OS ÓRFÃOS (The Turning) (2020) foi lançado esse ano no Brasil, apesar de parecer algumas vidas atrás. Estava em cartaz logo antes de os cinemas fecharem.

Dirigido pela Italiana Floria Sigismondi, o filme é uma nova adaptação do livro A Volta do Parafuso (1898), de Henry James. As adaptações anteriores para o cinema mais conhecidas provavelmente são Os Inocentes (1961) e Os Outros (2001), com Nicole Kidman – que na verdade só tem alguns elementos em comum com a obra e não é oficialmente considerada adaptação, apesar de ser sempre lembrada como tal – mas há outras, inclusive uma brasileira de Walter Lima Jr., o Através da Sombra(2015) que conta com a atriz Virginia Cavendish (a Rosinha de Auto da Compadecida) como protagonista.

Os Inocentes é o filme que mais se aproxima do livro, em subtexto e intenções, e, junto de Os Órfãos e Através da Sombra, mantém o enredo principal praticamente intacto: uma moça educada é contratada para cuidar de Flora, uma menina que vive em uma enorme mansão, afastada do mundo, junto de uma governanta. Pouco depois de chegar à casa, o irmão da menina, Miles, é expulso do colégio interno e volta para casa, se tornando responsabilidade da moça, que começa a acreditar que as duas crianças estão sob a má influência de seus antigos cuidadores, Jessel e Quint, que morreram e agora são fantasmas.

 

PERVERSÃO

 

Um dos grandes trunfos literários de A Volta do Parafuso é a ambiguidade. O narrador do livro é um homem (o tio das crianças) que lê as cartas escritas pela Miss Giddens (Kate, em Os Órfãos), que relatam toda a experiência. Assim, temos dois interlocutores entre nós e o que realmente aconteceu na mansão, o que já remove completamente a credibilidade da narração. No decorrer da obra original, assim como em Os Inocentes, nós acompanhamos o medo crescente da protagonista e, junto dela, acreditamos nos fantasmas, já que, quando ela fala com a governanta, a senhorinha parece confirmar o que ela diz. As crianças parecem agir de forma errática e assustadora. Os fantasmas aparecem nas janelas. Porém, tudo fica duvidoso quando a governanta começa a discordar da protagonista e ela parece cada vez mais paranoica e exagerada; sugerindo que aquilo tudo estava acontecendo em sua imaginação. E por que a protagonista do livro teria imaginado essas assombrações?

O subtexto da obra original (que é mais escancarado na produção brasileira Através da Sombra), a grosso modo, trata da sexualidade reprimida da protagonista, que sente uma atração pelo tio das crianças, com a qual ela nunca lida e está sempre presente; o próprio tio acha essa atração desconfortável. Então, presa na mansão isolada com duas crianças, uma delas um charmoso garoto cheio de boas maneiras inglesas, a perturbação sexual torna-se uma sombra opressora sobre essa mulher. Quando ela fica sabendo que os cuidadores anteriores a ela, Quint e Jessel, acabaram desenvolvendo uma relação romântica, Miss Giddens entra em pânico imaginando que as crianças presenciaram de alguma forma a tensão/relação sexual entre os dois cuidadores e isso contaminou suas almas. É por isso que eles falam palavrões, pregam peças, pensam besteiras. A batalha de Giddens (Laura, na produção brasileira) contra os fantasmas é uma batalha contra seus próprios desejos, é uma paranoia criada pela sua própria perversão, pela confusão da repressão sexual vitoriana.

Já em Os Órfãos a escolha da direção é inserir a ambiguidade de outra forma, que sempre se revela mentirosa: praticamente todos acontecimentos que reforçam a paranoia de Kate se dão quando ela sonha e perdem credibilidade quando ela acorda. Talvez a intenção fosse que o espectador ficasse perdido na história, sem lembrar o que aconteceu e o que não aconteceu. Outro elemento que quer deixar claro o desequilíbrio mental de Kate é o fato de que sua mãe está internada por razões de saúde mental. De todo modo, o resultado é que a leitura de que algo sobrenatural está acontecendo não é possível, só restando o plano da confusão psicológica.

A contemporaneidade de OS ÓRFÃOS, nesse sentido, é a mudança de temática: enquanto Quint e Jessel, na história original e nas adaptações, foram um casal, nesse novo filme Quint perseguiu e abusou de Jessel. Além disso, ele levava Miles (o garoto de quem deveria cuidar) para a cidade e o embebedava, provavelmente em bordéis. Quint, por fim, matou Jessel afogada no lago. Aquele mesmo lago, da propriedade, em que o fantasma de Jessel faz uma aparição visível para a protagonista – em todos os filmes. Em Os Órfãos, Quint é um típico homem abusador, que foi uma má influência para a educação de Miles, contaminando-o com sua masculinidade tóxica.

Miles, então, aparece desde a sua entrada no filme como alguém desagradável, que assusta a Kate, contrastando com a criança adorável da obra original. Ele sempre fica próximo demais, fala coisas inapropriadas, entra no seu quarto no meio da noite e dá um beijo em seu rosto.

No lugar de a sexualidade ser o fio condutor de todo o mal, aqui o patriarcado encarnado por Quint é o que perverte a inocência do garoto Miles, tornando-o um jovem perturbado, agressivo, que foi expulso da escola. O novo filme atualiza a problemática já tão explorada nas adaptações anteriores e ainda adiciona o contexto da confusão mental tangenciando toda a história que, adequado ao gênero de terror, extrapola um problema (a narrativa de que as mulheres que se afetam com o machismo são loucas), tornando-o agente real num microcosmo fictício assustador; sem, porém, reduzir a problematização da toxicidade da influência masculina machista na criação de uma criança.

O personagem do tio das crianças, por quem Kate se apaixonaria, inclusive, não entra nesse filme. Não haveria necessidade para a trama, uma vez que os desejos de Kate não são uma questão.

Em dado momento, Kate encontra uma foto que Quint tirou de Jessel num contexto íntimo. Parece se compadecer com a situação da moça e entra numa paranoia de que ela mesma, agora, está sendo perseguida – mas por Quint (uma entidade fastasmagórica) ou por Miles? Algumas imagens fortes que consolidaram isso no filme foram: o manequim feminino no quarto de Kate que Miles espetou os mamilos com dezenas de alfinetes; a visão que Kate tem de mãos passando, assediadoras, pelo seu corpo.

Assim, a recontextualização do conflito admite que o medo do machismo e das figuras masculinas é o que cria a atmosfera adequada para Kate começar a perder a sanidade, a medida que convive com Miles e que descobre sobre a história de Quint e Jessel. A escolha dessa releitura assume uma roupagem extremamente importante para provocar reflexões no espectador; e é mais um degrau para a reconstrução do imaginário constituinte das ficções que consumimos.

 

Paula Pardillos é roteirista e escritora. Atualmente produz críticas sobre filmes de terror para seu blog e sua coluna no setcenas; além de contos e curtas-metragem de terror.