A jornalista e pesquisadora Nora Bouazzoni inicia seu livro Fomismo – quando o machismo senta à mesa (2018) com um questionamento bem direto: “Por que as mulheres, detentoras de um saber há anos transmitido de mãe para filha, não ocupam as cozinhas dos restaurantes?”. Apesar de alguns avanços na esfera organizacional e social, as cozinhas profissionais e a figura do chef ainda possuem resquícios de machismo. Trata-se de uma função remete a ideia de autoridade, sendo ainda pouco ocupada pelas mulheres.

A cozinha profissional, principalmente nos restaurantes, é um espaço eminentemente masculino e masculinizante, criador de obstáculos e dificuldades para a permanência das mulheres. Além das responsabilidades familiares e domésticas, a própria cozinha profissional funciona segundo uma lógica masculina e agressiva, que superestima a força física e um exercício de comando sexuado, levando muitas vezes ao assédio moral e sexual sendo excludente para as mulheres. Nesse sentido, a divisão sexual do trabalho ajuda a manter estereótipos sexistas, como por exemplo, que cozinhar em casa é um dever da mulher no cotidiano dos lares familiares.

A cozinha “viril”, predominantemente masculina, apresenta alguns símbolos para Barbosa (2012) , mostrando que no campo da cozinha profissional, há uma releitura da atuação masculina e feminina. Isso porquê neste ambiente sua organização obedece e reflete uma estrutura social dominada por homens, deixando claro que a construção social do imaginário do trabalhador da cozinha menciona as mulheres como cozinheiras no espaço doméstico e os homens como profissionais. Portanto, o homem na cozinha é um trabalhador culturalmente reconhecido porque o faz por escolha, enquanto que a mulher (dentro de casa) o faz, porque assim lhe é “imposto”. Bourdieu (2007) explica que “os princípios da dominação masculina legitimam o status do homem como sexo dominante e o privilegiam na ocupação de posições de poder nas esferas social, política e econômica”. Podendo, assim, dificultar o acesso das mulheres a esses ambientes e a determinadas funções. Dentro das cozinhas profissionais, a divisão sexual do trabalho se expressa por meio da diferenciação que traz hierarquia as atividades.

Briguglio (2020) explica que há uma separação de atividades que não são realizadas por mulheres, atividades na cozinha delegadas com exclusividade aos homens. Existe, por exemplo, uma forte associação de grelhados, fogo e carne com os homens, sendo também os cargos mais valorizados nas cozinhas uma vez que considerados os trabalhos mais nobres. Por outro lado, a confeitaria e a cozinha fria, por exemplo, são atividades mais associadas às mulheres. A explicativa para isso é que são atividades que exigem um tipo de trabalho associado às características atribuídas como “naturais” da mulher, tal como delicadeza, paciência, cuidado e atenção para com os detalhes.

Elisabeth Souza-Lobo ([1991] 2011) aponta que essa categorização da ‘feminilidade’ associada ao trabalho delicado e monótono está associada às necessidades produtivas. Segundo ela, toda aquela delicadeza atribuída às mulheres que as tornariam incapazes de realizar trabalhos pesados e insalubres desaparece e passam a ser consideradas adequadas para elas no momento em que os setores produtivos o exige. Isso explicaria os diversos motivos que levam as mulheres a ter baixa participação em cargos de poder e à diminuição da figura feminina.

Um exemplo a destacar é o dos debates públicos em que as mulheres têm que lutar pelo seu discurso e, quando o fazem, com frequência, são interrompidas e dão a palavra a um homem (BOURDIEU, 2007:74). Partindo desta lógica, o mundo do trabalho funciona como uma repetição da estrutura familiar, com os chefs (quase sempre homens), exercendo a autoridade paternalista, sobrecarregados de trabalho e “protegendo” seus subordinados, principalmente se forem mulheres.

São poucas as que conseguem ascender ao cargo máximo e geralmente suas atuações ficam restritas à confeitaria, por ser uma área na gastronomia mais “delicada”. Mesmo com um intensivo treinamento profissional, muitas mulheres desistem de trabalhar em restaurantes e tomam carreiras paralelas na gastronomia – criando buffets ou sistemas de entrega, fazendo festas particulares ou até mesmo escrevendo sobre comida. Um reflexo das atitudes machistas e misóginas na cozinha pode ser visto nos programas de reality show dos dias de hoje, nos quais as mulheres são, muitas vezes, alvo de piadas e desprezo.

Segundo Roscoe (2012) as habilidades mais respeitadas na cozinha são a capacidade de trabalhar por longas horas, sacrificar o tempo pessoal, suportar dor física e competir “com os outros meninos”, características muito associadas à masculinidade. Às mulheres que pretendem sobreviver nesse espaço só lhes resta se tornarem mais fortes ou até mesmo se masculinizarem em uma tentativa de se proteger do assédio que assume diversas formas e é naturalizado de distintas maneiras dentro da cozinha.

A discussão e construção sociocultural das relações de gênero se faz tão imediata, no entanto ainda falta muito para que as cozinhas profissionais comerciais se tornem um ambiente seguro e aberto às mulheres. Este texto é também uma forma de abrir caminhos e expor a absurda discriminação contra a qual os trabalhadores homens da área, por “tradição”, compactuam.

 

Aline Amorim. Graduada em Gastronomia; pós-graduanda em História Social e Contemporânea pela FUNIP; feminista e pesquisadora sobre Relações de gênero e trabalho nas cozinhas domésticas e profissionais; Alimentação e Feminismo.

 

Referências

BOUAZZOUNI, N. Fominismo. Quando o machismo senta à mesa. Belo Horizonte: Quintal Edições, 2018.

BARBOSA, L. Os donos e as donas da cozinha. In: FREITAS, M. E.; DANTAS, M. (Orgs.) Diversidade sexual e trabalho. São Paulo: Cengage Learning, 2011.

BOURDIEU, P. A dominação masculina. Tradução Maria Helena Kühner .12. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.

BRIGUGLIO, B. Cozinha é lugar de mulher? A divisão sexual do trabalho em cozinhas profissionais. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, 2020.

SOUZA-LOBO, E. A Classe Operária Tem Dois Sexos – Trabalho, Dominação e Resistência. 2ª ed. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2011.

ROSCOE, E. Stirring the Pot: Women in a Male Dominated Kitchen. In: Verstehen, Volume IX, publicado anualmente pela Sociology Student’s Association. Disponível em: https://mcgillverstehen2012.weebly.com/stirring-the-pot-women-in-a-male-dominated-kitchen.html Acesso em 27 Jan 2021.

 

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