Ilustração por Raquel Thomé. 

No dia 4 de maio, foi publicado no Diário Oficial um decreto que prorroga a licença-paternidade de servidores públicos federais para 15 dias, além dos cinco dias já concedidos anteriormente. Embora o decreto represente um avanço tímido, é ainda assim uma vitória, tanto para os homens, quanto para nós. Afinal, foi a mobilização de grupos de mulheres e de grupos feministas durante o processo de elaboração da Constituição de 1988 que desencadeou o reconhecimento do direito à licença-paternidade no Brasil [1].

Jacqueline Pitanguy, líder do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher na época, conta que as mulheres foram “duramente criticadas e até mesmo ridicularizadas por amplos setores do Congresso Nacional” ao apresentarem a proposta [1]. Os opositores da licença-paternidade argumentavam que elas estariam “incentivando a ausência dos homens do trabalho” [1], e segundo Lola Aronovich, Mario Amato, presidente da Fiesp na época, declarou que elas estavam loucas e queriam acabar com o capitalismo [2]. Apesar de todas as dificuldades, Jacqueline afirma que as mulheres estavam “convencidas da relevância desta licença como um instrumento de mudança ideológica no papel dos homens frente à paternidade” [1].

Como assim? Bom, em uma família patriarcal tradicional, homens e mulheres têm, como sabemos, papéis bem determinados. O homem é o chefe de família, responsável pelo sustento da esposa e de seus filhos. Nessa configuração o pai é, em suma, um mero provedor e rígido disciplinador. É à mulher, a dona-de-casa, que cabe a criação, o cuidado e o carinho com os filhos. Esses papéis se encaixam em uma hierarquia rígida, em que no topo está o pai, no meio, a mãe e, na base, os filhos.

Com o passar das décadas e entrada massiva da mulher no mercado de trabalho, as famílias foram se reconfigurando e esses papéis, antes tão rígidos, foram se tornando mais fluidos. Porém, as mudanças são lentas. Uma pesquisa recente do IBGE revelou, por exemplo, que a mulher trabalha cada vez mais que o homem: se, em 2004, ela trabalhava 4 horas a mais do que o homem por semana, hoje, são 5 horas a mais [3] – tudo isso enquanto recebem, em média, salários 30% menores, vale ressaltar [4]. Outro estudo, dessa vez, da Universidade de Michigan, mostrou que ter um marido cria 7 horas adicionais por semana de trabalho doméstico para uma mulher [5].

Como bem pontua Stanley Souza Marques em seu artigo Ampliar a licença paternidade para despatriarcalizar o Estado e a sociedade, “A despeito das transformações em curso, a responsabilidade atribuída às mulheres pelo trabalho e organização da vida doméstica é indicativo de uma divisão sexual do trabalho intocada” [1].

A criação da licença-paternidade representa uma fissura na família patriarcal, à medida que valorizam a figura do pai como cuidador, e não mero provedor. Porém, como ressalta Pinheiro, a disparidade ainda existente entre os benefícios garantidos a mães e pais ilustra o quanto “o   aparato legal contribui no mínimo para a manutenção e a reprodução de uma realidade bastante desigual no que diz respeito à divisão sexual   do   trabalho   reprodutivo”  [6].

Se hoje o pai não é completamente isentado da responsabilidade pela criação dos filhos, é também verdade que ainda se espera muito mais das mulheres do que deles – basta olharmos os dias de licença concedidos a uma e ao outro. Ou, ainda, ao nos depararmos com afirmações como a do Deputado Júlio Delgado (PSB – MG), que, em 2013, deu parecer contrário à licença-paternidade de 30 dias argumentando que não era possível conceder uma licença-paternidade similar à licença-maternidade, porque “ela jamais proporcionará os mesmos efeitos à criança, já que por questões fisiológicas a relação entre mãe e filho é totalmente diferenciada da que ocorre em relação ao pai” [7].

Sobre a mãe, portanto, recai um apelo mítico: a maternidade, em sua forma romantizada, é tida como um dom natural e, portanto, comum a todas as mulheres. Ser mãe é a maior benção possível na vida de uma mulher, e não há ser humano que nos ame mais do que nossa mãe. Do pai, pelo contrário, pouco se espera.

Quantas vezes ouvimos perguntas do tipo Seu marido te ajuda com o bebê? Ele ajuda em casa? Muitas, não é? E quantas vezes ouvimos perguntarem aos maridos Sua esposa te ajuda com o bebê? Ela ajuda em casa? Arrisco dizer que nenhuma. Ao naturalizarmos as ideias socialmente construídas de amor materno e de amor paterno, às quais claramente atribuímos valores diferentes, enraizamos uma expectativa tão baixa em relação à paternidade que passamos a tratar como herói qualquer homem que se preste a fazer o mínimo do mínimo. Quem não conhece um homem que, embora ausente da vida dos filhos ou pouco afetuoso, recebe da família e dos amigos o selo de “bom pai” por simplesmente bancar seus filhos?

É um paradoxo. Por um lado, romantizamos a imagem da mãe, a colocando sobre um pedestal, enquanto esvaziamos a imagem do pai, o relegando ao mero papel de provedor. Por outro, ao fazermos isso, jogamos toda a responsabilidade pelos filhos sobre a mãe e isentamos o pai; e, por esperarmos muito dela e pouco dele, acabamos glorificando o homem que pouco faz, por supostamente se destacar entre os demais, que nada fazem, e desprezando os esforços da mãe que dá tudo de si, mas que continua longe do ideal inalcançável da mãe perfeita.

É preciso desmitificar o papel da mãe e incentivar a atuação do pai como cuidador para que homens e mulheres possam, de fato, ter o mesmo peso na criação dos filhos, e para que se promova uma paternidade realmente participativa, com a construção de relações de afeto e de cumplicidade entre pais e filhos. E, para que tudo isso aconteça, é essencial que o Estado garanta aos homens o direito de estar com seus filhos.

Como ressalta Souza Marques [1], é evidente que a licença-paternidade não representa por si só:

(i) a garantia de vivência de novas masculinidades e de novas paternidades, (ii) da saúde materna e infantil,26 (iii) da promoção da equidade de gênero, (iv) da reorganização sexual do mundo do trabalho, (v) da conciliação (mais) equitativa das responsabilidades familiares e do trabalho entre homens e mulheres, (vi) da educação e dos cuidados na primeira infância e na adolescência, (vii) e da desprivatização da esfera familiar e do exercício do cuidado.

Porém, continua Marques [1], junto a outros fatores, como a criação de creches e a flexibilização da jornada de trabalho, ela pode impulsionar o questionamento das convenções sociais de gênero, da divisão sexual do trabalho e da divisão das tarefas domésticas. Como o trabalho doméstico e com os filhos fazem parte do “significado patriarcal de feminilidade, do que é ser mulher”[8], a licença-paternidade e sua ampliação perturbam a dicotomia patriarcal da “mulher cuidadora”/“homem provedor”. Ela é, portanto, fundamental para a subversão do ambiente doméstico, atualmente reprodutor de uma lógica extremamente patriarcal e, portanto, para a liberdade das mulheres.

Referências

[1] MARQUES, S. S. Ampliar a licença-paternidade para despatriarcalizar o Estado e a sociedade. Gênero e Direito, Paraíba, v.4, n.1,  2015. Disponível em: < http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/ged/article/view/24479/13615> Acesso em: 4 de maio de 2016.

[2] ARONOVICH, L. Acredite se quiser: ampliar licença-paternidade é pauta feminista. Escreva Lola Escreva. Disponível em: < http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br/2013/11/acredite-se-quiser-ampliar-licenca.html> Acesso em: 4 de maio de 2016.

[3] ALMEIDA, C. COSTA, D. Que horas ele chega? O Globo. Disponível em: < http://oglobo.globo.com/economia/que-horas-ele-chega-mulher-trabalha-cada-vez-mais-que-homem-18718278> Acesso em: 4 de maio de 2016.

[4] REDAÇÃO. Homens recebem salários 30% maiores que as mulheres no Brasil. Observatório de Gênero. Disponível em: < http://www.observatoriodegenero.gov.br/menu/noticias/homens-recebem-salarios-30-maiores-que-as-mulheres-no-brasil/> Acesso em: 5 de maio de 2016.

[5] CASTRO, A. C. Estudo revela que ter um marido cria sete horas adicionais de trabalho doméstico para uma mulher. Claudia. Disponível em: < http://mdemulher.abril.com.br/familia/claudia/estudo-revela-que-ter-um-marido-cria-sete-horas-adicionais-de-trabalho-domestico-para-uma-mulher> Acesso em: 4 de maio de 2016.

[6] PINHEIRO et. al., 2009, apud MARQUES, S. S. Ampliar a licença-paternidade para despatriarcalizar o Estado e a sociedade. Gênero e Direito, Paraíba, v.4, n.1,  2015. Disponível em: < http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/ged/article/view/24479/13615> Acesso em: 4 de maio de 2016.

[7] CORRÊA, R. Igualdade de gênero começa em casa – ou quem tem medo da licença paternidade? Carta Capital. Disponível em: < http://www.cartacapital.com.br/blogs/feminismo-pra-que/igualdade-de-genero-comeca-em-casa-ou-quem-tem-medo-da-licenca-paternidade-4863.html> Acesso em: 5 de maio de 2016.

[8] PATEMAN, 1993, apud MARQUES, S. S. Ampliar a licença-paternidade para despatriarcalizar o Estado e a sociedade. Gênero e Direito, Paraíba, v.4, n.1,  2015. Disponível em: < http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/ged/article/view/24479/13615> Acesso em: 4 de maio de 2016.

 

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