“No que diz respeito a silenciar mulheres, a cultura ocidental tem milhares de anos de prática.” Uma vez registrada pelas retinas, a frase apresentada no início de “Mulheres e poder – Um manifesto” produz ecos que atingem desde as pontas dos pelos dos braços até o núcleo dos ossos, como toda a verdade inconveniente é capaz de produzir.

Além da sensação provocada, essas palavras poderiam encapsular o livro da estudiosa classicista britânica Mary Beard. Até a última linha, as duas palestras reproduzidas na obra falam sobre uma realidade multiplicada ao longo da história mundial.

A escritora aponta vínculos entre expressões da misoginia na literatura, mitologia e vida política greco-romana com o tratamento reservado a mulheres que assumem ou lutam por poder e pelo direito à fala na contemporaneidade.

ATUALIDADE

As tentativas atuais de impor descrédito, inibição e ridicularização apontadas por Beard incluem comportamentos nas reuniões de escritórios que diferenciam a fala feminina e a masculina, diminuindo locutoras e suas ideias. Há ainda o deboche e o desrespeito direcionado a mulheres em cargos públicos como forma de as desautorizar, que se manifestam em nuances diferentes aos designados a seus colegas homens.

Os ataques dos trolls em redes sociais que utilizam ameaças de estupro e outras formas de violência como uma forma de conter pelo medo figuras femininas que busquem ter voz também são lembrados nas palestras. A própria autora já recebeu “uma torrente de insultos” pela internet, como ela mesma relata.

As palestras não se limitam à narração da experiência pessoal da estudiosa. A ex-primeira-ministra britânica, Margaret Thatcher, a ex-senadora, ex-secretária de Estado e candidata à presidência dos Estados Unidos, Hillary Clinton, e a ex-presidente do Brasil, Dilma Rousseff são algumas das personagens dos séculos XX e XXI que surgem nos ensaios que compõem a obra como exemplos que comprovam o raciocínio de Beard.

A autora destaca como, devido a um desconforto que parte da sociedade ainda tem em relação a mulheres em posição poder, elas foram massacradas por discursos populares ou midiáticos que as resumiam à sua aparência ou roupas. Elas também refletem uma imposição de mudanças de voz e estilo que as tornem mais próximas de um ideal masculino para serem respeitadas, e receberam humilhação em críticas, charges e piadas. É assim que se manifestam os reflexos duradouros do sexismo como meio de controle.

 

MEDUSA

Um abuso estranhamente recorrente abordado por Beard é a comparação entre essas mulheres da política contemporânea e a Medusa, uma figura da mitologia grega silenciada pelos imortais e abatida por um homem, conhecida por ser repulsiva. Punida por uma deusa após sofrer um estupro praticado por outro deus em um templo, ela tem sua vitimização muitas vezes ignorada diante da vilanização que sofre.

Esse tratamento direcionado à Medusa não é o mesmo que a sociedade oferece a vítimas de casos de abusos sexuais ainda hoje em dia? A culpabilização e a negação à fala não são impostas às mulheres que denunciam agressões do cotidiano? Não foi o que aconteceu também com com as celebridades que se pronunciaram sobre assédio sexual no movimento que ficou conhecido como #MeToo (“Eu também”)?

A associação entre a mulher pública e o monstro das histórias gregas foi uma das muitas formas de ofensas que alcançaram tanto Clinton como Rousseff, como destaca Beard. A norte-americana foi transformada em uma Medusa executada por um heroico Donald Trump, seu concorrente nas eleições, em montagens fabricadas pelos opositores da candidata.

A brasileira foi fotografada diante de uma pintura de Caravaggio, em uma simbologia intencional que insinua que a presidente estava encarando o espelho ao observar o ser com a cabeça coberta por cobras retratado no quadro.

Crédito: Ueslei Marcelino/REUTERS

É impossível para quem lê não se recordar também da criação de adesivos com apelo sexual por brasileiros como forma de menosprezar Dilma em uma suposta vingança pela alta no preço dos combustíveis (ação não repetida com seu sucessor quando o etanol e a gasolina encareceram durante a gestão dele).

Nesse caso e nos casos citados no livro, fica clara a necessidade de questionar o que essa espécie de tratamento significa para a população feminina como um todo, independentemente do espectro político com qual se identifica quem faz a análise.

 

ANTIGUIDADE

 

A Medusa não é a única personagem clássica lembrada no livro. Desde a introdução, Beard expõe uma série de ações reais ou artísticas nas quais homens calam as mulheres, a começar por como Telêmaco e sua mãe, Penélope na “Odisseia”. A autora demonstra como o filho nega à sua progenitora o direito de se pronunciar em uma atitude que o poeta narrador do épico, Homero, apresenta como um sinal da maturidade do rapaz.

Há ainda mulheres cuja língua foi decepada num silenciamento após uma violação sexual, mulheres comparadas a animais em tentativas de se pronunciar politicamente, mulheres sem direito a defesa. Beard comprova com exemplos históricos como o poder do homem é reforçado pelo silenciamento da mulher.

A autora tem respaldo para tratar das raízes do machismo que ainda rodeia noções sobre poder, discurso, retórica e até timbre das locutoras. Professora de Clássicos na Universidade de Cambridge, ela é conhecida como a classicista mais popular da Grã-Bretanha e autora de um número considerável de livros sobre a história da antiguidade. Trata-se de uma estudiosa que domina o tema.

O livro também aponta avanços – que podem ser considerados tímidos quando se pensa na proporção com a presença masculina nos mesmos cargos – de mulheres em posições de chefia. Numericamente, pelo menos, existe um crescimento no surgimento de mulheres políticas ou gestoras de empresas ao longo das décadas.

Contudo, essas ascensões são contaminadas por uma exigência subentendida de androginia na aparência e na fala como forma de sobrevivência, como aponta Beard. “Mulheres e poder – Um manifesto” fala sobretudo sobre a importância de ter voz – e voz própria.

Apesar de breve (a edição da editora Crítica publicada no Brasil possui apenas 128 páginas), a obra tem a força de um manifesto ou uma denúncia. É como o subtítulo diz. E por estarmos diante de uma denúncia que desperta quem lê para um padrão de discriminações que testemunhamos em diferentes esferas, é importante que o conteúdo das palestras reunidas no livro seja combustível para uma reflexão sobre os possíveis caminhos para rompimentos com as estruturas patriarcais que ainda buscam a manutenção do silenciamento das mulheres como uma forma de as afastar do poder.

 

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Rafaela Tavares Kawasaki. Jornalista de 31 anos, com uma dependência quase física de livros. Feminista até a última célula.