra expressar sua inconformidade com a proposta legislativa. A lei é aprovada apesar disso. Seria ela menos legítima por não permitimos essa forma de expressão calcada na violência física? A violência verbal é uma forma de violência, a discriminação é uma forma de violência, o discurso de ódio é uma forma de violência. O homem do exemplo dado não precisa bater em sua mulher para demonstrar a contrariedade de uma lei, da mesma forma defendemos que nenhum tipo de violência é necessário para tal fim.

Ninguém nunca vai negar o papel essencial da liberdade de expressão nas práticas de argumentação públicas entre os cidadãos, mas não é o único elemento necessário. Entendemos que a igualdade, o respeito pela dignidade do outro é também um requisito à legitimidade de alguma decisão, afinal, se buscamos o entendimento ou influenciar outras pessoas, trocar informações, experiências, devemos dar a todos igual participação. O discurso de ódio não possibilita isso, pois ele é um tipo de intimidação, ameaça. Uma decisão é legítima se passa por um procedimento democrático que, além de possibilitar a livre manifestação de todos os agentes, é também equitativo.

Pode-se considerar, a partir da perspectiva de Dworkin, que não seria justo forçar leis antidiscriminatórias a racistas, xenófobos, homofóbicos, etc. pois eles não terão a oportunidade de influenciar as outras pessoas de suas visões políticas.

No entanto, não há como acreditar que o espaço público aberto a todo tipo de ofensa, desprezo e diminuição do outro possa servir como um cenário propício para a tomada de decisões. Ele exige respeito mútuo entre debatedores, que devem reconhecer-se reciprocamente como livres e iguais[12].

Em um cenário ideal de discussão política, o hate speech não contribui em nada para tomada de alguma decisão. Não concordamos que o discurso de ódio contribui com o desenvolvimento da democracia e, por isso, deve ser respeitado como uma opinião entre as mais diversas opiniões que se possa ter sobre um tema. Muito pelo contrário, ele é a negação do reconhecimento de um indivíduo como igual, e, assim, mina o próprio processo democrático de tomadas de decisões. O objetivo do discurso de ódio não é ter uma opinião fundada sobre alguma questão política, é de, simplesmente, atacar o outro. Isso não é direito à liberdade de expressão, é direito de discriminar. Opiniões políticas são sustentadas sem a necessidade desse tipo de discurso violento. Se o discurso de ódio é inseparável de uma opinião política, essa opinião é essencialmente discriminatória, pois é necessariamente baseada na consideração do outro como inferior, ferindo a concepção de igualdade fundamental na formação da democracia.

Dworkin diz que a igualdade, ou direito à igual consideração e respeito, é o direito “mais fundamental de todos”[13], antecedendo, inclusive, qualquer outro direito. O direito à liberdade de expressão, por exemplo, é derivado também do próprio direito à igualdade, e não de um direito geral abstrato de liberdade. Nesse sentido, entendemos que liberdade de expressão e igualdade não são direitos excludentes, mas caminham juntos. Ao que parece, é esse o objetivo de normas que proíbem discursos discriminatórios: não de restringir a liberdade, mas de conciliar liberdade de expressão com o direito à igual consideração e respeito.

 

Referências

DWORKIN, Ronald. Foreword. In: Extreme Speech and Democracy. Org: Ivan Hare e James Weinstein. Nova York: Oxford University Press, 2009.

DWORKIN, Ronald. Levando direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. DWORKIN. Ronald. Reply to Jeremy Waldron. In: The content and context of hate speech: rethinking regulation and responses. Nova York: Cambridge University Press, 2012

POTIGUAR, Alex. Igualdade e Liberdade: a luta pelo reconhecimento da igualdade como direito à diferença no Discurso de Ódio. 2009, 155f, Dissertação (Mestrado em Direito, Estado e Constituição) – Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2009. Disponível em: < http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/5328/1/2009_AlexLobatoPotiguar_disserta%C3%A7%C3%A3o.pdf>. Acesso em: 05.01.2014.

WALDRON, Jeremy. Ronald Dworkin and the Legitimacy Argument. In: The Harm in Hate Speech. Cambridge: Harvard University Press, 2012.

[2] DWORKIN, Ronald. Foreword. In: Extreme Speech and Democracy. Org: Ivan Hare e James Weinstein. Nova York: Oxford University Press, 2009. Pg. 1.

[3] DWORKIN op. cit. Pg 4.

[4] DWORKIN op. cit. Pgs. 5-6.

[5] DWORKIN, Ronald. Foreword. In: Extreme Speech and Democracy. Org: Ivan Hare e James Weinstein. Nova York: Oxford University Press, 2009. Pg. 8.

[6] Id. Ibid. Pg. 19.

[7] WALDRON. Jeremy. Ronald Dworkin and the Legitimacy Argument. In: The Harm in Hate Speech. Cambridge: Harvard University Press, 2012. Pg. 22.

[8] DWORKIN. Roland. Reply to Jeremy Waldron. In: The content and context of hate speech: rethinking regulation and responses. Nova York: Cambridge University Press, 2012 P. 1-2.

[9] Id. Ibid. Pg. 2.

[10] Id. Ibid. Pg. 3.

[11] DWORKIN. Roland. Reply to Jeremy Waldron. In: The content and context of hate speech: rethinking regulation and responses. Nova York: Cambridge University Press, 2012 Pg. 3-4.

[12] Potiguar, Alex. Igualdade e Liberdade: a luta pelo reconhecimento da igualdade como direito à diferença no Discurso de Ódio. 2009, 155f, Dissertação (Mestrado em Direito, Estado e Constituição) – Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2009. Disponível em: < http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/5328/1/2009_AlexLobatoPotiguar_disserta%C3%A7%C3%A3o.pdf>. Acesso em: 18.11.2013. Pg. 25.

[13] DWORKIN. Levando direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Pg. XVI.

 

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