Escrevo este texto a partir da minha vivência de mulher que sempre compreendeu e defende a educação como um dos únicos caminhos possíveis de independência, que sabe que essa também é a realidade de muitas outras e, portanto, acredita que ela pode ser muito mais transformadora do que é.

Falar de educação envolve uma dimensão extremamente plural, como afirma Brandão “não há uma forma única nem um único modelo de educação” (1983, p. 4). Por isso prefiro falar de educações. Educações essas que englobam, mas vão muito além do denominado ensino formal, do diploma universitário ou dos títulos de pós-graduação. Aqui, vou explorar a educação enquanto uma construção coletiva que, pela minha percepção social, seja qual for sua referência, quase sempre foi e é orientada por mulheres.

Mães, avós, irmãs, amigas, professoras. Essa é a rede que nos envolve desde o nascimento, a qual nos apoiamos e espelhamos. Sabemos que neste mundo sistematizado pelo patriarcado essas figuras não estão no cerne das tradicionais teorias sociais, mas vou protagoniza-las aqui não somente por esse escrito estar disposto em um blog feminista, mas, principalmente, porque realmente entendendo a educação como um processo que em sua preponderância começa com as mulheres.

Antes de chegar no ápice dos argumentos sobre o que esse texto se propõe a dizer preciso fazer uma contextualização histórica que nos faça refletir sobre a nossa educação formal, ou simplesmente, educação escolar.

Compartilho das ideias de Paulo Freire o qual afirma que uma educação libertadora constrói-se a partir de uma educação problematizadora (Freire, 1987), entretanto a escola não nasceu como um espaço que produz essa educação. E esse espaço de opressão não é somente para mulheres, mas para quaisquer grupos (os negros, por exemplo) socialmente oprimidos e substancialmente silenciados pela História no processo de socialização

Mas há uma particularidade que envolve as mulheres, pois apesar do ensino formal tardio explicado por “desde o período colonial, a educação feminina era restrita ao lar e para o lar, ou seja, aprendiam atividades que possibilitassem o bom governo da casa e dos filhos” (Aragão e Kreutz, 2010, p. 109), pesquisas como o Censo da Educação Superior de 2016 apontam que somos maioria nos cursos de ensino superior, quase 50% da concentração do corpo discente e 80% do corpo docente da educação básica no Brasil.

Esse último termo claramente explicita a face do curso da educação formal das mulheres, já que, parece transportar para o ambiente profissional aquilo que na concepção dos homens poderia ser mais próximo de aspectos como o cuidado e o papel materno e doméstico os quais as mulheres supostamente estariam mais familiarizadas.

A questão é que mesmo passado tanto tempo essa mudança de paradigma não foi suficiente para transformar a realidade social. Nós mulheres ainda não nos reconhecemos nos lugares de referência do ensino formal. Não nomeamos escolas, não somos maioria nas reitorias e departamentos universitários, não estamos no planejamento das políticas públicas de educação, não estamos nos livros didáticos, não somos referências bibliográficas.

Por isso, o ambiente escolar, mesmo que possa significar possibilidades de libertação no mundo prático, ainda pode ser considerado um ambiente opressor já que não permite que nos reconheçamos nesse espaço.

Além disso, existem outras dimensões da opressão sexista que tange essa discussão. Nós mulheres, embora, como já mencionado, sejamos maioria nas universidades, possuímos mais dificuldade de arrumar emprego, ganhamos salários mais baixos que os homens nos mesmos cargos, não ocupamos cargos de chefia, lidamos com a dupla jornada exaustiva de trabalho (profissional e doméstico) e temos nossa competência e autoridade frequentemente testadas e rebaixadas.  Dessa forma, estamos limitadas também pelo sistema de desfrutar daquilo que uma educação de qualidade poderia nos proporcionar.

Então, a partir dessa pequena análise histórica, como debater educação libertadora? Onde ela começa? E o que ela realmente significa para nós mulheres? Essas perguntas não são tão fáceis de serem respondidas, pois envolvem um vasto debate que talvez nem caiba nesse pequeno texto, mas, mesmo assim, vou me arriscar.

Segundo Monika Von Koss, tratando sobre a pré-história, “não prevaleceria nessa época um domínio das mulheres da mesma forma que existe dos homens no patriarcado. O que existiria seria um regime de cooperação e troca, o qual as mulheres coordenariam” (MORELATO, p. 549). Me apropriando dessa ideia e traçando um paralelo com nossa sociedade machista a qual majoritariamente ou, em alguns casos, exclusivamente, atribui a responsabilidade às mulheres pela educação e com a definição de educação dada por Brandão “a educação é uma prática social […] cujo fim é o desenvolvimento do que na pessoa humana pode ser aprendido entre os tipos de saber existentes em uma cultura, para a formação de tipos de sujeitos, de acordo com as necessidades e exigências de sua sociedade, em um momento da história de seu próprio desenvolvimento” (1989, p 33), considero que existe uma dimensão que vincula centralmente, pela troca de saberes, às mulheres ao processo de educação.

A nós mulheres foi designado o papel de educar. Certamente essa função é uma construção social como diversas outras que, apesar de não determos à título de escolha, faz parte da nossa história enquanto seres sociais.

Penso ainda que, o próprio ser feminista está inserido nesse âmbito. Para a maioria das mulheres esse contato e posterior autoafirmação não foi possível somente através dos estudos formais e envolvimentos com o movimento, mas pela educação que tivemos daquelas referências [mães, avós, irmãs, amigas e professoras] citadas no início desse texto e pelas trocas tidas com outras mulheres ao longo da vida. Mulheres essas que, muitas vezes, com pouco ou nenhuma instrução formal, nos ensinaram sobre o significado de sororidade sem ao menos nunca ter ouvido essa palavra.

Para mim, é neste lugar e com as mulheres que a educação, sobretudo o que chamamos de educação libertadora, começa e ela significa, sobretudo, saber que somos livres, fortes e podemos ir contra as estatísticas que nos oprimem. Sendo assim, afirmo sob uma perspectiva até otimista, acreditar que a educação só será de fato libertadora para nós mulheres quando conseguirmos envolver todas nessa nossa rede de apoio mútuo que torna o mundo um lugar mais justo.

 

Eduarda de Souza Monteiro. Sou do Rio de Janeiro, tenho 21 anos e sou graduanda em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Amo tratar sobre educação desde que me entendo por gente, portanto, não é à toa que escolhi ser professora. Tive contato com o feminismo durante a adolescência, em 2015, acho, e desde então não me reconheço como uma mulher não feminista.

 

 

REFERÊNCIAS

ARAGÃO, Milena; KREUTZ, Lúcio. Do ambiente doméstico às salas de aula: novos espaços, velhas representações. Conjectura, Caxias do Sul, v.15, n.3, p. 106-120, dez. 2010. Disponível em:  <www.ucs.br/etc/revistas/index.php/conjectura/article/download/…/400> . Acesso em: setembro de 2020.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação? 19. ed. São Paulo: Brasiliense, 1989.

DAVIS, Angela. Educação e libertação: a perspectiva das mulheres negras. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2018.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

International Academy for Modern Matriarchal Studies and Matriarchal Spirituality. Matriarcado. Disponível em: <https://www.hagia.de/en/international-academy-hagia/>. Acesso em: setembro de 2020.

MORELATO, Adrienne Kátia Savazoni. Para ir além das dicotomias. Revista de  Estudos Feministas. vol.14 no.2. Florianópolis – SC. May/Sept. 2006. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2006000200014>. Acesso em: setembro de 2020.

INEP. Mulheres são maioria na educação superior brasileira. Disponível em: <http://portal.inep.gov.br/artigo/-/asset_publisher/B4AQV9zFY7Bv/content/mulheres-sao-maioria-na-educacao-superior-brasileira/21206>. Acesso em: Setembro de 2020.

PEREIRA, Ana Cristina Furtado; FAVARO, Neide de Almeida Lança Galvão. História da mulher no ensino superior e suas condições atuais de acesso e permanência. Disponível em: <https://educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2017/26207_12709.pdf>. Acesso em: setembro de 2020.

VENDRAMINE, Bárbara Fernanda. A presença das mulheres na liderança das manifestações culturais com indicações de uma possível educação matriarcal. Anais eletrônicos do XVI Congresso Brasileiro de Folclore – UFSC, Florianópolis – SC, 2013. Disponível em: http://www.labpac.faed.udesc.br/presenca%20da%20mulher_barbara%20vendramine.pdf. Acesso em: setembro de 2020.

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