Quando Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser se unem para lançar uma obra, não tem como o resultado ser nada menos do que icônico. Lançado no início deste ano simultaneamente em diversos países junto às convocações para uma greve geral no Dia Internacional da Mulher, Feminismo para os 99%: Um manifesto já nasce sendo um clássico.

O prefácio inspirador da Talíria Petrone, Deputada Federal pelo PSOL, é um ótimo ponto de partida para a obra. Ela destaca a urgência do feminismo no Brasil, na América Latina e no Mundo. Mas não qualquer feminismo, pois não é todo feminismo que “liberta, emancipa, acolhe o conjunto de mulheres que carregam tantas dores nas costas” [1]. E este feminismo a qual se critica é o feminismo liberal que, junto ao populismo reacionário, é visto como um obstáculo para a verdadeira emancipação feminina.

“O feminismo dos 99% é a alternativa anticapitalista ao feminismo liberal que se tornou hegemônico nas últimas décadas, devido ao reduzido nível de lutas e mobilizações em todo o mundo. O que entendemos como feminismo liberal é um feminismo centrado nas liberdades e a igualdade formal, que procura a eliminação da desigualdade de gênero, mas através de meios que apenas são acessíveis às mulheres da elite”, afirma Cinzia Aruzza em uma entrevista para o portal Carta Maior.

É um feminismo centrado nas mulheres de elite, uma vez que permite “pequeno número de mulheres privilegiadas escale a hierarquia corporativa e os escalões das Forças Armadas” [2]. Portanto, ao invés de abolir uma hierarquia social, pretende diversificá-la e torná-la mais “inclusiva”. Assim, é um feminismo pautado muito mais na ascensão individual de algumas mulheres ao invés da libertação de todas.

O manifesto, portanto, clama pela superação do feminismo liberal que está falido. E se o feminismo liberal não é a solução, mas o problema, que feminismo queremos? Como esse feminismo deve ser? Segundo as autoras, precisamos nos distanciar do liberalismo que tem posto o próprio feminismo em crise a partir de um feminismo anticapitalista:

O capitalismo certamente não inventou a subordinação das mulheres. Esta existiu sob diversas formas em todas as sociedades de classe anteriores. O capitalismo, porém, estabeleceu outros modelos, notadamente “modernos”, de sexismo, sustentados pelas novas estruturas institucionais. Seu movimento fundamental foi separar a produção de pessoas da obtenção de lucro, atribuir trabalho às mulheres e subordiná-las ao segundo. Com esse golpe, o capitalismo reinventou a opressão das mulheres e, ao mesmo tempo, virou o mundo de cabeça para baixo. [3]

Na entrevista citada anteriormente, Aruzza esclarece que reprodução social “refere-se às atividades e o trabalho que implica a reprodução biológica, quotidiana e geracional, da força de trabalho”. Esse trabalho assalariado de produção de pessoas, normalmente exercido por mulheres, é imprescindível ao capitalismo que depende da exploração do trabalho para obtenção de lucro. “Na sociedade capitalista, a organização da reprodução social se baseia no gênero: ela depende dos papéis de gênero e entrincheira-se na opressão de gênero” [4] (grifos no original) .

O conceito de reprodução social é melhor explicada no posfácio do livro, o importante destacar, por ora, é que se trata de uma análise essencial para entender como o patriarcado se alia fundamentalmente ao capitalismo. Este, por sua vez, é a base de uma crise generalizada “da sociedade como um todo” [5]. Portanto, um feminismo para os 99% deve confrontar o cerne desta crise e, assim, é imprescindível que seja um feminismo anticapitalista.

A crise é social, econômica, política, ecológica. As relações sociais no capitalismo são enredadas de múltiplas violências que o feminismo também deve combater. É o caso do machismo, da regulação da sexualidade feminina e do racismo, que recebem atenção especial em diferentes capítulos. Além disso, outros temas postos em debate referem-se à destruição da Terra promovida pelo capital e a crise política fundamentada na essência antidemocrática do capitalismo.

São esses os principais pontos do tipo de feminismo que se pretende construir. A intenção, portanto, do Manifesto é de “efetuar uma operação de resgate e uma correção de curso – para reorientar as lutas feministas em uma época de confusão política” [7]. Por isso, o tom do manifesto é de insurgência, de convocação para a rebeldia, pela união das mulheres trabalhadoras contra um sistema que nos explora e nos mata.

 

Dito isso…

Assinada por Joênia Wapichana, deputada federal pertencente ao partido Rede Sustentabilidade, a orelha do livro diz que: “Nem a direita nem as esquerdas respondem ao desafio das diversidades, sejam elas sociais, sejam naturais – sexuais, culturais, étnicas, de biomas, de aspirações ou visões de mundo. Precisamos ir além das dicotomias, de um mundo dividido em apenas duas opções.”

Feminismo para os 99%: Um manifesto é obra com um chamado claramente de radicalização à esquerda. A orelha do livro, em que pese o respeito pela autora, é absolutamente contraditória. Logo em seguida, ela continua, afirmando que “as relações de poder precisam ser revistas, subvertidas, transformadas”. Não. A lição que fica do manifesto é que precisam ser abolidas. É incompreensível como a Editora opta por colocar à primeira vista das possíveis leitoras um texto tão dissonante do que é a obra.

Dito isso, confiram o livro. Vale a pena cada linha.

 

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Referências:

[1] Pg. 12.

[2] Pg 37.

[3] Pg. 51-52.

[4] Pg. 53

[5] Pg. 45

[6] Pg. 88.

[7] Pg. 101

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